Cecilia está se separando de Ricardo, após descobrir que ele a está traindo. Ricardo não aceita a separação e passa a persegui-la.
A Taça de Cristal
Capítulo 1
Tic, tac, tic, tac... o som irritante do relógio lembrava Cecília de que não tinha muito tempo, que deveria se apressar. Tudo bem, eram apenas oito horas da manhã e Ricardo não deveria retornar de seu serviço antes das dez da noite, uma vez que dificilmente ele sairia do trabalho e iria direto para casa. Não. Era certo de que, depois do expediente, ele iria para o bar com os amigos...
Ainda assim, ela deveria se apressar. Iria faltar no serviço... talvez até mesmo pedisse demissão nesse dia, pois pretendia desaparecer pelo mundo, para que Ricardo não a conseguisse encontrar...
Enquanto arrumava sua mala (não pretendia levar muita coisa, só o essencial), mesmo sem querer, sentiu aflorar em sua mente lembranças de um passado nem tão distante, assim. Lembrou-se de quando conhecera Ricardo. Ela tinha ido ao cinema com suas amigas, assistir um filme. Como era mesmo o nome do filme? Não se lembrava. Tampouco conseguia lembrar o que ela e suas amigas fizeram depois da sessão de cinema. A única coisa de que conseguia se recordar era do momento em que o viu pela primeira vez na lanchonete... nossa que garoto lindo, ela pensou...
Não conversaram nesse dia, sequer se apresentaram. Mas a imagem do rapaz da lanchonete ficou marcada em sua lembrança. E, sem mesmo perceber, suspirava quando se lembrava dele...
Cecília colocou outro vestido na mala. Era um vestido azul, um de seus preferidos. Aliás, ela gostava mais dos tons escuros que dos claros. Azul, verde, preto, marrom... não, ela não era gótica. Simplesmente não gostava tanto de rosa e seus derivados. Vermelho, dependendo do tom, até gostava. Mas suas roupas eram predominantemente escuras. Branca, só a blusa do seu uniforme de serviço. Ela trabalhava como vendedora em uma loja, e seu uniforme era uma blusa branca e calça... ou saia... preta. Não era sua combinação favorita, mas uniforme é uniforme. Ela sempre dizia que quem escolhia os padrões para os uniformes só os escolhiam assim porque nunca os usavam...
Quando foi abrir a gaveta, para pegar outras peças, seus olhos pousaram na pequena bailarina da caixa de música que ganhara de Ricardo em seu primeiro encontro. Pegou a peça e deu corda. Fechou os olhos enquanto ouvia a melodia e pôs-se a sonhar com o passado, quando as coisas pareciam mais simples... bem, quando você tem dezesseis anos, embora não pareça, as coisas são realmente mais simples.
Finalmente terminou de arrumar suas coisas. Olhou o quarto pela ultima vez. Uma lágrima teimosa resolveu rolar por sua face. Ela saiu, trancou a porta e ganhou o mundo. O que iria acontecer a partir de agora? Ela não sabia... mas esperava que as coisas pelo menos melhorassem e que sua vida se descomplicasse um pouco.
Pousou a mala no chão enquanto esperava o ônibus. Para onde iria? Não tinha a mínima ideia. A casa de seus pais não era uma opção. Nem a de parentes ou amigos. Pegou um cigarro, acendeu e, enquanto via a fumaça se erguer aos céus ficou pensativa... o ônibus estava chegando. Jogou o cigarro no chão, embarcou. Enquanto olhava pela janela a vida que deixava no passado, ficou pensativa, tentando imaginar o que seria sua vida a partir daquele momento...
A Taça de Cristal
Capítulo 2
Aquela manhã estava sendo um tanto quanto caótica para Ricardo. Talvez por ter brigado com Cecília, não conseguiu dormir bem a noite. E para quem trabalha no transito, como ele, isso era simplesmente terrível...
Porque tinham brigado mesmo? Ele não conseguia se lembrar. O que sabia era que a discussão tinha sido feia, onde até agressão física havia rolado. Quem partiu para as vias de fato primeiro? Não lembrava. Assim como não tinha a menor noção de qual teria sido o estopim que deflagrara toda a balburdia. Talvez o fato de ter chegado tarde em casa e, ainda por cima embriagado, tenha influenciado a situação...
Fazia já algum tempo que os dois não conseguiam se entender. E ele não podia compreender o porque disso... afinal, no começo os dois estavam tão apaixonados. Mas, de repente, qualquer coisa servia de pretexto para que um ofendesse o outro. E isso começou a afastá-los...
