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Caminho da Discórdia

Caminho da Discórdia

MARl

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Capítulo

Após uma confusão inesperada, o jovem Guilherme decide seguir a vontade de sua influente família e cursar sua faculdade em uma cidade no interior. O que ele não sabia era que naquele dia encontraria um novo caminho para seu destino.

Capítulo 1 Prólogo: O Ruir dos Três Mosqueteiros

PDV: Guilherme

A noite está quente, uma daquelas que é possível sentir o motor quente dos ônibus e outros veículos que passam perto de você pelo trânsito. Parar no semáforo é passar alguns segundos no próprio inferno. Não sou muito fã desse calor, mas essa sexta-feira é tão especial que eu não teria outra escolha senão sair do meu quarto com ar condicionado, séries e todas as bebidas que eu poderia querer. Mas o motivo é realmente ótimo.

Toda a galera vai se reunir numa boate recém-inaugurada no centro da cidade para comemorar o aniversário do meu melhor amigo, Nico. A turma marcou de começar a festa às nove da noite, daqui a cinco minutos, mas prefiro chegar quando todos já estejam animados. O começo da festa, com todos aqueles cumprimentos forçados, não me cai muito bem.

Além dos colegas da sala, minha namorada Laura também estará lá. Ela estuda em turno diferente de nós, mas a maioria já a conhece e gosta dela. Mandou-me uma foto antes de sair de casa mostrando seu look, um vestido preto rodado de comprimento que para acima do joelho, amarrado na parte de trás do pescoço. Seu cabelo castanho está enrolado em uma trança repousada em seu ombro esquerdo, o que valoriza seus lindos olhos verdes e sua maquiagem bem feita. Por último, reparo em seu salto preto altíssimo. Ela é baixinha e odeia isso.

Laura está vestida bem oposta de como eu estou. Apenas vesti um tênis branco, meu jeans mais claro e uma camisa xadrez branca e vermelha, os primeiros dois botões deixei abertos. Os caras devem estar desse jeito também, sei que me sentirei à vontade. A minha turma é muito boa, eu não sei o que faria sem eles.

Dirijo pelas ruas largas, reparando como a noite aqui está iluminada, uma lua cheia lá no alto, movimento de carros maior que o normal. Eu poderia fechar as janelas e ligar o ar condicionado, mas eu tenho uma sensação boa e também estranha de ver a cidade… Como se eu estivesse reparando pela primeira vez como esse lugar é familiar e quão bem eu me encaixo aqui. Quando esses pensamentos se interrompem, eu rio. Eu nunca penso clichê assim. Deve ser só um presságio de como a noite vai ser louca. Até esqueço da minha preferência por chegar um pouco depois, piso no acelerador e sigo na direção da boate. Só quero estar junto da minha turma logo.

Menos de dez minutos passam até eu encontrar na rua da boate. Estou a poucos metros, mas reparo em muitos carros estacionados e luzes verdes e brancas brilhando na entrada. Estaciono meu carro um pouco antes, guardo a chave no bolso junto com o celular e caminho na direção daquela gente toda. Eu já observo e reconheço algumas pessoas da faculdade fumando no lado de fora, outras saindo dos carros e entrando rapidamente; falo com alguns deles mas não perco muito tempo. Mostro minha identidade para os dois seguranças de preto, eles conferem meu nome na lista de convidados e me dão passagem. Passo por um corredor escuro e aveludado, que me permite ver o jogo de luzes e ouvir a música eletrônica antes mesmo de chegar no interior. As luzes me cegam um pouco, mas estou certo de que cheguei quando ouço os caras gritando meu nome e rindo alto.

— Feliz aniversário, cara! — digo dando um meio abraço em Nico assim que ele se aproxima.

— Valeu, mano, que bom que você está aqui.

Ele coloca uma lata de cerveja em minha mão e eu a viro na boca sem nem mesmo parar pra ver se estava aberta. Estava. O líquido desce bem gelado pela minha garganta, tão rápido que quando vou ver já acabou. Peço mais uma e Nico me pede que o acompanhe até o bar.

