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De repente, um clã

De repente, um clã

juleraisa

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Capítulo

Após a estranha e repentina morte do seu marido, Cloe se muda do interior para a cidade grande com o intuito de trabalhar para sustentar sua filha. Depois de alguns meses trabalhando em um restaurante, ela recebe uma proposta inesperada para executar um serviço em sua área de formação, ela é convidada para restaurar algumas obras de artes para uma das famílias mais importantes de Putuma. A princípio, Cloe recusa, mas se vê forçada a trabalhar para as últimas pessoas que tiveram contato com o seu marido. Durante todo o processo, ela precisa ficar hospedada na propriedade e alguns segredos começam a despertar a sua curiosidade. Dentre eles, saber se o cara que ela conheceu um dia antes de ficar "confinada" é alguém em que ela pode, ou não, confiar.

Capítulo 1 Entre desconhecidos

Num fim de tarde ensolarado, saí para caminhar entre o pouco verde que restava naquela selva de pedra em que me encontrava aprisionada, sem nutrir expectativa de que algum dia poderia estar livre daquela cidade assim como ela era inteiramente livre de mim. Ali eu era apenas mais uma que nada tinha a acrescentar a um lugar com a arquitetura tão alicerçada, com conceitos formados e projetos correntes, movidos por seres que a sociedade intitulou como importantes.

Era verão, mas as chuvas que intercalaram com os dias de sol conservaram o verde intenso do parque na praça central. As pessoas caminhavam numa velocidade alarmante. Moviam-se como se nada mais acontecesse em sua volta. Desatentas, não notaram o senhor, sentado ao lado das hortênsias, lendo um jornal impresso em papéis frágeis (o que é raramente presenciado nesta era tecnológica).

Desconsideraram a casa inacabada do joão-de-barro, que provavelmente fora tragado pelos avanços das modernas construções.

Fazendo anotações mentais de tais minudencias, sentei-me para respirar um ar "puro" comprimido numa bolha circunvalada por poluição. A leveza absorvida era tão intensa que despertava em mim a vontade de chorar (não sei se havia acordado emotiva ou se simplesmente estar ali me lembrava de como era me sentir viva).

Levantei-me e caminhei para perto do lago, onde as árvores ganhavam dessemelhantes tamanhos e cores. Demorei-me admirando o contraste do azul-celeste e os verdes enérgicos dos grandes cedros. O meu cérebro conseguiu registrar com facilidade aquela inebriante paisagem. Recordei-me duma época em que eu acordava ao raiar do sol, antes das gotas sensíveis da neblina se desfazerem, para contemplar o meu lar, a minha paz e a vida feliz que tive a sorte de desfrutar um dia.

Alguns minutos, imersa em minhas próprias memórias, me distraíram das coisas que circulavam a minha volta e que se renovavam a cada instante. Antes de me retirar e retornar para minha insatisfatória realidade, percebi que uma multidão se formava perto do pacato lago central. Senti-me tentada a expectar o que se passava naquele recanto que ousava fingir ser meu, contudo, desisti rapidamente da absurda ideia. Diferente das pessoas que são atraídas pelos intensos movimentos ou por grandes agrupamentos de pessoas, ando desesperadamente na direção oposta. Pus-me, então, a caminhar de volta para as pistas barulhentas, em direção aos semáforos que ditavam o meu parar e o meu caminhar, rumo aos prédios que me impediam de absorver o azul ativo do céu.

Aquietei-me durante alguns minutos, esforçando-me para desprender o meu psicológico afetado por mais um dia ruidoso. As pessoas nas grandes cidades não sentem falta do silêncio porque nunca conviveram com ele, no entanto, eu lamentava não ter um lugar que rememorasse integralmente o meu sossego.

- Cloe?

Escutei alguém gritar o meu nome enquanto subia as pequenas escadas de uma charmosa vila (uma provável réplica de alguma cidade da Itália). Particularmente, já que havia se tornado imprescindível viver em uma cidade movimentada, preferiria ter uma casinha ali, todavia, não há como habitar um lugar tipicamente belo sem ter que pagar pelos seus altos custos.

- Oi. - Acenei, constrangida, sob alguns olhares curiosos na larga estrada de pedra.

- Jamais pensei que a encontraria tão rápido - o rapaz de cabelos escuros e olhos castanhos, disse.

- Desculpa, mas acredito que está havendo algum engano - sem conseguir encontrar alguma ligação passada com aquele rapaz, retruquei.

