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A rainha vermelha

A rainha vermelha

Elas girls

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Capítulo

SOBRE O LIVRO Nesta fantasia repleta de ação, romance e muitas reviravoltas, a ordem da sociedade é ameaçada quando Mare Barrow, uma jovem comum de sangue vermelho, descobre que tem um poder até então exclusivo à elite de sangue prateado. O mundo de Mare Barrow é dividido pelo sangue: vermelho ou prateado. Mare e sua família são vermelhos: plebeus, humildes, destinados a servir uma elite prateada cujos poderes sobrenaturais os tornam quase deuses. Mare rouba o que pode para ajudar sua família a sobreviver e não tem esperanças de escapar do vilarejo miserável onde mora. Entretanto, numa reviravolta do destino, ela consegue um emprego no palácio real, onde, em frente ao rei e a toda a nobreza, descobre que tem um poder misterioso... Mas como isso seria possível, se seu sangue é vermelho? Em meio às intrigas dos nobres prateados, as ações da garota vão desencadear uma dança violenta e fatal, que colocará príncipe contra príncipe - e Mare contra seu próprio coração.

Capítulo 1 1° CAPÍTULO

ODEIO A PRIMEIRA SEXTA. O vilarejo fica lotado, o que agora, no auge do verão, é a última

coisa que alguém desejaria. Não é tão ruim aqui na sombra, mas o fedor dos corpos suados do

trabalho da manhã é forte o bastante para azedar o leite. O ar tremeluz com o calor e a

umidade, e até as poças da tempestade de ontem estão quentes e agitam-se com pequenos arco-

íris de óleo e graxa.

A feira esvazia à medida que as barracas vão fechando. Os mercadores estão distraídos,

despreocupados. É fácil pegar o que eu quiser dos estoques. Quando terminar, estarei com os

bolsos abarrotados de quinquilharias e ainda terei uma maçã para a viagem. Nada mal para

poucos minutos de trabalho. A multidão se move e eu me deixo ser arrastada pela corrente

humana. Minhas mãos entram e saem num só gesto, sempre toques rápidos. Umas notas do

bolso de um homem, a pulseira de uma mulher, nada muito grande. Os aldeãos estão ocupados

demais seguindo o fluxo para notar uma batedora de carteira.

As altas construções sobre palafitas que dão nome ao vilarejo (Palafitas, quanta

originalidade…) erguem-se ao redor, três metros acima do solo lamacento. Na primavera, a

margem sul do rio geralmente fica alagada, mas estamos em agosto, mês em que desidratação

e insolação afligem o vilarejo. Quase todo mundo espera ansiosamente a primeira sexta-feira

do mês, quando a escola e o trabalho terminam mais cedo. Eu não. Preferiria estar na escola

numa sala cheia de crianças sem aprender nada.

Não que eu vá permanecer muito mais tempo na escola. Meu décimo oitavo aniversário está

chegando e, com ele, o recrutamento. Não tenho formação profissional nem emprego, de modo

que acabarei na guerra com outros desocupados. Não é de estranhar a falta de trabalho: todo

homem, mulher e criança faz de tudo para ficar longe do Exército.

Meus irmãos foram para a guerra quando completaram dezoito anos; mandaram os três

combater Lakeland. Apenas Shade sabe escrever um pouco, e ele me manda cartas sempre que

pode. Não tenho informações sobre meus outros irmãos, Bree e Tramy, há mais de um ano.

Mas notícia ruim sempre chega depressa. As famílias podem passar anos sem novidades para

um dia se deparar com os filhos na porta de casa — de licença ou às vezes felizes por terem

sido dispensados. No geral, porém, o que as pessoas recebem é uma carta em papel grosso

com o selo da Coroa estampado ao pé de um curto agradecimento pela vida do filho. Talvez

ganhem até alguns botões de seus uniformes despedaçados.

Eu tinha treze anos quando Bree partiu. Ele me deu um beijo na bochecha e um par de

brincos que eu teria de dividir com minha irmã mais nova, Gisa. Eram dois pingentes com

contas de vidro rosado como o pôr do sol. Naquela mesma noite, nós duas furamos a orelha

sozinhas. Tramy e Shade mantiveram a tradição. Agora Gisa e eu levamos as três pequenas

joias numa orelha, para lembrar dos nossos irmãos que lutam em algum lugar. Não acreditei

que eles teriam mesmo de ir embora até o dia em que o legionário apareceu com sua armadura

reluzente e os levou consigo, um após o outro. No próximo outono, ele virá me buscar. Já

comecei a economizar — e roubar — para comprar os brincos de Gisa quando partir.

