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Coração de Cristal

Coração de Cristal

Ana Pitanga

5.0
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1
Capítulo

Madison nunca foi do tipo de criar raízes e desde muito jovem aprendeu a não se apegar demais as pessoas. No entanto, após descobrir que a misteriosa morte de seu pai pode esconder muito mais segredos do que imaginava, ela decide começar a investigar e dessa forma acaba envolvida em um mundo de crimes e traições. Inevitavelmente, Madison terá de aprender a confiar nas pessoas mais inusitadas e logo perceberá que estar sozinha talvez não seja o único caminho para proteger seu coração.

Capítulo 1 Um

Madison

Eu nunca fui do tipo que cria laços a algum lugar. Desde que me entendo por gente, venho vivido tal como uma tartaruga ou um caramujo: nunca no mesmo lugar por muito tempo.

Minha família sempre esteve em constante mudança. Nunca passamos mais de um ano em uma só cidade e eu nunca entendi o porquê. Só sei que as sequelas de uma infância desapegada me acompanham até hoje.

Mesmo após sair da casa dos meus pais, continuo mantendo esta "tradição":

Nunca passo mais de um ano em um só apartamento;

Nunca passo muito tempo com o mesmo número de celular ou e-mail;

E para completar, amizades nunca duram muito tempo na minha vida.

Eu sei, parece um tempo pretensioso e solitário, mas, na verdade, não é. Acho que quando se é criado de tal forma, você simplesmente aprende a se acostumar com algumas coisas mais facilmente.

No entanto, eu poderia dizer que nem tudo na minha vida é de fato temporário. Assim como a minha família, que será a mesma até a morte - obviamente -, encontrei um amigo no qual sei que espero ainda passar muitos e muitos anos: um pastor australiano de dois anos de idade a quem nomeei de "Felix".

O encontrei logo na minha primeira semana em Nova Iorque, quando passei na frente de um pet shop. Ele ainda era filhotinho e não pôde deixar de chamar minha atenção. Com aqueles seus olhos azuis e pêlo fofinho, eu me derreti por inteira.

Durante algumas semanas ainda o vi apenas através da vitrine. A cada vez que eu passava a caminho da faculdade, ele me seguia com o olhar e inevitavelmente eu me apaixonava cada dia mais. Até que finalmente criei coragem para adotá-lo e ele rapidamente se tornou o centro da minha vida e o mais novo dono das minhas meias.

No entanto, para o desgosto de Felix, há outra paixão que compete consigo pela minha atenção. Uma um tanto menos ciumenta e babona, mas tão terapêutica quanto. Bom, talvez terapêutica seja uma palavra forte, a menos que a comparemos com algum tipo de terapia de choque.

E sim, eu estou falando da escrita. Que para muitos é um meio de refúgio, tal como para mim. Durante muitos anos me ajudou a focar minhas energias e dedicação a algo realmente significativo. Não me arrependo de ter perdido inúmeras festas até altas horas da noite na casa de estranhos ou oportunidades de sair com caras que pareciam ter ao menos o mínimo interesse em mim.

Me esconder no meu quarto para passar horas na frente do computador, digitando rápido e errando diversas palavras no processo, além de sobreviver a salgadinhos e sorvete eventualmente furtados em segredo da cozinha me parecia uma maneira muito mais divertida de passar o meu tempo.

Isso é, quando eu não estava estudando, lendo ou maratonando alguma série de orçamento baixo cujo eu seria a única fã e provavelmente nunca teria segunda temporada.

Minha mãe discorda, mas tudo bem. Cada um com sua própria vida para viver e colecionar erros.

A questão é que, sendo a escrita a minha vocação, eu não poderia optar por uma profissão diferente do que o jornalismo. Eu conheço o meu talento, sempre o conheci, e nunca tive dúvidas de que chegaria longe graças a ele.

E agora, cá estou eu, vivendo o auge da minha vida de estudante de jornalismo em um apartamento pequeno e com um encanamento digno do meu salário de garçonete no Smile Burger.

E não, não se engane pelo nome bonitinho. A comida ainda é uma bosta.

Mas não, eu não posso reclamar. Afinal, é a minha única maneira de pagar as contas e impedir que eu termine morando na rua só com a roupa do corpo e um cachorro que só o custo da tosa já é mais alto que o meu celular.

- Pedido da mesa 3!

E aí está o chamado para o dever.