- Foi você quem estudou Artes plásticas na universidade de Putuma? - ele me perguntou olhando diretamente para o tablet.

- Sim - respondi desconfiada.

- Precisamos de você. - Ele respirou aliviado. - Quem precisa e por quê? - indaguei preocupada.

- Oh! Desculpe-me, sou Luigi Albuquerque, supervisor do Museu Becovitchi.

(Algumas coisas precisam ser explicadas, após essa última citação; e serão. Porém, não causarei uma interferência desnecessária neste diálogo decorrente).

- O que deseja senhor, Luigi? - Um pequeno sorriso, que refletia o meu nervosismo, surgiu no meu rosto pálido.

- Precisamos de alguém que conheça verdadeiramente grandes obras de artes para fazer um exímio trabalho de restauração. - Usando um lindo e impecável lenço de seda, ele enxugou as gotas minúsculas de suor que escorriam pelo rosto.

- Por que eu?

- Seu antigo professor a indicou como uma das melhores, inclusive ele acrescentou que nunca viu alguém com um olho tão singular para executar tal tarefa .

- Se sou tão boa quanto ele diz é porque o próprio me ensinou. Então, por que não o chamam?

- Ele está morto - o homem respondeu sem vestígios algum de empatia na voz.

- Oh! - foi tudo que consegui dizer.

Há exatos sete anos, vinha tentando encontrar um emprego que me possibilitasse fazer o que gostava. Não desejei voltar para a pequena cidade na qual cresci, e sempre que a perspectiva de regressar ao lugar que construí uma parte feliz da minha história permeava os meus pensamentos, dolorosamente a suprimia. Entretanto, estar numa cidade que você há anos odeia e ainda ter que conviver com pessoas desagradáveis e trabalhos desgastantes, te faz desejar absurdamente fugir. Se fosse apenas eu, talvez tivesse fugido, mas não pude tomar decisões intempestivas e precipitadas, pois havia outra vida dependendo inteiramente da minha. Portanto, por mais que detestasse trabalhar em um restaurante lotado por pessoas esnobes, preferia, a ter que trabalhar para os desígnios da "realeza" moderna.

- Sinto muito senhor, mas tenho um emprego que me deixa bastante ocupada durante todos os dias. - Retomei meus passos.

- Sim! Estamos cientes, mas creio que quando a senhora ouvir o que temos a lhe ofertar não declinará. - Ele se apressou em subir os degraus da pequena escada.

- Não tenho interesse em oferta alguma, senhor. - O encarei com frieza.

- A senhora está dizendo que se recusa a trabalhar para a família Becovitchi? - O rapaz, de estatura mediana, ergueu as sobrancelhas, assombrado.

- Exato. - Tentei não sorrir.

- Então, se é assim, sugiro que a senhora reavalie os seus conceitos, pois isto não é um serviço que pode ser recusado.

Duas coisas me deixaram irritada durante aquela absurda conversa: ele me chamar de senhora, sendo que eu era visivelmente mais nova que ele, e usar expressões como precisamos e estamos, visto que apenas ele estava parado a minha frente me impedindo de concluir o meu curso.

- Que mandem decepar a minha cabeça em praça pública, então - esbravejei (embora tivesse plena consciência que séculos haviam se passado em que o governo aboliu tal ato deplorável de punição).

- Sugiro que a senhora reflita bem em tudo que está em jogo aqui. Amanhã aguardo ter notícias suas. Esse é o meu número, ligue-me o mais rápido possível. - Ele me entregou um cartão com um enorme B em destaque (a marca da família mais estimada da cidade de Putuma) e foi embora levando consigo o seu tom ameaçador.

Continuei minha andança a caminho de casa tentando digerir o que aquelas últimas palavras deviam significar para mim. Refleti sobre todas as grandes percas que o egocentrismo de um dos maiores investidores do estado e os seus associados já haviam me causado. Ainda assim, perdi-me nos meus próprios questionamentos: eles podem me ferir ainda mais?

- Mamãe - escutei o verdadeiro som da alegria ecoando da pequena casinha, no fim de um corredor apertado.

- Minha menina, minha doce e pequenina menina. - Abaixei-me e trouxe em meus braços aquela linda criaturinha de cabelos avermelhados. - Diga-me que foi boazinha e não deu trabalho a Maria - sorri para a minha simpática vizinha que durante o dia cuidava da Belinda por uma quantia razoável.

- Ela é uma boa menina, não me dá nenhum trabalho - a boa senhora falou, antes de se despedir, depositando um beijo nas bochechas rosadas de Belinda.