Nós caminhamos juntos até um balcão de vidro com vários homens uniformizados atrás dele, garrafas e copos de vidro, de diversos tamanhos e formas. Um cara prepara uma bebida de cor forte para uma plateia de curiosos animados, a maioria da nossa turma. Estou olhando na direção deles quando sinto algo gelado sobre o pano da minha camisa. Nico tinha se debruçado sobre o balcão e puxado a lata de cerveja de algum lugar. Eu a seguro e a abro rapidamente.

Nico Mendes é meu melhor amigo desde a infância. Seu pai trabalha com o meu no hospital da minha família há mais de vinte anos, isso também é coisa dos nossos avós. Na maior parte do tempo estou em dúvida se realmente quero ser mais um médico na família, porque isso não era bem o que queria antes. Ainda não é… Quando estou treinando ou estudando sozinho, penso em desistir da faculdade. Mas além dos meus pais, não desisto também pelos meus amigos. Eles estão comigo há muito tempo e é justo que terminemos isso juntos também, mesmo que não seja a minha felicidade total.

Ainda falando sobre Nico, ele é um dos caras mais bonitos da faculdade. Várias garotas já chegaram em mim me pedindo para ficar com ele, mesmo sabendo que ele namora sério há meses. Deve ser seu cabelo loiro encaracolado e olhos azuis que lhe dão uma aparência de uma perdição de verão, bem diferente da minha pele pálida, meu cabelo castanho e sem graça. Eu uso óculos pra ler, já ele malha e parece um surfista. Parecemos um o oposto do outro, mas nos damos muito bem. Ainda temos o terceiro membro dos três mosqueteiros, Theo, que chegou depois mas também é muito amado. Ele é o mais tranquilo de nós, também o único que não está namorando. Namorando sério, porque parece que a cada fim de semana ele pega uma caloura diferente. Ele é mais baixo, porém também atraente com o cabelo raspado, sua pele morena e os braços fortes. Nós três somos bem diferentes mas ainda assim somos quase irmãos. Já brigamos várias vezes, mas nada nunca nos separou. E sempre será assim.

Nico me deixa sozinho para ir falar com as pessoas que chegam a todo tempo. Ele é o aniversariante e também o centro das atenções. Vou num canto onde estão as mesas mas fico de pé, olhando pelos cantos da boate pra ver se encontro Laura, mas não a vejo.

Permaneço de pé observando o movimento, as pessoas dançando, outras chegando e também procurando por Nico. A música está tão alta que faz parecer as mesas tremerem, mas nada me anima a ir lá dançar sozinho, tenho muita vergonha disso. Fico absorto vendo esses futuros médicos curtindo a vida antes de terem tantas responsabilidades… nem sei porquê estou tão reflexivo hoje. Estou feliz, mas a aura é um pouco estranha. Chego a esquecer da cerveja em minha mão.

De repente, um par de mãos conhecidas bloqueia minha visão. Sinto um corpo pequeno roçando no meu, mas o que me faz ter certeza é esse cheiro de perfume forte que ela sempre usa.

— Eu estava procurando por você — digo sorrindo.

Laura então tira as mãos da minha visão e surge em minha frente com aquele olhar esperto e um sorriso único. Une suas mãos atrás do meu pescoço e beija meus lábios com calma. Eu a seguro pela cintura.

— Chegou há muito tempo? — ela pergunta inclinando a cabeça.

— Mais ou menos. E você?

— Eu estava… no banheiro.

Laura hesita em sua resposta. Ela parece estar mais fingindo estar bem do que estar realmente.

— Está tudo bem? — pergunto.

— Está, sim. Não se preocupe.

Ela então sorri fraco e me abraça.