Não pense nisso. É o que minha mãe sempre diz sobre o Exército, sobre meus irmãos, sobre

tudo. Ótimo conselho, mãe.

No fim da rua, no cruzamento da Mill com a Marcher, mais aldeões juntam-se à marcha e a multidão aumenta. Um bando de moleques — ladrõezinhos em treinamento — se move pelo

tumulto com seus dedos grudentos e curiosos. São jovens demais para serem bons nisso, e os

agentes de segurança logo intervêm. Normalmente as crianças seriam mandadas para o tronco

ou para a cadeia no entreposto, mas os agentes querem ver a Primeira Sexta. Eles se contentam

em dar algumas surras e deixar os ladrões irem. Pequenas caridades.

A menor pressão na minha cintura me faz virar para trás instintivamente. Agarro aquela mão

tola o bastante para tentar furtar de mim. Aperto tão forte que o diabinho não vai conseguir

escapar. Mas, em vez de um moleque mirrado, me deparo com um rosto sorridente.

Kilorn Warren. Aprendiz de pescador, órfão de guerra e provavelmente meu único amigo de

verdade. Costumávamos brincar de lutinha quando crianças, mas agora que estamos mais

velhos e ele tem uns trinta centímetros a mais que eu, procuro evitar disputas. Acho que Kilorn

pode ser útil. Para alcançar prateleiras altas, por exemplo.

— Você está mais rápida — ele ri, soltando-se da minha mão.

— Ou você mais lento.

Ele faz uma cara de tédio e apanha a maçã da minha mão.

— Esperamos Gisa? — pergunta, abocanhando a maçã.

— Ela tem um passe para ficar o dia inteiro. Trabalhando.

— Então é melhor irmos. Não quero perder o espetáculo.

— Que tragédia seria…

— Tsc, tsc, Mare — ele provoca, balançando o dedo na minha cara. — É pra ser divertido.

— É pra ser um aviso, seu burro.

Nisso ele já caminha a passos largos, forçando-me a quase correr para acompanhar o ritmo.

O andar gingado, desequilibrado. “Passos de marujo” é como ele chama, embora nunca tenha

estado em alto-mar. Mas acho que as longas horas no pesqueiro do seu mestre, ainda que no

rio, tendem a produzir algum efeito.

O pai de Kilorn foi mandado à guerra, assim como o meu. Mas, enquanto o meu regressou

sem uma perna e um pulmão, o sr. Warren voltou dentro de uma caixa de sapatos. A mãe de

Kilorn fugiu logo em seguida, deixando o filho abandonado à própria sorte. Ele quase morreu

de fome, mas por algum motivo continuou pegando no meu pé. Eu o alimentava só para não ter

de enxotar aquele saco de ossos o tempo todo. Hoje, dez anos depois, aqui está ele. Pelo

menos ocupa um posto de aprendiz e não vai ter que encarar a guerra.

Chegamos ao pé do monte onde a multidão se apinha entre empurrões e cutucões. É

obrigatório comparecer à Primeira Sexta, a menos que você seja um “trabalhador essencial”,

como minha irmã. Como se bordar seda fosse essencial. Mas os prateados adoram seda… Até

os agentes de segurança podem ser subornados com peças costuradas pela minha irmã. Não

que eu saiba algo sobre isso.

As sombras ao redor escurecem à medida que subimos os degraus de pedra rumo ao topo da

montanha. Kilorn vai de dois em dois e quase me deixa para trás. Mas ele se detém e espera,

sorrindo para mim com malícia, e tirando uma mecha do cabelo castanho de seus olhos

verdes.

— De vez em quando esqueço que você tem pernas de criança.

— Melhor do que ter cérebro de criança — rebato, dando-lhe um tapinha na bochecha ao passar. O som da sua risada sobe os degraus atrás de mim.

— Você está mais mal-humorada do que o normal.

— É que odeio essas coisas.

— Eu sei — ele sussurra, sério pela primeira vez.

Eis que chegamos à arena, com o sol escaldante sobre nossa cabeça. Construída há dez

anos, a arena é de longe a maior estrutura de Palafitas. Não é nada perto das construções

colossais das cidades, mas ainda assim os arcos ascendentes de metal e os milhares de metros

de concreto bastam para fazer uma menina da aldeia perder o fôlego.