O meu tesouro mais estimado me encarou com os olhinhos cansados e disse:

- Mamãe senti tanta saudade sua hoje.

Aquilo me corroeu por dentro como ácido sobre o alumínio. Não que ela já não houvesse expressado tal sentimento outras vezes. No entanto, sempre vai haver dias em que a nossa melancolia independa das palavras ou das ações dos outros. Eu havia acordado assim, triste e pensativa e tudo a minha volta parecia ainda mais longe, mais sofrido, mais doído. Depositei naquele dia uma porção exagerada de sentimentos atrelados a tudo e a todos que passaram em meu caminho. Ter a minha menina aconchegada em meu colo só acentuou todo aquele mar de emoções sacolejando dentro de mim.

Para piorar, antes que pudesse narrar um conto feliz para Belinda, o meu celular tocou, despertando-me dos pensamentos que estavam sendo confabulados para se converterem em estórias infantis.

- Só queria lembrá-la senhora, caso ainda não tenha se dado conta, que embora não possa ter sua cabeça decepada como espetáculo teatral, sua amada e ingênua filha pode ser eventualmente convidada a frequentar um internato e suas visitas se limitarem a duas por ano - ele desligou sem me dar a oportunidade de indagar como havia conseguido o meu número.

Estática, olhando a foto na tela do meu celular, percebi que estava enganada, havia algo que poderia ser arrancado de mim, causando uma dor ainda mais esmagadora que a primeira. Jamais permitiria que tal coisa monstruosa acontecesse, afinal, a minha pequena menina se tornou o clarear dos meus dias escuros e a força oculta que me impele a batalhar todos os dias em um mundo dominado pela falta de altruísmo. Cogitei refugiar-me em outro lugar, distante e isolado. Isso poderia nos proteger momentaneamente, mas tinha plena certeza que a recusa em prestar os meus serviços para uma família tão poderosa e influente colocaria em perigo o meu bem mais valioso. Com os pensamentos a me atormentar, deitei à noite com a convicção de que os meus princípios seriam violados e as minhas promessas esmigalhadas.

Aceitar qualquer serviço diretamente ligado ao maior executivo de uma enorme capital, fazia o meu caráter estilhaçar, entretanto, não havia como alterar absolutamente nada. Aceitei e senti o peso da traição recaindo sobre meus ombros, ferindo-me o coração.

- Senhora Cloe, fico feliz que tenha vindo me encontrar tão cedo - cinicamente o homem, cujo o nome me recuso a pronunciar, sentou-se ao meu lado numa cafeteria pequena, próxima a charmosa vila.

- O que exatamente devo fazer e quando devo começar? - perguntei ignorando todos os bons modos que um dia fui ensinada a exercer.

- A senhora começará semana que vem. Até lá, os seus pertences serão levados para a casa dos Becovitchis e você permanecerá ali até ter concluído o seu trabalho.

- Posso muito bem realizar o meu trabalho durante o dia e retornar para casa à noite, como faço no meu atual emprego - raciocinei.

- Infelizmente, o seu trabalho atual não estar relacionado aos pertences da família mais conceituada do nosso estado, portanto, é imprescindível que a senhora permaneça sobre constante vigilância até terminá-lo. - Ele tomou um pouco de café e observou atentamente os meus olhos.

- Quanto a Belinda? - Senti o meu coração acelerar.

- Poderá levá-la consigo, desde que garanta que ela não sairá dos seus aposentos.

- Certamente o senhor não tem filhos, pior ainda, desconhece as crianças - falei com ironia.

- Um carro virá amanhã buscá-las, por favor, leve apenas o essencial. Todas as suas necessidades serão devidamente supridas enquanto permanecer desenvolvendo o seu trabalho. - Ele se levantou e partiu.

Tudo o que havia desejado, no dia anterior aquela conversa, foi não ficar presa a um lugar que nunca poderia fazer parte de mim. Antes não houvesse desejado, pois, naquele momento, pressenti que seria aprisionada no epicentro dum ambiente que nunca almejei pertencer.

O sono não me acompanhou à noite, as inquietações apoderaram-se do meu peito o tornando mais dela do que meu. A grande fenda que se rompeu em minha rotina chata e barulhenta não me arremessou em um mundo cercado por encantos. O meu maior temor era que aquele buraco de profundezas alarmantes, no qual fui lançada, não me permitisse que encontrar um seguro caminho de volta.