Pelas próximas horas, eu faço o que Laura pede e esqueço um pouco as preocupações e os sentimentos esquisitos que me rondavam. A galera vai chegando e tudo ficando mais agitado. Os caras vão conversando e me animando cada vez mais. Zoamos muito com Nico, jogamos bebida em sua cabeça várias vezes. Tiramos fotos, jogamos sinuca, fazemos diversos desafios e eu realmente vou rindo e me divertindo muito.

Quando eu já não tenho mais noção de que horas são e de quantos copinhos e latinhas eu já virei, preciso me encostar em uma das paredes. Não estou mal pela bebida, na verdade sou bem forte com isso e raramente fico de ressaca, mas acho que são essas luzes e o calor que não me fazem bem. Tento manter minha cabeça pra cima e controlar a respiração. Porém, no outro canto, na direção do banheiro feminino, algo incomum me chama atenção: reconheço meu amigo Theo entrando naquele espaço restrito, olhando para trás e para o lado, certo de que está fazendo algo errado. Mantenho meu olhar ali. Nem meio segundo se passa para aparecer outra pessoa e entrar no banheiro da mesma forma escondida e desconfiada que Theo entrou. Essa pessoa é Tina, a namorada de Nico.

Tento imaginar o que esses dois, e principalmente Theo, estão fazendo ali, no banheiro feminino, enquanto estão todos aqui fora festejando. Eu não consigo parar de pensar na opção mais pervertida que me vem à mente.

Dois minutos se passam. Três, quatro, cinco. Nenhum movimento. Ninguém repara em mim aqui parado, nem ninguém sai daquele banheiro. A ideia de que esses dois estejam fodendo ali dentro, na festa de aniversário de uma pessoa importante para ambos, faz meu sangue ferver. Traz de volta a energia que o calor me roubou.

Mais algum tempo passa, e nada. Eu então decido ir verificar, antes que algo horrível aconteça. Nem passo pela pista de dança, não quero que ninguém me veja. Contorno o caminho por trás das mesas e cadeiras, na lateral mais escondida da boate. Chego na porta do banheiro. Olho para trás, todos continuam ocupados demais para repararem aqui. Então, ponho minha mão na maçaneta.

— Não faça isso!

Laura surge na minha frente, sei lá de qual lugar, e se cola na porta do banheiro, protegendo a entrada como se fosse sua própria vida. É aí que desconfio que ela saiba de tudo que está possivelmente acontecendo lá dentro.

— Laura, não me diga que você é cúmplice disso!

— Cúmplice de quê, Gui? Eu só não quero que entre aqui, é um lugar das mulheres.

O sorriso em seu rosto é o mais falso e desesperador que já vi.

— Eu não acredito que está mentindo pra mim.

— Mentindo sobre o quê? Não vamos chamar a atenção das pessoas, por favor — ela sussurra.

— Ah, eu não acredito! — grito, mas ainda não é mais alto que a música. — Você está deixando a namorada do meu melhor amigo trai-lo no dia do aniversário com o outro melhor amigo dele? Vocês não têm vergonha?

— Não é nada disso, por favor vamos sair daqui — ela rebate sem nunca desgrudar da porta cor de rosa.

— Eu vi eles entrando, Laura! Eu não vou deixar que isso aconteça debaixo do nariz do Nico, na festa dele!

— Guilherme, pelo amor de Deus, fale baixo! Eu juro que vou te explicar o que você quiser mas não faça nada, eu te peço.

Eu nem havia reparado que estava falando mais alto.

— Isso não tem explicação! Que tipo de amiga você é?

— Vamos embora, por favor, não vamos nos meter nisso. — Ela segura meu braço mas eu nem me movo.

— Ei, o que vocês estão fazendo aí? — Nico surge ao nosso lado, um sorriso grande e descontraído o dominando.

Olho para Laura. Seus olhos literalmente imploram por silêncio antes dela mesma responder ao Nico.

— Não é nada. Tá tudo bem.

Nós nos entreolhamos.

