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Transdiferenciação

Transdiferenciação

Paola Fanticelli

5.0
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5
Capítulo

Natália, uma mulher de 33 anos, acaba de ficar viúva. Sufocada por conflitos pessoais, tristeza e culpa, ela acaba inesperadamente se encontrando de volta na realidade que vivia aos 18 anos de idade, e é forçada então a enfrentar as origens de seus traumas. Optando por iniciar uma nova vida com novas escolhas, as decisões de Natália podem lançar longas sombras sobre o seu futuro – mas também gerar o potencial para trazer de volta a luz.

Capítulo 1 Prólogo

Morrer no Brasil era extremamente burocrático.

Natália o sabia bem. Quando a avó morrera, ela tinha 13 anos; jovem demais para compreender de fato como a vida podia ser complicada, mas na idade certa para poder começar a entender o que testemunhava da luta alheia. Ela tinha visto a mãe chorar a morte da avó naquele hospital terrível, o único que o plano de saúde barato deles cobria, para depois cuidar das complexidades que cercavam o cuidado e transporte do corpo, para então lidar com o administrativo do cemitério. Ela nunca esquecera a ocasião em que sua mãe tentava, em vão, parcelar os custos do caixão, só para não ter limite em seu cartão de crédito. Sob o olhar neutro do funcionário do cemitério, ela digitou a senha várias vezes, até o momento em que sua tia interviu e chamou o funcionário à parte para conversar. Então sua mãe sentara na cadeira de plástico da capela em que estavam. Muda ela estava e muda ficou até o final do dia, bem depois das lágrimas terem secado.

Hoje, no enterro de seu próprio marido, Natália não tinha lágrimas.

A família dela era toda de mulheres desde que ela se lembrava, uma mistura de viúvas, divorciadas e mães solteiras, e quase todas estavam ali hoje, embora Natália não falasse com ninguém – incluindo as duas primas de 1º grau, que para ela não contavam realmente, mas estavam ali. Ambas a olhavam agora com os cantos dos olhos, cochichando entre si, encostadas na parede perto de onde sua mãe a olhava preocupada desde o início do funeral. Natália sabia do que as primas falavam, não porque as conhecesse especialmente, mas sim porque ela mesma o pensava agora: para que lágrimas? Não era como pudesse mudar nada do que acontecera. Tinha sido uma fatalidade. Alguns dos presentes até poderiam estar pensando, embora sem coragem de comentar entre si, que Natália não chorava porque não amara especialmente o marido.

Amado especialmente. Era como se Breno tivesse sido um gato travesso que Natália não lamentasse que tivesse fugido. Isso não era verdade. Nem que fosse muito dura consigo mesma ainda assim não poderia aceitar isso. Ela o amara bastante, anos antes, quando decidiram se casar. E era o suficiente. Ele, então, a amara o suficiente pelos dois, mesmo que Natália só conseguisse ter por ele aquele sentimento prático e direto, quase como se o relacionamento todo fosse um desafio à sua sobrevivência. Embora não tivesse motivo para ser diferente. Passar pela vida adulta era apenas sobreviver a pequenos desafios. A morte do marido, mesmo que súbita e chocante naquele acidente, era só mais um deles.

Ela só queria que tudo já tivesse acabado, pensou estafada enquanto tirava a parte da franja da frente do olho esquerdo. Queria ir para casa, ficar sozinha, e beber vinho. Eis o verdadeiro remédio para os males, e não lágrimas. Estava com dor de cabeça, e a cicatriz em seu antebraço esquerdo coçava.

Breno era um órfão já quando o conhecera. Só tinha duas irmãs, Amélia e Gabriela, sendo que a última retornara a trabalho para o estado vizinho, de onde a família dele era originária, ainda antes que Natália o conhecesse. Era apenas essa irmã que rodeava o caixão do irmão que pouco via, chorando silenciosamente enquanto tocava a madeira. A outra se acercava de Natália agora. Relutantemente, a puxou para um abraço hesitante. Era estranho e duro, como abraçar um manequim.