Respirei profundamente e contemplei, aninhada em meus braços, a minha pedra preciosa. Era por Belinda que eu arreceava tanto o futuro. Era por ela que escolhia me entregar a um sistema corrompido por suas próprias leis, pois sem ela, eu não existiria, sem ela a tristeza teria me tragado a ponto de não haver razões reais para lutar. Possivelmente teria optado por fechar os olhos sem a intrusão dos sonhos criando expectativas ruídas em mim ou sem os pesadelos concluindo a demolição das ruínas que um dia foram grandes estruturas.

Infelizmente, independente dos destroços internos, o tempo não para e suas horas nupérrimas não acalentam a alma.

Foi sentindo esse dissabor interno que o dia seguinte aquela ordem arbitrária despencou totalmente sobre mim trazendo as tristes dubiezes da vida, e junto com elas surgiram algumas batidas suaves na porta.

Assustei-me imaginando ser a possível criatura que viria ao meu encontro a fim de me levar "cativa". Todavia, ao abrir a porta fui subitamente surpreendida com a atitude do desconhecido que estava em pé a minha espera. Ele se atirou para dentro da pequena sala e segurou firmemente a minha boca para que eu não gritasse.

- Não lhe farei mal algum, peço apenas que me escute - ele sussurrou.

Assenti lentamente, pois tendo em vista o tamanho dele e vendo claramente os seus fortes braços, nada poderia fazer se ele tencionasse me prejudicar.

- Chamo-me Vicente Mason e, sim, sou filho de Eduard Mason. - Ele retirou lentamente a mão da minha boca.

Aquela pequena frase foi suficiente para que eu desejasse escutá-lo sem precisar emitir gritos que ecoariam velozmente na comprimida viela.

- O que faz aqui? - indaguei aturdida.

- Preciso compartilhar algo com você antes que comece o seu serviço. - Ele fixou sua atenção em Belinda que ainda dormia profundamente na nossa pequena cama.

- Como sabe que iniciarei um novo serviço? - Tentei não me apavorar.

- Não há tempo para longas explicações agora, apenas necessito que confie em mim. Sei que conheceu meu pai o suficiente para testificar que ele era um bom homem, espero que, por enquanto, isso baste para acreditar que também sou - ele clamou com os olhos tão intensamente quanto fez com as palavras.

- Certamente o seu pai era um bom homem e lamento que tenha morrido. O que houve? - Lembrei-me que não fui informada a causa da morte.

- Por isso que estou aqui, desejo que você possa me ajudar a descobrir.

Assimilar aquelas palavras não foi algo fácil, ainda mais, tendo tantas perguntas borbulhando em minha mente, por exemplo: como ele sabia quem eu era e onde morava? Como ele descobriu que fui contratada para trabalhar para os Becovitchis? Por que nunca soube que Eduard tinha um filho?

- Sei que você tem muitas perguntas, mas sinto que não poderei responder todas agora, logo chegarão aqui e eu não posso ser visto ao seu lado. Escrevi uma carta contendo algumas explicações, nela está escrito tudo o que precisa saber inicialmente. Os celulares na casa são monitorados, então, não haverá como nos comunicarmos desta forma. - Ele me entregou o envelope.

- Se não conseguir encontrar uma forma de lhe contatar? - perguntei, me envolvendo em uma trama que nem sabia dos pormenores.

- Não se preocupe quanto a isso, encontrarei uma maneira de entrar em contato com você. Agora ouça-me: não confie em ninguém.

Sua voz era tão grave e sua presença tão grandiosa que me vi tentando entender o que um homem tão imponente fazia em minha casa, suplicando a minha ajuda. Porém, antes que novos pensamentos ganhassem forma, o barulho de pesados passos nos assustou. Quando novas batidas surgiram em minha porta, sinalizei para que ele se escondesse no estreito banheiro. Apressei-me em atender sem demonstrar o quão confusa estava com tantas informações aquebrantadas de explicações sensatas.

- Bom dia! - Sorri sem compreender porque estava a rir para um estranho.

- Senhora, fui incumbido de ajudá-la com os seus pertences e levá-la até a sua hospedagem. - O senhor, de aspecto ciclópico, apontou para o início da rua, onde precisou estacionar o carro.

- Tudo bem! - respondi ansiosa. - Tenho poucas coisas, mas agradeceria se o senhor pudesse levar a mala e retornasse para ajudar carregar a minha filha que ainda está dormindo. - Apontei para Belinda.

A rápida caminhada que o grandalhão fez até o carro não foi suficiente para eu recolher outros informes. Ainda assim, tentei avaliar um pouco mais aquele estranho que se apresentou a mim com um desmedido desespero e que solicitou minha ajuda como se isso fosse a única coisa que pudesse salvá-lo.