Ricardo estava casado com Cecília a quatro anos. No começo da vida a dois tudo era uma maravilha, o verdadeiro paraíso no céu. Mas, de repente, de um momento para o outro, o paraíso terrestre virou um inferno em sua vida. Tanto que optou por ficar mais tempo fora de casa, para tentar levar a vida sem tantos percalços. Mas a relação dos dois ia se desgastando a cada rusga nova que surgia. E os motivos eram os mais variados...
Ricardo era motorista de ônibus. E devido a sua profissão, e por ser extremamente simpático (e muito bonito, diga-se de passagem) fazia um relativo sucesso com as mulheres. Tinha muitas amigas entre os passageiros do dia a dia. E algumas amigas eram mais intimas que outras... e foi por isso que a confusão começou em sua vida conjugal...
Por aqueles acidentes da vida, um dia ele foi escalado para trabalhar na linha que servia seu bairro. Estava na reserva, faltou um motorista e o mandaram cobrir a linha. Na sua segunda viagem, sua esposa acabou pegando seu ônibus. Entrou, pagou a passagem e tomou seu acento no meio do carro. Até aí, tudo bem. O que ele não esperava é que uma de suas conhecidas também entrasse no coletivo naquela viagem. E era uma das amigas com quem ele tinha um relacionamento um tanto quanto... intimo, podemos dizer assim. Afinal, não fazia nem uma semana que os dois haviam ido ao motel após Ricardo cumprir sua jornada...
A moça entrou, sentou-se sobre o cofre do motor, e começou a conversar com o rapaz. A coisa fluía tão naturalmente que ele até se esqueceu que sua esposa estava naquele veículo. Num dado momento, quando o coletivo parou para desembarcar alguns passageiros, a moça o beijou (aquele beijo cinematográfico, mas não o beijo técnico) e também desembarcou. Cecilia viu aquilo acontecer na sua frente. Seu sangue ferveu na hora, mas conseguiu se controlar e permanecer em seu assento, embora seu desejo na hora fosse esmurrar os dois... mas com certeza, a noite, quando estivessem em casa, ele teria que explicar aquilo que não tinha explicação. E depois, veria o que poderia acontecer...
Quando chegou em seu ponto, ela desceu. Foi aí que Ricardo percebeu o tamanho da sua mancada. Ficou pálido, torcendo para que ela não tivesse visto a amiga agindo tão intima com ele... mas o caldo já havia entornado.
A TAÇA DE CRISTAL
Capítulo três
Tem dias em que tudo dá errado, não é mesmo? Esse era o dia da Helena. Acordou atrasada (o despertador não tocou... se tocou, ela não ouviu, o que dá no mesmo...), quando foi tomar banho, o chuveiro queimou e aquela água gelada da manhã espalhou-se por seu corpo (o que foi bom de certa forma, pois a fez acordar instantaneamente), percebeu que não tinha nenhuma blusa limpa do seu uniforme de trabalho e por isso teria que usar a mesma do dia anterior (a pilha de roupas sujas tinha crescido assustadoramente no decorrer da semana) e, para completar, quando foi tomar seu café, correndo, pois já estava atrasada em demasia, a xicara escapou de suas mãos e entornou o líquido quente em seu colo, sujando sua blusa e queimando sua pele. Lá vai ela, correndo tirar a blusa suja e melada (ela gosta de café bem doce),lavar a região atingida pelo café e passar uma pomada para que o local não infeccionasse. Finalmente, depois de todos esses contratempos (ela pegou uma blusa em seu guarda roupas que não era parte do uniforme, mas teria que servir, já que não tinha outra...) ela finalmente ganhou a rua, só parando quando chegou no ponto de ônibus. "Que sorte", pensou ela... "o ônibus já está vindo!" Quando ela vai abrir a bolsa, para pegar sua carteira... cadê a bolsa? Esqueceu em cima da mesa da cozinha, quando estava se preparando para sair. "Mas como conseguiu esquecer de sua bolsa, mulher?", pensou ela, furiosa consigo mesma. Bem, já estava atrasada, portanto não adiantava ficar se lamentando. Resignada, voltou para casa. Já estava desistindo de trabalhar nesse dia, afinal foram tantos contratempos...
Quando chegou em casa, sentou-se no sofá e ficou algum tempo pensativa. Tudo o que tinha acontecido até o momento lhe dizia que era melhor ficar em casa. O dia não prenunciava nada de bom. Aliás, a sua semana não tinha sido boa, até o momento. No domingo, quando foi visitar sua mãe, acabou brigando com Estela, sua irmã mais nova. O motivo? Nem se lembrava mais, tinha sido algo que podia considerar sem importância em qualquer situação, mas naquele momento tomou proporções de uma tragédia pessoal. O que a deixou mais irritada é que sua mãe defendeu a irmã, não lhe dando nem um pouquinho de razão pelo que tinha acontecido. E isso deixou um gosto amargo de injustiça, uma vez que ela estava certa e sua irmã, errada. Mas Estela era a filha favorita, e sua mãe jamais ficaria contra ela...