Os agentes de segurança estão por toda parte; os uniformes preto e prata destacam-se na

multidão. É a Primeira Sexta, e eles não veem a hora de assistir aos eventos. Portam armas

pequenas, apesar de não precisarem. Os agentes são prateados, e os prateados não têm nada a

temer de nós, vermelhos. Todo mundo sabe disso. Não somos iguais, embora talvez não dê

para perceber só de olhar. A única coisa que nos diferencia — ao menos por fora — é que os

prateados andam eretos. Já nossas costas são curvadas pelo trabalho, pela esperança frustrada

e pela inevitável desilusão com nosso fardo na vida.

O calor dentro da arena descoberta é o mesmo do lado de fora, e Kilorn, sempre na ponta

dos pés, me conduz para debaixo de uma sombra. Não há assentos para nós, apenas uns bancos

grandes de concreto, mas os poucos nobres prateados desfrutam de camarotes frescos e

confortáveis na parte superior. Lá, dispõem de bebidas, comida, gelo — mesmo no auge do

verão —, cadeiras estofadas, luz elétrica e outras comodidades que jamais teremos. Os

prateados nem ligam para isso e reclamam da sua “condição miserável”. Vou dar a eles uma

condição miserável se um dia tiver a chance. Tudo o que há para nós são bancos duros e

alguns telões com tantos chuviscos e chiados que mal podemos enxergar.

— Aposto um dia de salário que hoje haverá mais um forçador — Kilorn diz enquanto joga

o resto da maçã no chão da arena.

— Sem apostas — disparo.

Muitos vermelhos apostam nas lutas com a esperança de ganhar um pouquinho de dinheiro

que os ajude a atravessar mais uma semana. Eu não aposto nem com Kilorn. É mais fácil

surrupiar a bolsa do corretor de apostas do que ganhar algum dinheiro jogando.

— Você não devia desperdiçar seu dinheiro desse jeito.

— Não é desperdício quando você tem razão. Sempre tem um forçador espancando alguém.

Os forçadores geralmente participam de metade das lutas. Seu talento e sua técnica os

tornam mais aptos à arena do que a maioria dos prateados. Para eles, parece prazeroso usar

sua força sobre-humana para arremessar outros campeões como bonecas de pano.

— E o outro? — pergunto, pensando na gama de prateados que poderiam aparecer. Telecs,

lépidos, ninfoides, verdes, pétreos: todos uma dureza de ver.

— Não sei direito. Tomara que seja legal. Um pouco de diversão não cairia mal.

Kilorn e eu não vemos as Efemérides da Primeira Sexta com os mesmos olhos. Para mim,

assistir a dois campeões se digladiando não é nada agradável, mas Kilorn adora. “Deixe que

se destruam”, diz. “Não são nossa gente.”

Ele não entende o que são esses shows. Não se trata de um simples entretenimento, um

descanso para o nosso trabalho cansativo. É uma mensagem fria e calculista. Apenas

prateados podem lutar na arena porque apenas eles podem sobreviver à arena. Lutam para nos

mostrar sua força e seu poder. “Vocês não são páreo para nós. Somos melhores. Somos

deuses”: é isso que cada golpe dado pelos campeões quer dizer.

E eles têm toda a razão. No mês passado, assisti a uma luta entre um lépido e um telec.Embora o lépido se movesse mais rápido do que conseguíamos ver, o telec o imobilizou

completamente. Ele ergueu o adversário do chão apenas com o poder da mente. O lépido

começou a sufocar; acho que o telec agarrou a garganta dele de algum jeito invisível. A luta

terminou quando o lépido ficou azul. Kilorn comemorou. Ele tinha apostado no telec.

— Senhoras e senhores, prateados e vermelhos, bem-vindos à Primeira Sexta, a Efeméride

de agosto.

A voz do locutor ecoa pela arena, amplificada pelas muralhas. Soa entediada, como de

costume, mas não o culpo por isso.

Antes as Efemérides estavam bem longe de serem disputas; eram simples execuções.