Ele estava desesperado para que eu concordasse em ajudar, isso ficou evidente no seu tom de voz, entretanto, as suas feições eram tranquilas e calmas como se por dentro ele fosse um poço de paz que transbordava com simplicidade. Estranhamente ele segurou uma das minhas mãos antes que eu partisse e disse:

- Se Eduard, todo esse tempo, estava certo a seu respeito, não preciso ter receio algum, você fará o certo. Está escrito em seu caráter.

Ele soltou lentamente os meus dedos e se escondeu, outra vez, ao perceber que os passos na rua haviam se intensificado. Não consegui tirar os olhos imediatamente dele. Ele transparecia honestidade, mas, de fato, era?

Retornei aquela minha nova realidade, modificada drasticamente em menos de vinte quatro horas, e acompanhei o homem que estava vestido em um terno impecável e continha uma expressão inexistente no rosto. Ele carregava Belinda com tanta facilidade que em suas mãos parecia haver uma criança de dois anos e não sete.

- Não vou conseguir colocá-la no carro sem acordá-la - o homem se expressou, como se por trás daquela casca grossa houvesse sentimentos.

- Uma hora ela terá que acordar - falei com simpatia.

Adentrei no confortável e espaçoso carro com os pensamentos formigando em meu cérebro. Antes as angústias eram intensas, mas eram minhas e cabia apenas a mim ter que lidar com elas. A partir daquele instante um enigma foi me entregue e eu não fazia ideia de como iria desvendá-lo. Pior, deveria mesmo me envolver em um assunto que não me pertencia?

Olhei para Belinda que já havia acordado e acompanhava a paisagem com uma fascinação que jamais tinha presenciado. Nunca havíamos percorrido aquele caminho. Grandes árvores e diversas cores embelezavam o trajeto de uma maneira tão assinalada que por um momento ousei acreditar que aquilo nos levaria a um merecido descanso e a uma paz contínua.

- Veja, mamãe, uma raposa, estou vendo uma raposa. - Belinda apontava para dentro da floresta com sincera felicidade.

Uma sensação de impotência atravessou o meu peito como um punhal afiado: se algo de ruim acontecesse e eu não pudesse proteger minha filha de tal mal? Jamais me perdoaria. Era o meu dever protegê-la. Morrer para permitir que ela vivesse. Nenhuma dor me abocanharia com tamanha força que esta: vê-la sofrer e nada poder fazer.

- Senhora, já estamos chegando. - O homem, de traços brutos, atravessou um enorme portão de ferro que abriu imediatamente quando ele olhou para câmera.

Assim que avistei a imponente construção, estremeci. Era estupidamente grande. Embora tivesse plena consciência que a modernidade havia alcançado aquela cidade, como abocanhara tantos outros lugares ao redor do mundo, confesso que esperei adentrar em uma antiga e autêntica construção, coberta por lindas pedras em suas cores naturais, com vitrais coloridos e perfeitamente desenhados (em defesa própria, afirmo que estranho seria seu não ambicionasse tal recinto. Antes de ser uma restauradora, sou uma leal amante da história, afinal não se pode recuperar aquilo que não se conhece). Entretanto, o que "desabrochou" em minha frente foi uma exagerada casa contemporânea, com arquitetura moderna, grandes vidros e muito branco. Senti-me atravessando os jardins de uma celebridade e não de uma família histórica (talvez tenha sido a isso que ela se converteu, fotos, tabloides, entrevistas e fama).

Após alguns segundos lidando com a minha frustração interior, um segurança surgiu. Estávamos paradas, em uma escada lateral cercada de trepadeiras, passando por uma espécie de fiscalização. Depois do "selo de aprovação", fomos novamente coletadas e despejadas em uma casa, absurdamente afastada, ao fundo da enorme propriedade (não sei, de fato, se a casa costumava ser utilizada como "lar" temporário pelos empregados ou se fora construída para hóspedes inconvenientes. Uma certeza eu trazia comigo: eu era um dos dois). Se eu não tivesse visto a casa principal, pensaria que estava sendo alocada na própria. No tal anexo, cabia facilmente todas as casas da pequena viela que eu residia. Belinda estava fascinada com tanto espaço e conforto, eu podia sentir isso apenas ao encarar os seus grandes olhos. Eles pareciam ainda maiores a cada pedacinho descoberto por ela, que nunca teve a oportunidade de conhecer nada tão majestoso. Todavia, não me impressionei com a eloquente construção, não que em algum momento da minha vida eu tenha desfrutado de algo parecido, porém o que tive fora muito mais vivo e belo. A frieza, facilmente perceptível naquele lugar, nunca pincelaram as paredes do meu antigo lar, que infelizmente Belinda não teve o privilégio de conhecer. Estou certa que se ela tivesse vivido, mesmo que pouquíssimo tempo, naquelas terras, não seria tragada facilmente pelo falso encanto desse lugar.

