Nos meus pesadelos, estou lá, naquela cidade. Em meio a floresta. Ele está lá também. Consigo ver seus grandes olhos brilhantes, me encarando entre as árvores. Nós estamos fadados a este jogo. A presa e o predador. Sei que não sou mais rápida ou mais forte. Estou destinada a perder. A novidade é que mesmo fervendo de raiva, mesmo com tudo em seu ser desejando o meu sangue, ele não pode me matar. O amor é realmente como uma droga. Por que mesmo sabendo que eu sou o ponto mais fraco aqui, aquela que pode perder o pouco que ainda lhe resta, não consigo me afastar.
Durante toda a minha vida, um sonho recorrente me assombra. O lugar em que nasci, aquelas florestas densas, eu estava lá, não havia ninguém comigo, pelo menos não companhias humanas. A sensação era incomoda. Como se estivesse naquele momento crucial em que um sonho acolhedor e confortável, se torna um pesadelo tenebroso. O segundo exato em que todos os seus sentidos estão alertas. Que consegue perceber tantas coisas que parece que tem um amplificador para eles. De maneira que consigo sentir a presença dele. Estou pronta para encontra-lo frente a frente.
Porém, os olhos vermelhos são a ultima coisa que vejo, acompanhado de um rosnado feroz. Então é o fim, o meu fim.
Ayla estava de volta a Arcádia. Era difícil para ela estar ali no palco dos seus maiores pesadelos, o lugar que tirou tudo dela. Infelizmente, voltar foi a única coisa que lhe restou. A avó, e o último membro vivo da família, foi diagnosticada com Alzheimer em estado avançado e precisa de alguém para cuidar dela. Ayla podia ter fechado os olhos para ela como a mesma fez quando ela ficou órfã ainda criança. No entanto, ela é mais humana que isso.
Acabará de completar 21 anos, devia estar iniciando a sua carreira promissora em alguma área. No entanto, isso se torna impossível quando se tem que trabalhar para viver. Agora a ideia está ainda mais distante. Ela desceu do ônibus na rodoviária vazia. Parece que ninguém mais usa esse tipo de transporte. Ainda assim, a passagem era mais barata. Depois teve que contratar um motorista de aplicativo para leva-la a casa da avó, Evea. O que levou mais de meia hora para encontrar. Ao chegar na casa, Ayla percebe que o lugar não mudou muito. A floresta densa ainda abraça a casa quase como se fosse uma extensão dela própria. A casa de madeira possui dois andares. Os quartos ficam no andar superior assim como um banheiro. No inferior está a cozinha e a sala, ambas tão sujas e desorganizadas que tem um cheiro esquisito e incomodo. A casa toda acumulava uma quantidade anormal de itens inúteis. Evea estava no sofá, assistindo um talkshow.
"Vovó?" Ayla chamou, mas não obteve retorno algum. Ela foi informada que além o Alzheimer a mulher perdeu grande parte dos movimentos das pernas e passa grande parte do tempo ali no sofá. Ainda assim, aproximou-se da mulher e fez uma segunda tentativa "Evea" chamou pelo nome.
Completo silencio, ela se quer tirou os olhos da tv. Ayla sabe que sua audição está em perfeito estado, então concluiu que o problema era ela. A senhora não quer lhe dar atenção. Suspirou pesado e pensou que não existia a menor condição dela permanecer naquele lugar do jeito que ele estava. Então mesmo cansada da viagem colocou as suas malas do quarto de hospedes e iniciou uma mega faxina. Gastou o dia todo e nem conseguiu sair do andar inferior. Muitas e muitas coisas foram para as caçambas de lixo que ficam em frente a casa, até que o lixo se encheu e ela cuidadosamente colocou ao lado dele. Cansada demais para continuar acabou deixando a limpeza dos quartos para o dia seguinte. Aparentemente a avó não dorme em seu quarto a muito tempo. Durante a limpeza Ayla fez várias tentativas de interagir com a velha, mas a mulher apenas dormia e assistia tv.
No dia seguinte, logo pela manhã quando desceu as escadas encontrou a velha na cozinha, mancando de um lado para o outro. Parecia preocurar por algo, mas acaba sentando a mesa cansada demais pelo esforço de se locomover.
"Evea?" a jovem perguntou confusa. Afinal durante o dia anterior inteiro a mulher não pareceu nem um quarto tão ativo.
"Quem é você?" a voz da velha é falha e transmite cansaço, ainda assim mais doce do que Ayla se lembrava.
"Sua neta!" responde. Não esperava que fosse reconhecida.
"Eu não tenho neta. Para ter neta precisa ter filhos. Onde está o meu remédio. O doutor disse que eu preciso dele" ela disse olhando para tudo ao seu redor. "Cadê as minhas coisas?" ela perguntou. Ela chama aquela bagunça de coisas? Foi tudo que Ayla pensou.
"Aqui estão os remédios" Ayla pegou uma caixa de medicamentos na primeira porta do armário. Viu a nota do Doutor Raimond na geladeira e separou as pílulas corretamente. Então as entregou a avó.
A velha olhou os comprimidos com desconfiança. Analisando a jovem atentamente.
"Pode tomar senhora. Foi o doutor Raimond que me mandou" Ayla usou a orientação do doutor. Funcionou! Assim que recebeu está informação a senhora tomou a medicação.