- Meus pêsames, Natália. Que tragédia.

Natália a observou. Gostava de forma reticente de Amélia, embora ela não exatamente retribuísse sentimentos a qualquer um que não fosse seus gatos. Nunca tinha sido muito próxima de Natália, o que lhe fora ótimo, e distanciara-se dos irmãos nos últimos anos. Apesar disso, notou ela, tinha seus olhos inchados agora.

- Um acidente de carro – descreveu ela por nenhum motivo especial, sentindo-se ausente, olhando para Gabriela perto do caixão antes de encarar Amélia – Breno ultrapassou o cruzamento e o outro motorista bateu na lateral.

Amélia assentiu, polida. Os olhos inchados faziam seu rosto parecer ainda mais redondo do que já era, refletiu Natália. A luz artificial do pequeno cômodo em que acontecia o velório parecia fazer sua pele negra brilhar.

- Você parece bem.

Natália suspirou e inclinou a cabeça para trás.

- Não tem o que fazer – disse em voz baixa.

Eles queriam ter um bebê, lembrou-se Natália com um solavanco. Mais Breno do que ela inicialmente, mas já com 33 anos achou melhor tentar. Nos meses anteriores eles não tinham alcançado nada, mas e se da última vez...

- Você vai se recuperar – disse Amélia com suavidade pouco característica, pondo a mão desajeitadamente sobre o ombro de Natália – Breno ia querer isso.

Natália assentiu sem dizer nada. Quando Amélia se afastou, pegou a aliança de Breno de dentro da bolsa e a testou em todos os dedos das mãos.

Ela só coube no polegar direito.

Durante todo o resto daquela cerimônia sufocante que era o velório, enquanto testemunhava – como se estivesse mesmo fora de si – todas aquelas pessoas vindo falar com ela e confortá-la daquela forma delicada que costuma anteceder os enterros, Natália só conseguia pensar em como tinha esquecido o bebê. Tinha sido uma parte importante de sua vida nos últimos meses. O céu, notou enquanto já caminhava atrás do caixão, ouvindo o murmurinho das pessoas ao redor, estava cinzento, cheio de nuvens que prometiam chuva. Aquele cemitério, que não era mais que um extenso campo bem-cuidado, logo ficaria encharcado.

Faria um teste de gravidez assim que tudo acabasse, decidiu ela assim que chegaram perto da cova designada.

Ambos, ela e Breno, poderiam ser considerados nominalmente católicos, então ela pedira para que um padre dissesse algumas palavras na cerimônia. O padre se chamava Davi. Um nome judeu para um padre católico. Eles poderiam ter rido disso. E foi então, em meio a todas aquelas pessoas, enquanto Davi, o padre, falava sobre amor e tragédia e paraíso e bem-aventurança que ela finalmente chorou. Não era um choro delicado, era feio, refletiu ela enquanto soluçava, gemia e então percebia que era mesmo verdade, Breno tinha morrido e os 33 anos que a tinham levado até ali pareciam ter servido para nada.

Foi só enquanto caminhava de volta para o carro, amparada unilateralmente por Gabriela e seguida de perto por Amélia, que Natália notou. Não teria 33 anos por muito mais tempo. No dia seguinte, 30 de junho, era seu aniversário. Breno tinha sido alguns meses mais novo. Nunca teria 34 anos. Apenas ela, que não os merecia.

Natália acabou sendo levada para o apartamento no qual agora vivia sozinha por Amélia, enquanto Gabriela, que viera ao enterro de carona com uma parenta distante, fora despachada para voltar da mesma forma. As irmãs tinham discutido muito rapidamente a respeito, mas em voz baixa, de forma que Natália só ouvira a voz grave de Amélia sibilando, mas Gabriela não precisara de muito mais para ir embora enquanto Natália entrava no carro com Amélia. Nenhuma das duas falava muito desde que começaram a seguir o caixão, horas antes, e não falaram mais nada então no caminho até o prédio em que Natália vivia agora sozinha. Estava grata por ter sido Amélia. Gabriela teria falado muitas palavras de consolo a ela, o que poderia ter provocado outra onda daquele choro feio, e Natália odiava chorar. Nada em sua vida provocava mais autodesprezo.