- Assim que a senhora estiver devidamente instalada o senhor Luigi virá lhe conceder algumas instruções - o grandalhão, que nos levou para a nossa "humilde" hospedagem e que eu ainda não sabia o nome, falou sorrindo.

- Obrigada, senhor - interrompi minha fala.

- Matteo. - Ele estendeu a mão. - Escute-me, senhora...

- Cloe - corrigi.

- Senhora Cloe, quanto menos perguntas fizer por aqui, melhor será para senhora e para sua pequena. Algumas coisas não necessitam de explicações. Se tiver o cuidado de se fazer de cega, surda e muda, logo, logo estará em casa, eu garanto.

Matteo se afastou com os seus dois metros, deixando-me intrigada e abarrotada de perguntas, justamente o que ele me dissuadiu a fazer.

Antes que pudesse me sentir confortável o suficiente para desfazer a mala e tomar um banho, encontrei-me mais uma vez acompanhada pelo Luigi.

- Muito bem, vejo que seguiu meu conselho e trouxe pouca coisa. - Ele olhou indiscretamente para minha pequena mala. - Deixarei vocês se acomodarem hoje e amanhã envio uma nota de como as coisas funcionarão enquanto vocês permanecerem aqui. - O arrogante homem me entregou um tablet. - Isso é temporariamente seu. - Aproximando-se da porta, me encarou. - O senhor Fausto solicita sua presença para uma conversa particular, no jantar. Pedi que providenciassem algo digno para a senhora vestir. - Sem nem se despedir, ele saiu.

Sentei-me no sofá, apreensiva e temerosa, especulando o motivo de ser levada para uma conversa com "o poderoso chefão" tão rapidamente. Pelos rumores que ouvi no restaurante, a influente família, que consistia no "maioral" Fausto, sua esposa Helen e o herdeiro Tomás, não costumavam ficar instalados na casa principal e sempre se enclausuravam em alguma propriedade desconhecida. Por esse e outros motivos, senti o pavor circular o meu corpo a cada segundo que passava. Eu não estava com medo de ficar diante deles e nem me julguei indigna de tal ato, apenas não tinha como prever a minha reação quando olhasse nos olhos daquele homem. Era o fortuito que me apavorava.

- Mamãe? - Belinda havia encontrado um canal de desenhos na enorme TV da sala.

- Oi, amor. - Notei o ponteiro do relógio que parecia girar mais rápido que o normal.

- Vamos morar aqui agora?

- Não filha, isso é apenas um trabalho temporário - expliquei rapidamente

- Temporário. - Belinda me olhou.

- Isso! Não vai durar, logo estaremos em casa - fiquei com medo que minhas últimas palavras a entristecesse e senti um peso ao pronunciá-las.

- Eu sei o que significa temporário - ela falou chateada. - Não fiz uma pergunta, repeti a pra gravar em minha mente.

- Por quê? - perguntei curiosa.

- Estou feliz por isso. - Ela sorriu.

Acreditando que ela não havia entendido com clareza minha explicação, reforcei:

- Aqui não é nossa casa querida e nunca vai ser.

- Eu sei! Aqui não tem cor, é tudo branco e sem vida. Não tem amor. - Ela observou atentamente o desenho enquanto eu segurei as lágrimas que se formaram dentro de mim.

Estava enganada. A minha inteligente filha não só entendia o significado de temporário como ela compreendia o que era um lar. Nossa casa era pequena, mas tínhamos as paredes cobertas por coloridos quadros, pintados por mim e por Belinda. Amávamos as cores no chão de cerâmica manchado com os pingos de tintas que caíam dos pincéis. Haviam recortes de paisagens coladas nos espaços vagos da parede. Enchemos nossa casa de amor.

Enquanto minha mente vagueava lembrando dos detalhes que grifavam com cores marcantes a saudade no meu coração e no de Belinda, lembrei-me da carta que foi me entregue um pouco mais cedo, naquele mesmo dia.