— Não estão tendo uma DR agora, estão?! — Nico pergunta mas não espera nenhuma resposta. — Falando nisso, cadê a Tina? — Passa seus olhos azuis sobre a festa com atenção.

— E-eu não sei, vamos lá procurá-la! — Laura aponta na direção da pista de dança.

Em um movimento rápido, empurro Nico com minhas mãos em seu peitoral até a parede branca na lateral do banheiro. Ele se encosta, me olhando confuso enquanto eu falo. Laura surge atrás de mim, protesta com gritos, mas é inútil. Eu não posso enganar meu amigo, nem que pra isso tenha que prejudicar um outro amigo. Mas nessa altura eu já não sei quem é o quê do outro.

— Eu vi sua garota entrando nesse banheiro, Nico.

— Ué, e daí? — Ele levanta os ombros.

— Guilherme! — chama Laura, mas ignoro.

— O problema é que eu vi Theo entrando ali um pouco antes dela. No mesmo banheiro.

No mesmo instante, os olhos azuis e simpáticos de Nico ficam escurecidos e raivosos. Ele olha na direção da porta e, sem pensar duas vezes, vai até lá, passando e esbarrando com certa força em mim. Ele abre a porta em um só golpe com a mão; ela bate contra a parede e pela primeira vez faz um ruído que supera a música do local. Todos olham nessa direção. Eu fico parado, vendo Nico adentrar no banheiro e gritar lá de dentro:

— O que está havendo aqui?

Eu não ia me meter, mas no mesmo instante que Nico grita, Laura entra no banheiro. É instintivo, devo protegê-la nem sei de quê, mas há uma sensação estranha dentro de mim. Ela não pode ficar sozinha lá com tanta raiva.

Quando entro, a cena não é o que eu esperava, mas sinto que também não é nada boa. Ambos estão de frente para a porta, lado a lado, vestidos, mas com uma cara de surpresa e talvez também medo. Tina usa um vestido branco colado e tem o cabelo loiro solto, alguns fios presos na testa por causa do suor. Theo usa roupas pretas e parece estar suando também.

No meu lado direito, há um grande espelho, quase do tamanho da parede inteira, na parte de baixo há uma pia de mármore preenchida por várias torneiras eletrônicas. Já no lado esquerdo, há umas seis cabines de portas fechadas, mas no meio delas há uma de porta aberta. Só uma.

— Ninguém vai me contar o que está acontecendo? — Nico insiste após o silêncio.

— É… Eu não estava me sentindo muito bem, Nico — começa Tina. — Estava enjoada e pensei que fosse desmaiar. Theo me trouxe até aqui pra vomitar. Foi isso.

— Ah, foi isso? Guilherme viu ele entrando antes de você.

Nesse momento Theo me olha um pouco desolado.

— Isso não faz sentido — responde Tina.

Nico dá um passo na direção de Tina e segura o queixo dela, eu presumo que com força, pois ela exala um grito.

— Quando você vai parar de mentir pra mim, sua vaca?

Eu também dou um passo à frente tentando puxá-lo de volta pela camisa, antes que ele machuque a menina.

— Ela já disse que não aconteceu nada, você que não quer acreditar — Theo rebate.

— Seja homem, seu merda! — Nico grita e agora dá um empurrão em Theo. — Seja homem e assuma que você estava comendo a minha namorada no meu aniversário e ainda diz que é meu amigo! Você é um merda!

— Laura, chame os seguranças, vai! — peço e a vejo correr para fora do banheiro.

— Nico, isso é só um mal entendido, por favor, deixa ele. Vamos lá pra fora que eu te explico tudo. — Tina pede.

— Mal entendido? Vamos ver…

Antes que qualquer um de nós proteste, Nico entra na única cabine que está com a porta aberta. Ele logo sai de lá com uma embalagem rasgada de camisinha. Passo minha mão pela testa e pelos meus cabelos, porque isso só vai ficar pior.

— Cara, calma.

— E agora, Tina? É só um mal entendido? — pergunta aos gritos. — É?