Após isso cambaleou, com dificuldade, até o sofá da sala aonde passou o restante do dia sem dizer mais nenhuma palavra. Ayla se questionou se talvez o remédio não era forte demais. Porém, ficou ocupada com a limpeza e acabou deixando isso de lado. Ainda mais que tinha um problema maior em mente. A avó vivia de uma aposentadoria enxuta que mal dá para ela mesma. Agora que as despesas medicas aumentaram, Ayla terá que arrumar um emprego na cidade urgente. Então em suas custas pausas ela vasculhava os anúncios da internet em busca de um vaga de emprego. Por grande ironia do universo, a melhor oportunidade que viu foi como empregada domestica na casa dos Greyback. A entrevista aconteceria no dia seguinte pela manhã. Os interessados deviam mandar um e-mail se candidatando. Por sorte as inscrições ainda estavam abertas.
Após mais um longo dia na faxina, Ayla finalmente pode dormir em quarto decente. Na cabeça ainda se questionava se devia ou não aparecer na entrevista no dia seguinte. Como se toda aquela situação já não fosse humilhante suficiente, ela teria que pedir emprego justo aquela gente. Infelizmente, aquela seria a melhor oportunidade da cidade. O salário era bom, seria o suficiente para as despesas e ainda sobraria um pouco. Se ela for organizada e juntar por um tempo...Quem sabe.
Com o celular em mãos Ayla analisa o e-mail novamente. Assim que chega ao local marcado percebe que tem grande quantidade de candidatas. Acabando no fim da fila. Isto é péssimo, ela não pode correr o risco de quando chegar sua vez a vaga já tenha sido preenchida. Sem um plano reserva, terá que impressionar em sua entrevista.
***
Arcadia é uma pequena cidade interiorana. Por causa disso os ricos do lugar são muito poderosos. Pois além de deterem o poder econômico, sendo donos das maiores fontes de renda e chefes de grande parte da população, tem o poder político. Esse é caso dos Greyback.
No entanto, Ayla tem uma historia maios com a família. Os Greyback eram donos da mina em que seu pai trabalhava incansavelmente. Por mais que o homem dedicasse sua vida ao local. Quando ela ainda tinha por volta dos 8 anos, o local foi fechado. O motivo é que ele não estava gerando lucro o suficiente aos olhos do patriarca. Foi assim que sua família passou de uma vida pobre, a completa miséria. Desesperado o pai de Ayla cometeu o pior ato contra a própria vida. Quando ela voltou da escola e entrou na casa, o encontrou sem vida no chão. A mãe dela, agora mãe solteira, se viu em uma terrível situação: viúva, com uma criança, cheia de dividas e sem dinheiro ou emprego. Começou a trabalhar como costureira, mas era um emprego complicado em uma época de crise. Desesperada acabou vendendo a casa para os próprios Greyback que se aproveitaram do desespero dela para comprar o local muito abaixo do preço que valia. De maneira que não foi o suficiente para resolver os problemas dela. Foi assim que ela acabou saindo de casa e se jogando da ponte. O corpo nunca foi encontrado.
Ayla, agora órfã, teve a guarda oferecida a avó, que não aceitou e a menina acabou indo para o orfanato no estado vizinho. Aonde ficou até atingir a maioridade.
***
No lado oposto da cidade. Na mansão Greyback, o Senhor Versipélio, chefe da família, orientou o empregado, Benjamin Collins, que escolhesse uma nova funcionária para a casa. Para substituir a senhora Rosário, que está se aposentando. Lembrou que devia seguir as diretrizes de contratação. Um documento que lhe entregou junto de uma pilha de fichas de candidatura.
A seleção estava ocorrendo em uma empresa de administração na cidade e em pouco tempo a fila estava gigantesca. Benjamin teria o auxílio de uma psicóloga da empresa para tomar sua decisão, mas sua palavra era o ponto final. Em seus muitos anos trabalhando na mansão, ele sabia de cor o que o Sr.Greyback queria. Alguém discreta que estaria disposta a manter tudo que visse e ouvisse lá para si. Alguém que eles pudessem ameaçar se precisassem, que tem um ponto fraco evidente. Ainda assim, fosse educado e gentil para que os visitantes não desconfiassem de nada. Todas as faxineiras são mais velhas que o Sr.Greyback, acima de cinquenta anos, ele não quer problemas com a esposa. Elas não podem ser muito bonitas também. Com apenas isso conseguiu eliminar grande parte da fila. Foi quando Charlotte Tabolt apareceu. Ela era perfeita, já que seu marido é amigo da família. Ele praticamente deu a vaga como preenchida.
Muitas ainda estavam ali para ser entrevistadas e ele continuou por mera formalidade. Foi quando se sentou em sua frente uma jovem. Deve ter acabado de atingir a maior idade, pensou. Não serve. No entanto, quando a garota começou a falar que estava de volta a cidade para cuidar da avó com Alzeimer, ele entendeu que estava falando sobre Evea. Oh Evea. Aquela que nunca teve. Foi apaixonado por ela a três décadas atras. Antes dela se casar com um forasteiro e toda aquela desgraça acontecer na família. Ficou triste por saber o que acontecia a ela agora. Teve instantânea compaixão da jovem. Porém, não poderia coloca-la na vaga. O sr.Greyback enlouqueceria. Foi quando se lembrou de uma conversa que teve com o ele dias antes. Sobre contratar alguém para uma função especial que ele explicaria melhor depois. Não havia nenhuma exigência para o cargo ainda. Então seria a desculpa perfeita para contrata-la.
Foi assim que Ayla acabou como assistente pessoal do filho do Sr.Greyback e herdeiro da família, Atlas Greyback.
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