- Filha, tudo bem se eu for tomar um banho enquanto você assiste? - Não estava certa se ela queria ficar sozinha em um lugar novo.

- Tudo bem, vou assistir "Procurando o Nemo". - Ela mudou o canal.

Segurei a pequena mochila, verde, de Belinda e a levei comigo para o imenso banheiro próximo a sala. Sentei-me no chão, perto do box de vidro e pus-me a ler a enigmática carta.

"Não julgue antes de conhecer todos os fatos"

Sem nem tentar fazer alguma reflexão sobre o que aquelas palavras significavam, certifiquei-me de que havia mesmo pego o papel certo. Onde estavam todas as explicações que eu precisava? E as instruções que eu deveria seguir? Eis que tudo o que eu havia conseguido produzir, até o citado momento, foram indagações. As coisas não estavam fazendo sentido nenhum para mim. Fiquei sentada ali por um logo momento olhando a frase solta, no meio de um papel em branco. Quando a minha mente e os meus olhos cansaram, coloquei o papel em cima da pia desejando absurdamente jogá-lo no lixo.

Às horas estavam passando rapidamente e por isso me apressei em tomar um banho. Enquanto a água quente caía lentamente sobre a minha pele, contextualizei todo o meu dia. Aquele lindo homem, de pele escura como o anoitecer iluminado pela luz da lua, parecia confiante de que o que ele havia me entregado seria mesmo a ajuda necessária para resolver alguns dilemas, no entanto, o labirinto ganhou novas entradas e nenhuma saída visível.

Sentindo-me desconfortável ainda, segui na direção do enorme espelho, acima da pia, e encarei meus cansados olhos (avelã eram a cor deles, segundo o meu querido pai). A água escorria dos meus cabelos castanhos e gotas se formavam sobre a inútil carta. Paralisei ao ver que as palavras desapareciam lentamente quando os pingos de água atingiam o papel. Em segundos, números e letras começaram a se destacar embaixo da frase e aos poucos foram enfraquecendo. Rapidamente tentei memorizá-los e procurei algo para anotar, em vão. No entanto, antes que pudesse esquecê-los de uma vez, retirei um dos brincos e rabisquei o fundo de um lindo sabonete, em forma de flor, e o coloquei novamente no lugar. Logo em seguida, busquei as letras e os números no papel e eles não estavam mais lá, restou apenas uma folha diáfana. Como aquilo pôde acontecer tão rapidamente? Se o papel não tivesse molhado, ainda assim aquilo aconteceria? Que garantia ele tinha que eu conseguiria encontrar aqueles números? O que aquelas letras significavam? E, por que ter o cuidado de deletar tudo?

Pensei em me desfazer do papel, mas tantas paranoias, nutridas com intensidade, surgiram em minha mente: se o lixo fosse revirado e de alguma forma eles encontrassem e suspeitasse de um papel em branco? Se houvesse algo escrito que eu não havia conseguido enxergar ainda?

Depois de hesitar, coloquei o papel no bolso da mochila e tentei tranquilizar os meus batimentos cardíacos.

- Mamãe - escutei Belinda gritar.

- Aqui, filha. - Enrolei-me rapidamente em um roupão, de seda, chique.

- Tem uma moça que está procurando a senhora. - Belinda colocou a cabeça na direção da porta.

Imediatamente concluí que era alguma empregada responsável pela entrega da roupa que obrigatoriamente eu deveria usar.

- Olá! - Sorri para a jovem senhora de cabelos loiros, com pequenas rugas no rosto.

- Estou aqui para auxiliá-la senhora, com suas vestes, cabelo e maquiagem. - Ela não foi muito amistosa.

Ainda não havia entendido como os protocolos deviam ser cumpridos pelos funcionários. Se eu era apenas mais uma para servir os caprichos do patrão deles, por que insistiam em me tratar com tanta formalidade?

- Como desejar - foi tudo que consegui responder.

Poucas horas depois eu estava impecavelmente arrumada. Vestido justo, verde-musgo, um pouco abaixo do joelho. Cabelos escovados e parcialmente presos e um desconfortável sapato de salto alto. Quando a senhora, que descobri com grande esforço se chamar Amália, se retirou, procurei-me através daqueles apetrechos. Fiquei feliz de ver que eu ainda estava ali (não a permiti exagerar na maquiagem já que fracassei em convencê-la a deixar os meus ondulados cachos intactos). O contorno, com lápis preto, realçou a cor dos meus olhos e alguns cachos amendoados, que se refaziam rebeldemente, ultrapassaram um pouco os meus ombros.