— Você é louco! Isso pode ser de qualquer garota. Você tá paranoico!

Pra mim e talvez até pra Nico já está claro o que aconteceu aqui e em vez dela admitir pra tornar tudo menos pior, não, ela segue negando e mentindo. Essa mulher não presta. Meu amigo também não.

— Eu sei que essa é a camisinha que você compra. Eu sei! Para de mentir, Tina! Acabou!

— Para! — Tina grita.

Nico a segura pelos ombros e começa a sacudi-la. Ela grita. Theo e eu ficamos cada um de um lado tentando separá-los, mas agora Nico parece o cara mais forte do mundo.

— Você vai perder a cabeça — sussurro para meu amigo. — Vai agredir uma mulher, cara, que isso?

Ele para.

— Tem razão… Isso vai acabar mal pra mim. Mas não se eu acabar com esse cara.

Rapidamente, Nico se solta de Tina e lança um soco bem no meio do rosto de Theo. Ela se encosta em uma das cabines, mas Theo cai no chão com a força do soco. Nico também vai ao chão e fica por cima de Theo, socando e xingando-o sem parar. O nariz dele começa a sangrar. Tento me aproximar para separá-los, mas algum deles atinge meu olho direito, eu coloco a mão por cima dele imediatamente. E eles continuam se socando.

— Parem com isso! Parem, vocês vão se machucar! — peço aos gritos.

Tina se aproxima e puxa Nico pela camisa, levantando-o do chão.

— Eu te explico tudo, para, por favor.

Ele fica olhando-a ofegante, com raiva, o canto da boca começando a sangrar. Enquanto isso, Theo, também com o rosto cheio de sangue, se ergue. Para a minha surpresa, ele não deixa isso se acalmar. Pelo contrário. Theo corre até Nico e o empurra com força contra o espelho na parede, e boa parte dele se quebra, deixando o chão cheio de cacos. O barulho é muito forte, mas Nico não cai. Continua trocando socos com Theo. Tina começa a chorar muito ao meu lado.

— Por favor, sai daqui — peço a ela, que olha uma última vez para os dois se quebrando e sai do banheiro aos prantos.

Eles caem no chão, por cima dos cacos. Mal enxergo por causa do soco. Estou tonto e sem força para gritar, mas pelo jeito que eles estão ferozes, vão acabar se matando. Só que, finalmente, dois seguranças de preto entram e agem. Gritam e, ainda que também saiam atingidos, separam Nico e Theo, cada um segurando um pelos braços. Meus amigos estão ensanguentados, feridos, sujos e, ainda por cima, bêbados.

Pra piorar, um terceiro homem entra pela porta. Este mais baixo, cabelos grisalhos, blusa listrada cinza e uma calça de couro preta.

Fica olhando com espanto o estrago que restou no banheiro: o chão tomado por cacos de vidro quebrado do espelho, manchas de sangue, marcas de sapato e até mesmo a embalagem da camisinha, mais intacta que qualquer um de nós. Seu rosto fica sério e ele olha para Nico com muita raiva.

— Vou ligar para a polícia — ele anuncia, deixando nós três incrédulos.

— Não é necessário polícia — reajo mesmo sabendo que ele não falou comigo.

— É sim, esse senhor sabia dos riscos de alugar minha casa para um bando de adolescente e fez um acordo comigo, qualquer confusão era polícia na hora. — O homem digita três números no celular e o põe sobre a orelha. — Já estou ligando.

Nessa altura eu já não sei se a música está interrompida ou se só consigo ouvir meu coração acelerado por puro desespero.