Devo esclarecer que Helena era uma pessoa muito calma, comedida ao extremo. Introvertida, ficava sempre na dela. Não recusava ajuda a quem quer que fosse. Muito meiga, procurava sempre ver o lado das outras pessoas. Empática ao extremo. E algumas vezes acabavam abusando de sua boa vontade. Por ser uma pessoa tão tranquila como era, quando explodia as pessoas a sua volta até estranhavam. Pois ela realmente explodia, parecia que ia ter uma síncope cardíaca, ficava vermelha e gaguejava, e gritava alto tudo aquilo que estava engasgado em seu ser. Mas, em situações normais, passada a explosão de ira, voltava a ser a garota doce e meiga que todos conheciam e que alguns amavam. Eu digo alguns porque não conseguimos agradar a todos ao nosso redor, não é mesmo? Sempre tem aqueles que, por algum motivo, não vão com a nossa cara...
E Helena ficou ali, sentada na sala, pensando sobre o que faria nesse dia...
A TAÇA DE CRISTAL
Capítulo quatro
Cecília estava em frente ao guichê de uma empresa de ônibus aleatória. Resolveu que pegaria o primeiro carro que estivesse de partida, de preferência, para o mais longe possível. Sim, porque se fosse para algum lugar próximo com certeza Ricardo irai procurá-la. E a convenceria a voltar. Só que, para ela, não tinha mais volta. O tapa que recebeu no rosto quando perguntou quem era a zinha que o beijara de manhã foi a gota d'agua que fez transbordar o copo de um relacionamento que a muito se desgastara. Afinal, se para ele aquela mulher no coletivo era assim tão importante que justificava agredir sua esposa, então ela nada mais tinha a fazer naquela casa. E ela não voltaria para sua família porque Ricardo era muito querido por seus pais e irmãos, e ela sabia que tentariam convence-la a perdoa-lo, coisa que não estava disposta a fazer. Nem que ele viesse de joelhos implorando seu perdão, ela o perdoaria. Não tinha o porque fazer isso. Afinal, em quatro anos de casados, nunca tiveram filhos. Se não tinham descendentes que os ligassem física e emocionalmente, porque ela iria insistir em algo que só lhe trouxera decepção?
A atendente perguntou qual seria o destino de sua viagem, ela respondeu que queria uma passagem para o mais longe possível, e de preferência no primeiro carro que saísse. A moça consultou a tabla de horários e a informou que a saída mais próxima só aconteceria às dez da noite, afinal era uma linha interestadual e as partidas programadas para aquela manhã já haviam sido cumpridas...
Cecilia sentou-se em um dos bancos da rodoviária e ficou pensativa, decidindo o que realmente iria fazer. O relógio da parede marcava duas da tarde. "Nossa", pensou ela, "as horas passaram voando! Se eu não me decidir logo, daqui a pouco já será dez da noite..."
Resolveu tentar mais uma vez... dirigiu-se ao guichê de outra empresa, e perguntou se tinha algum partida programada para aquele horário. O atendente informou que, dali a alguns minutos, sairia um carro com destino à cidade de Tocantins, em Minas Gerais. Ela ficou pensativa. "Bem, eu nunca fui para essa cidade, não conheço ninguém por lá... jamais pensarão em me procurar nesse lugar..." ato contínuo, pagou pela passagem, pegou suas malas e dirigiu-se ao portão de embarque. O ônibus estava encostando na plataforma, portanto ela caminhou devagar. Tinha tempo até que os outros passageiros embarcassem, para que pudesse se acomodar...
Entregou as malas para o despachante, pegou seus tickets, guardou-os na bolsa. Os passageiros ainda estavam entrando no carro, Cecília esperou um pouco mais. Respirou fundo, entregou a passagem para o motorista, apresentou seus documentos conforme ele lhe solicitou e finalmente adentrou no ônibus. Procurou seu acento, e deu graças aos céus por estar no fundo e não ter ninguém ao seu lado durante a viagem...
Sentou-se, prendeu o cinto de segurança, como o motorista a orientou, e finalmente relaxou um pouco. Iria para um lugar que não conhecia, mas a gente vive desbravando lugares para nós desconhecidos a todo momento, não é mesmo? Afinal, que diferença faz você ir para um lugar novo? Ele só será novo quando você chegar lá. Depois de algum tempo, passará a ser um lugar comum em sua vida. E, com esse pensamento, ela fechou os olhos e adormeceu...