- Uau! A senhora está tão linda. - Belinda estava na sala em companhia de outra moça.

- Eu cuidarei da senhorita Belinda, até a senhora retornar - disse a moça que Belinda já estava chamando de fofa.

- Ela costuma ser bem tranquila, mas se algo sair do controle, por favor, mande me chamar imediatamente - implorei.

- Certo! - Ela tentou sorrir, mas pareceu desconfortável.

Sorri tentando convencê-la de que tudo estava bem, tentando me convencer que nada sairia do controle. Antes que o fracasso interno se exteriorizasse, desci os degraus da pequena escada na frente da casa que eu me encontrava "hospedada" e notei que o mesmo carro que me conduziu ate ali, estava a minha espera para me escoltar até a casa principal. Se não estivesse usando salto acharia aquilo um estúpido exagero.

- Olá! Senhora Cloe. - Matteo abriu a porta do carro.

- Tenho menos de um dia neste lugar e todos me fazem parecer tão velha, sinto falta do Cloe, apenas Cloe - falei com transparente tristeza na voz.

Matteo continuou inexpressivo, cumprindo bem o seu trabalho fechou a porta e cinco minutos depois parou em frente a casa principal. Ele me ajudou a descer, e um senhor baixo, com muitas expressões marcantes no rosto, acompanhou-me até uma grande sala principal.

- A senhora pode aguardar aqui enquanto informo ao patrão e aos seus convidados sobre a sua chegada.

Acenei com a cabeça mesmo sabendo que aquele era um gesto desnecessário, já que nada que eu fizesse alteraria as ações do homem que seguiu rapidamente por um enorme corredor.

Alguns minutos depois ele estava mais uma vez parado em minha frente, concedendo-me instruções do que fazer.

- A senhora jantará com o senhor Fausto e sua família, peço, por favor, que deixe os seus pertences neste local - ele apontou para uma espécie de armário embutido na parede do corredor.

Não havia nada dentro da minha bolsa que comprometesse a minha integridade resultando em minha prisão (embora já estivesse encarcerada) ou na "pena de morte", por isso prontamente a entreguei ciente que a única coisa que realmente me pertencia era o meu celular.

Com exímio perfeccionismo, aquele senhor me conduziu a uma enorme porta que foi aberta quase que instantaneamente. Paralisei-me ao encontrar, naquele local, pessoas praticamente inacessíveis, sentadas juntas em volta duma mesa de jantar imensa.

Rapidamente percebi que estavam ali o inabordável Fausto Becovitchi, sua esposa Helen, Tomás, duas belas mulheres e um homem que não havia se sentado ainda. Ele estava parado de frente para as grandes janelas de vidro, encarando alguma coisa naquele cenário paradisíaco (um lindo jardim se estendia por quilômetros e as variedades de flores e árvores deixavam tudo mais prazeroso).

- Senhorita Cloe. - Tomás sorriu e um empregado afastou lentamente a cadeira para que eu sentasse.

- Boa noite - consegui pronunciar enquanto encarava aqueles estranhos, de rostos conhecidos, dividindo o mesmo espaço que eu ocupava.

- Senhorita Cloe, estamos gratos que tenha disponibilizado o seu tempo para cuidar de assuntos importantes para nós - Helen se expressou com serenidade.

- Acredito que declinar não foi uma opção apresentada a mim - falei com acidez.

- Está aqui contra sua vontade? - Tomás perguntou surpreso.

- Sim, estou - respondi sem pesar minhas palavras.

- Agora a senhorita me deixou intrigado, por que não queria estar aqui? - Tomás continuou a me indagar.

- Porque este trabalho, pois é para isso que estou aqui, trabalhar, é temporário e minha sobrevivência depende de ofícios permanentes, como o que eu tinha antes de pedir demissão para aceitar prontamente um pedido da sua família - omiti fatos, mas também disse verdades.

- Creio que você deveria vir sentar conosco Vicente, o jantar logo será servido.

Um calafrio percorreu a minha nuca ao escutar o nome pronunciado pela "esposa do magnata". O homem que permanecia em pé, afastado da mesa, chamava-se Vicente, e antes que ele deixasse os seus pensamentos num mundo fora daquela sala, o ouvi respirar fundo e se virar. Não tenho como precisar se as pessoas a minha volta perceberam o horror que a minha face estampou. Uma temida confusão se instaurou em meu cérebro e por longos segundos tudo que consegui fazer foi olhá-lo sem encontrar reciprocidade em seu olhar.

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