*

Uma hora e meia se passa. Estou numa sala de espera da delegacia mais próxima da boate. Eu não sei do que estou sendo acusado, ou se estou sendo acusado de algo, só pediram meus dados e me mandaram esperar. Nico e Theo também estão aqui, cada um em uma sala solitária diferente. Mais pessoas foram trazidas, mas acho que estão sendo liberadas, a movimentação e o barulho lá fora diminuem conforme os minutos passam. Não vi Laura depois que tudo aconteceu, mas estou com muita raiva dela. Por que não me contou? Por que deixou que meus dois melhores amigos chegassem a esse ponto? Porque ela sabia, ela é a melhor amiga de Tina e vive com ela em todos os cantos. Ela estava ali perto do banheiro caso alguém chegasse. Ela sabia que estava ocorrendo uma grande traição na nossa amizade valiosa e simplesmente deixou tudo ruir. Deixou que tudo acontecesse em um dia que era pra ser especial para Nico… Eu não sei se consigo perdoá-la. São tantos pensamentos, a única coisa boa disso tudo é que consegui um curativo em meu olho. Como se eu já não estivesse um morto-vivo, estou vendo por um olho só.

Fico de pé quando reparo que alguém está abrindo a porta. Vejo o guarda que ficava fazendo minha segurança e, logo em seguida, entra meu pai. Fico arrepiado dos pés à cabeça. Ele provavelmente estava dormindo, a julgar pela sua cara, tendo um dos poucos dias que ele passa sem trabalhar. E agora está aqui olhando pra mim da forma mais fria que já vi.

— Aí está seu filho, senhor. Cuidamos para que ele não ficasse pior do que já está — informa o guarda.

Será que devo agradecer por isso?

— Obrigado, policial, e desculpe esse tormento.

— Tá tudo certo.

Meu pai então me olha.

— Vamos embora, Guilherme.

Começo a segui-lo assim que ele anda.

Não entendo porquê chamaram meu pai. Eu sou maior de idade. Eu sou maior de idade, droga! Não fiz nada de errado. Nem sei se fiz alguma coisa. De qualquer forma tenho responsabilidade para me livrar daqui sozinho.

Meu pai Roy está com quase cinquenta anos. É um cara baixinho, rechonchudo, tem os cabelos e olhos escuros e também usa óculos pra ler como eu. É amoroso, mas tão controlador que chega a ser sufocante. Assim como minha mãe, Vanessa. Ela tenta me proteger de tudo, mas não se estressa a ponto de lhe fazer aparecer rugas, isso para ela seria como a morte. Ela é alta, mais alta que ele inclusive, cabelos loiros de farmácia, sedosos e brilhantes. A pele bronzeada, olhos castanhos, está sempre arrumada e segura de si. Eu não sei como eles me deixam sair com meus amigos, honestamente. Tenho vinte e um anos, mas é como se minha vida fosse um xadrez e eles controlassem todas as peças. Talvez seja isso, eles controlam até meus amigos, sabem que são filhos de pessoas influentes, a maioria já conhecidos e parceiros, sabem que é boa companhia. Ou era.

Meu pai chama o táxi e lembro que estou com as chaves do meu carro no bolso. Nem abro a boca.

Vinte minutos depois, estamos em casa. Uma mansão branca de dois andares com jardim e piscina na área mais cara de River, nossa cidade. Eu vejo luzes acesas, bem incomum nessa hora da madrugada. A viagem toda foi no silêncio. Meu pai paga ao motorista e não pede troco. Desço primeiro do carro, mas é meu pai quem abre a porta de casa. Entro para a sala e antes mesmo de ver minha mãe, ouço seu espanto ao me ver com um olho coberto.

— Mas o que foi que aconteceu? — Ela surge usando uma camisola de seda branca até o pé, o cabelo preso num coque alto e a cara cheia de uma máscara gosmenta verde. Apenas os olhos e a boca estão de fora.

— Essa foi a noite do seu filhinho, Vanessa — diz meu pai.

— Mas eu não fiz nada! — rebato.

— Eu ainda não te mandei falar, mas se não tivesse feito nada, não estaríamos aqui agora.

— Eu só fui na festa do meu amigo!

— É, uma festa com drogas, dinheiro, bebida alcoólica para menores. Essa foi a sua festa.