Quando chegaram perto do prédio, começou a chover, e as lágrimas de Natália tinham secado. Pediu para Amélia deixá-la perto da farmácia da esquina, agradecendo também pelo apoio. A cunhada mal olhara para ela, mas entendera a deixa e fora embora rápido, permitindo assim que Natália fosse comprar o teste de gravidez. A chuva apertava.

O elevador estava quebrado. Subiu as escadas devagar até o sétimo e último andar, pingando água nos degraus enquanto subia, tentando não pensar muito enquanto se arrastava. Quando chegou finalmente em frente ao apartamento, sentia-se embotada e exausta. Foi com alívio que entrou no apartamento frio e escuro.

Lá fora, um trovão ressoou ao longe. Seria uma longa noite com chuva. Necessitava do vinho.

O teste acabou dando negativo. Natália ficou no banheiro, em pé, sentindo os seios desnudos pesados no peito e olhando aquele resultado. Queria estar sentindo um alívio abençoado. Não queria ser uma viúva grávida. Ainda assim, não se sentia melhor. Não sentia nada. Depois do choro no enterro, lhe parecera que a fonte da dor poderia se abrir e expor todos aqueles sentimentos que Natália não quisera lidar antes, desde que recebera a notícia. Mas não. Não se sentia miserável. Triste, sim, de uma forma seca. Desesperançosa, também. Mas não miserável. Era possível quase ficar feliz com a ausência da agonia que esperava ser inevitável.

Fechava a porta do banheiro atrás de si quando ouviu outro trovão cair não tão longe dali.

Não se preocupou em pegar um copo para colocar o vinho. Nunca gostara de ser fraca para bebida, mas, hoje, aquela era sua vantagem. Percorrendo o apartamento ainda escuro, franziu os olhos até encontrar a poltrona do marido, a garrafa firme na mão direita. Ficava no canto da sala, perto da janela, feita de um tom de amarelo claro que ela nunca gostara particularmente. Diante da recusa determinada de Breno para se livrar dela, Natália providenciara uma manta escura. Tinham se conciliado então na questão. Tinham se acomodado.

Lá fora, a chuva começava a encher a rua abaixo. Mais perto, outro trovão caiu. Natália bebeu um gole de vinho, depois outro, depois outro. Seus olhos estavam cheios de lágrimas de novo. Sentia frio, e a dor que surgia aceleradamente ameaçava arrebentar como um todo a camada de autoproteção que carregava há tanto tempo. Breno precisara ter morrido para ela notar o quanto realmente fora injusta, em relação à acomodação e muitas outras coisas. Fora ela quem se acomodara, refletiu, bebendo mais dois goles de vinho enquanto lutava para conter mais lágrimas. Parecia que sempre tinha sido acomodada com a própria infelicidade. Vivera assim, estudara assim, casara assim, trabalhara assim. Enviuvara assim.

Existira um tempo em que foi diferente?

Outro trovão. Natália ouvia o vento assobiar do lado de fora, arrepiando sua pele. Bebeu os três últimos goles de vinho antes de assentar a garrafa no canto da parede. Abraçou-se então, encolhendo-se na poltrona, ouvindo a chuva e tocando a aliança no polegar direito. Fechou os olhos, sentindo a cabeça leve. Ouvia as gotas batendo na janela e o vento soprar, parecendo agora cantarolar do lado de fora. Ao longe, uma porta bateu.

Sentia a cabeça leve.

Existira um tempo em que foi diferente?

Natália tentou afundar o rosto em um canto macio da poltrona e se encolheu mais. Com o rosto inclinado, uma lágrima escorreu para a manta.

Claro que sim, repetiu a voz em sua cabeça, insistente, enquanto ela escorregava devagar para a inconsciência. Um dia você teve 18 anos...

Em cima dela, um trovão caiu, devastando o espaço ao redor com o barulho.

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