Prisioneiros e inimigos do Estado eram transportados para Archeon, a capital, e mortos diante

de uma plateia de prateados. Acho que os prateados gostavam disso, então começaram as

lutas. Não para matar, mas para divertir. Foi então que surgiram as Efemérides de hoje, que se

espalharam por outras cidades, para arenas e públicos diferentes. Com o tempo, permitiu-se a

entrada de vermelhos, confinados aos assentos mais baratos. Não demorou muito até os

prateados construírem arenas por toda parte, mesmo em vilarejos como Palafitas. E a

participação dos vermelhos, que antes era um ato de benevolência, tornou-se obrigatória. Meu

irmão Shade diz que é porque nas cidades com arena os vermelhos cometem menos crimes e

discordam menos do regime; até o número de atos rebeldes cai. Agora os prateados não

precisam apelar para execuções, ou mesmo legiões de agentes de segurança para manter a paz:

dois campeões já bastam para nos assustar.

Hoje, os dois em questão fazem bem seu trabalho. O primeiro a pisar na areia branca é

apresentado como Cantos Carros, um prateado de Harbor Bay, a leste de Palafitas. O telão

explode em cores para formar uma imagem nítida do guerreiro. Ninguém precisa dizer que é

um forçador. Os braços são como troncos de árvores, cheios de nervos e veias, a pele toda

repuxada. Quando ele sorri, reparo que os dentes ou estão quebrados ou já não estão na boca.

Talvez ele tenha brigado com a escova de dentes na infância.

Do meu lado, Kilorn está aos gritos, e os outros aldeões rugem com ele. Um agente de

segurança atira pães aos que gritam mais alto para premiar o esforço. À minha esquerda, outro

agente entrega um papelzinho amarelo brilhante para uma criança que se esgoela. É um lec, um

vale de cota extra de eletricidade. Tudo isso para que torçamos e gritemos; tudo para nos

forçar a ver, ainda que não queiramos.

— Isso mesmo, ele quer ouvir vocês! — o locutor quase bocejou, forçando o entusiasmo na

voz o máximo que podia. — E aqui temos seu oponente. Diretamente da capital, Samson

Merandus.

Provavelmente um parente distante de alguém famoso tentando ganhar renome na arena.

Parece pálido e lânguido ao lado do conjunto de músculos em forma humana que era seu

oponente, mas sua armadura de aço temperado é boa e reluzente. Embora devesse estar

assustado, parece estranhamente calmo.

O sobrenome soa familiar, o que não é incomum. Muitos prateados pertencem a famílias

ilustres — chamadas Casas —, com dúzias de membros. A Casa que governa nossa região,

Capital Valley, é a Casa Welle, embora eu nunca tenha visto o governador Welle na vida. Ele

nunca aparece mais de uma ou duas vezes por ano, e mesmo assim nunca se rebaixa a ponto

de entrar num vilarejo vermelho como o meu. Vi uma vez seu barco cruzar o rio, uma máquina

elegante com bandeiras auriverdes. Ele é um verde. Quando passou, as árvores nas margens floresceram e o chão recobriu-se de flores. Achei bonito, até um dos garotos mais velhos

jogar pedras no barco. Elas caíram no rio, inofensivas. Mas o menino foi para o tronco mesmo

assim.

— O forçador leva, sem dúvida.

Kilorn observa o campeão mirrado.

— Como você sabe? Qual é o poder de Samson?

— Isso importa? Ele vai perder de qualquer jeito — zombo, preparando-me para assistir.

O gongo soa na arena. Muitos se levantam, ansiosos para assistir, mas permaneço sentada

em um protesto silencioso. Por mais calma que pareça, a raiva ferve dentro de mim. Raiva e

inveja. “Somos deuses” é a frase que ecoa na minha cabeça.

— Campeões, adentrem a arena.

Eles entram, pisando forte, um de cada lado. Armas de fogo são proibidas nos combates em

arena, então Cantos puxa uma espada curta e larga. Duvido que vá precisar dela. Samson não

saca nenhuma arma, mal contrai os dedos.

Um zumbido elétrico baixo soa na arena. Odeio esta parte! O som reverbera nos meus

ossos e dentes, que latejam tanto que chego a pensar que vão trincar. O ruído termina com uma

campainha aguda. Começou. Suspiro.

Logo de cara parece que vai ser um banho de sangue. Cantos avança como um touro,

levantando areia. Samson tenta desviar, usando o ombro para deslizar por trás do prateado,

mas o forçador é rápido. Ele agarra a perna de Samson e o arremessa pela arena feito uma

peteca. Os gritos da torcida encobrem o urro de dor que Samson solta ao bater no muro de

cimento, mas o sofrimento está escrito em sua testa. Antes de sonhar em levantar, Cantos já

está em cima dele e o lança para o alto. O campeão de armadura cai na areia feito um saco de

ossos quebrados, mas se levanta, não sei como.