— Eu não fiz nada de errado!

— Como foi que você acabou assim, meu filho? — minha mãe pergunta enquanto acaricia meu cabelo.

— Nico e Theo brigaram. Eu só fui ajudar.

Meu pai anda de um lado para o outro sem cessar. As duas mãos coladas nas costas, suor escorrendo pela testa e um bico de raiva se formando involuntariamente na boca.

— Mas por que você foi parar num lugar assim, meu bebê?

— Mãe, todos os meus amigos estavam lá. Eu sempre estou com eles. Hoje as coisas só saíram do planejado, só hoje.

Meu pai respira fundo de irritação e logo começa a falar.

— Quando é que você vai ter o juízo que você não é um cara que pode sair sem limites com seus amigos? — ele me pergunta. — Eu sei que eles são importantes, mas você é muito mais. Você tem um sobrenome, é o nosso herdeiro, futuro médico e dono do nosso hospital. Você não é um deles!

— Pai, para de falar como se eu tivesse feito algo fora do normal. Eu já falei que foi um imprevisto e eu não fiz nada de errado. Só devem ter me segurado lá pra fazer uma graça pro senhor.

— Quem tá fazendo graça é você! — Ele aponta seu indicador pra mim e eu reparo em seus olhos saltitantes pelas lentes do óculos.

— Seus colegas já picharam muro, reviraram ferro velho, dormiram pelados na praia, e você sempre vem com essa de que não faz nada.

— Mas eu não faço mesmo!

— Não me importa, hoje foi parar na polícia, passou de todos os limites! Eu preciso te orientar antes que você acabe com seu sobrenome.

— O sobrenome é seu, pai, eu nunca quis nada que me fizesse parecer mais um de vocês. Devia parar de se importar tanto com a minha vida! — respondo sem pensar.

— Eu me importo, sim! — ele grita de volta, a pele branca de seu rosto já ficando vermelha. — Você é meu filho, tem meu sobrenome, e não vou deixar que arruíne tudo por causa de sua ignorância. A partir de hoje, eu vou comandar seu futuro como já devia ter feito há muito tempo antes!

— Vai fazer o quê, pai? — Reviro os olhos. — Vai me prender, vai me amarrar, colocar seus seguranças atrás de mim?

Ele expira profundamente. Ajeita o óculos que escorrega no nariz e novamente me aponta seu indicador como se me jogasse uma maldição.

— Assim que amanhecer eu vou te transferir de faculdade. Você vai pra outra cidade.

— O quê? — eu pergunto alto e incrédulo.

— O que está falando, meu amor? — minha mãe pergunta também surpresa.

— Está decidido! Esse garoto sempre teve tudo de mão beijada, e é um poço de ingratidão, então vamos inverter a situação. Vamos mandá-lo a uma outra cidade, sem os amiguinhos dele e com metade da mesada. Assim ele só volta quando for um médico formado e responsável, que é isso o que aturamos nessa família.

— Você não pode fazer isso! — reclamo alto. — A vida é minha e eu não vou a lugar nenhum!

Meu pai se aproxima e me encara de frente.

— Até você ser um homem responsável e um médico de verdade, a vida é minha. Eu dei tudo pra você existir hoje e você não vai

me contrariar.

— Mas eu não vou mesmo — reforço.

— Pode reclamar o quanto quiser, já tomei minha decisão. Vá já para seu quarto!

— Mãe… — Olho na direção dela. Ela fica sempre do meu lado, não é possível que me deixe agora.

— Vá para seu quarto, Guilherme. Depois conversamos — ela responde.

Pelo visto eu estou enganado.

*

Agora eu estou como meu pai. Ansioso e nervoso, ando de um lado pro outro esperando alguma resposta. Eu não quero sair daqui, da minha cidade, aqui é o meu lugar. Já faço a faculdade que eles querem, me comporto como eles querem, eu tenho pelo menos o direito de ficar onde eu quero e com quem eu quero. Não sei o que fiz pra merecer essa injustiça toda. Não pedi para nascer, e se tivesse opção, não seria parte dessa família. Eles podem ter me dado tudo o que tenho, mas é falso, eles só estavam me moldando esse tempo todo para ser o filho que eles querem. Existir aqui é mais como uma prisão.

Ouço duas batidas de leve na porta do meu quarto, e antes que eu responda, minha mãe entra já com o rosto sem a máscara verde. Ela fecha a porta de leve e coloca alguns fios de cabelo que escapam de seu coque para trás da orelha e respira fundo antes de falar comigo.

— Oi, Gui.

— Você falou com meu pai, mãe? Fez ele tirar essa ideia absurda da cabeça?

Ela respira fundo novamente.

— Não, filho, seu pai está decidido e vai prosseguir com sua mudança. E, pra falar a verdade, eu também acho que é uma boa ideia.

— O quê? — Olho para ela sem acreditar, o queixo caído de surpresa. Minha mãe sempre fez de tudo para que eu ficasse perto dela, até mesmo afastou umas garotas com quem eu tinha interesse para não atrapalhar nossa relação. Eu já a perdoei por isso, até porque eu era bem mais novo, mas agora eu não entendo como ela simplesmente pode concordar em me mandar para longe assim de repente.

— Ah, meu filho, para pra pensar um pouquinho. Veja só o tanto de confusão que seus amigos já te colocaram. Nós só queremos te ver longe disso.

Eu rio com ironia.

— Os pais deles são ricos, mãe! Foram vocês que sempre me empurraram pra fazer amizade com eles. Agora que dá certo, vocês querem me tirar. Aposto que nem pensaram nas partes ruins que isso podia ter.

— É, mais ou menos. Não pensamos mesmo nas partes ruins, mas agora que aconteceu e queremos tomar providências, você não aceita.

— A vida é minha! — falo mais alto, chego a sentir meus olhos se arregalando. — Eu tô cansado de só seguir as ordens de vocês.

A expressão dela fica mais séria do que quando ela entrou aqui. Talvez nem ela saiba o que fazer e isso me deixa em desespero interno. Sento-me na beira da minha cama e inclino minha cabeça para frente. Nem tomei tanto soco mas sinto dores em todas as partes dela.

— Olha só pra você, filho — ela inicia e se senta ao meu lado. — Todo sujo e machucado e nem é a primeira vez… Dessa vez nós não estamos te controlando, é realmente para te proteger. — Sinto-a acariciar a lateral do meu cabelo. — Eu não quero te ver assim de novo ou até pior.

— Mas eu não quero abandonar tudo, mãe — é tudo o que consigo dizer.

— Seu pai está muito magoado, eu o conheço e não vai adiantar em nada eu tentar mudar a cabeça dele agora. Então podemos fazer um acordo aqui entre nós dois: você passa uns dias fora e, se você não se adaptar de jeito nenhum, eu prometo que eu mesma te trago de volta. Mas você precisa tentar porque não posso contrariar seu pai agora. Você me ajuda nessa?

Não consigo responder nada porque na minha mente eu só consigo negar mil vezes tudo o que eles falam.

— Por favor, Gui. Assim vai ser melhor. Pelo menos tenho uns dias para convencer seu pai, hm? — Ela me acaricia novamente. — Promete pelo menos que vai pensar nisso? Pode ser que isso seja só uma tempestade passageira.

— Tá bom — concordo só para encerrar esse assunto por hoje. — Eu vou pensar.

— Que bom, meu filho. — Ela me abraça e beija minha testa, tomando muito cuidado com meu olho machucado. Minha mãe é esse jogo de oito ou oitenta, ela me protege e me ampara quando estamos juntos, mas quando meu pai entra na história ela é incapaz de dizer uma palavra contra ele.

E foi assim, prometendo pensar nessa ideia que mudaria minha vida e meu futuro, que eu não consegui pregar os olhos à noite.

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