— Ele é um saco de pancada? — ri Kilorn. — Vai pra cima, Cantos!

Kilorn não liga para um pão a mais ou uns minutos extras de eletricidade. Não é por isso

que torce. Ele sinceramente quer ver sangue, sangue dos prateados, sangue prata manchar a

arena. Não importa que o sangue seja tudo o que não somos, tudo o que não podemos ser, tudo

o que queremos ser. Kilorn só quer vê-lo e se ilude com a ideia de que eles são humanos de

verdade, que podem ser feridos e derrotados. Mas sei que não é assim. O sangue deles é uma

ameaça, um aviso, uma promessa. Não somos iguais e jamais seremos.

Kilorn não se decepciona. Até as pessoas do camarote podem ver o líquido metálico e

furta-cor pingar da boca de Samson. O sol de verão reflete-se nele como num espelho d’água e

pinta um rio correndo do seu pescoço até a armadura.

Esta é a verdadeira distinção entre prateados e vermelhos: a cor do sangue. Esta única

diferença os torna mais fortes, mais inteligentes e melhores que nós.

Samson cospe e mais sangue prata reluz na arena. Uns dez metros à frente, Cantos segura

forte a espada na mão, pronto para pôr um fim na luta.

— Pobre coitado — murmuro.

Parece que Kilorn tinha razão: ele não passa de um saco de pancadas.

Cantos faz a arena tremer com seus passos. Espada na mão, olhos em chamas. E então ele

para. Um pé se mantém suspenso; a armadura ressoa com a interrupção abrupta. No meio da

arena, o guerreiro sangrando aponta para Cantos; seu olhar parece capaz de partir ossos.

Samson move os dedos e Cantos caminha, perfeitamente sincronizado com os gestos manuais dele. A boca do forçador se abre, como se não fosse bom da cabeça. Como se tivesse

perdido a mente.

Não acredito no que vejo.

Um silêncio mortal recai sobre a arena enquanto assistimos à cena sem entender. Até Kilorn

não tinha o que dizer.

— Um murmurador — suspiro em voz alta.

Nunca tinha visto um deles na arena… Duvido que alguém tivesse. Murmuradores são

raros, perigosos e poderosos mesmo entre os prateados, mesmo na capital. Os rumores a seu

respeito variam, mas no final todos soam simples e aterrorizantes: eles podem entrar na sua

cabeça, ler seus pensamentos e controlar sua mente. E é exatamente isso que Samson faz

agora, depois de atravessar a armadura e os músculos de Canto e chegar ao seu cérebro, onde

não há defesas.

Cantos ergue a espada com as mãos trêmulas. Tenta combater o poder de Samson. Mas, por

mais força que tenha, é incapaz de lutar contra sua mente.

Outro gesto da mão de Samson faz sangue prata respingar pela arena. Canto enfia a espada

na armadura, na própria barriga. Posso ouvir o rangido doentio do metal cortando carne

mesmo do meu péssimo lugar.

Sangue jorra de Cantos. A arena ecoa de espanto. Nunca vimos tanto sangue aqui antes.

Luzes azuis acendem e banham a arena com um brilho etéreo que marca o fim da disputa.

Curandeiros prateados correm pela areia para chegar a Cantos, que está caído. Prateados não

podem morrer aqui. A ideia é que lutem com braveza, ostentem seus talentos e deem um

espetáculo, mas nada de morrer. Afinal, eles não são vermelhos.

Nunca vi os guardas moverem-se tão rápido. Alguns são lépidos e seus vultos nos cercam

por todos os lados para nos conduzir à saída. Não nos querem por perto caso Cantos morra na

arena. Enquanto isso, Samson se retira como um titã. Seu olhar repousa sobre o corpo de

Cantos. Pensei que encontraria um ar de arrependimento nele, mas não. Seu rosto está

impassível, inexpressivo e frio. O combate não significava nada para ele. Nós não somos nada

para ele.

Na escola, aprendemos sobre o mundo antes de nós, sobre anjos e deuses que viviam no céu

e governavam a Terra com mãos ternas e gentis. Alguns dizem que não passam de histórias,

mas não acredito nisso.

Os deuses ainda governam. Ainda descem das estrelas. Só não são mais gentis.

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