Eu respiro fundo, contenho a vontade de vomitar que me vêm toda vez que sinto o cheiro de gordura velha emanando da cozinha, e caminho até a pequena janela de serviço, pegando os pratos e colocando-os sobre a bandeja. Adiciono duas Cocas Diet e uma Fanta laranja, além dos molhos básicos, é claro. Com tudo pronto na bandeja eu faço meu caminho até a mesa cujo uma família até bem fofa está sentada.

As crianças com sorrisos animados assim que vêem a comida chegar e eu só conseguindo sentir pena de cada um.

- Quatro hambúrgueres, uma porção grande de batata frita, duas Cocas Diet e uma Fanta laranja.

Eu repito o pedido para ter certeza de que não esqueci de nada enquanto coloco os itens sobre a mesa. A mulher mais velha olha para mim e acena com a cabeça como se confirmando que está tudo ali. Vejo uma das crianças pegar o hambúrguer, pouco se importando de sujar a camisa, e dar uma grande mordida no lanche.

Será que se soubessem que o delicioso hambúrguer que tanto esperavam nem mesmo é feito com carne de verdade ainda estariam tão eufóricos assim?

Eu tento não dar atenção ao que obviamente não é da minha conta e apenas continuo o trabalho. O dia passa como de costume: lento e arrastado. No final do dia ajudo meus colegas restantes a limpar o chiqueiro e uma vez que concluímos o trabalho, cada um pega seu rumo de volta para casa.

O cheiro do lugar e do sabão barato e vagabundo que o gerente nos manda comprar para fazer a limpeza ainda está impregnado em mim e eu sei que continuará assim até eu chegar em casa. Parada em frente ao ponto de ônibus, eu tento não desabar em cima de uma idosa parada ao meu lado.

Tudo que consigo pensar é em chegar em casa e me livrar dessa roupa feia e fedida, tomar um banho e me jogar na minha cama. Adoraria ser um urso e hibernar por sete meses, porém tenho uns mil trabalhos da faculdade para entregar e o prazo está curto, ou seja, nada de ceder às necessidades básicas da vida. O dever não espera e a minha professora demoníaca menos ainda.

Eu quase pego no sono no assento do ônibus, mas um buraco na estrada me faz o grande favor de me acordar a apenas algumas poucas quadras de casa. Finalmente o ônibus para em frente ao prédio onde eu vivo - sobrevivo, para expressar melhor - e eu desço sem mais delongas, quase me arrastando até a entrada.

Após dois lances intermináveis de escada, eu finalmente chego ao meu andar - por um momento quase desisti e decidi dormir lá nos degraus mesmo. Abro a porta de casa, jogo minha mochila no sofá e logo em seguida caio sobre o mesmo igual uma roupa jogada de qualquer jeito no chão.

Meus olhos inevitavelmente se fecham e quando estou quase pegando no sono, sinto algo gelado tocar o meu pé. Penso em ignorar, mas digamos que Felix não goste muito de ser ignorado, portanto não desiste até me fazer cair do sofá direto no piso duro e gelado da sala, somente para subir em cima de mim depois.

- Ok, eu vou levantar!

Tento falar em meio a uma leve risada. Logo consigo tirá-lo de cima de mim e, mesmo contra a minha vontade, levanto-me do chão. Acompanho Felix até a cozinha enquanto ele praticamente me arrasta pela barra da calça. Chegando lá vejo o seu pote de ração quase no fim e finalmente entendo o motivo de sua excitação.

Após encher a sua tigela, eu decido preparar algo para mim mesma. Para alguém que só tem vinte e cinco minutos de pausa para o almoço, um pacote de biscoitos e um copo de água são as únicas coisas que consigo comer antes do meu chefe inventar alguma desculpa para me trazer de volta antes mesmo do meu tempo livre acabar.

Há pessoas que aparentemente existem apenas para complicar ainda mais a vida das outras e esse é o caso do meu chefe. Ele é um cretino, para dizer o mínimo.

Eu deixo escapar um suspiro de exaustão enquanto observo o meu macarrão instantâneo cozinhar na panela. Não me julgue, é a coisa mais simples para se fazer e também a única no meu armário, já que a gênia aqui esqueceu de dar uma passadinha no supermercado durante o fim de semana.

Quando fica pronto, eu volto para a sala com um prato e um copo de suco e me sento no sofá. Ligo a TV para assistir algum programa qualquer durante meu jantar e passo os canais até parar em um educacional onde no quadro de hoje estão explicando a origem do vinho. Eu deixo passar enquanto começo a comer, não prestando muita atenção de qualquer forma.

Repentinamente ouço o som de notificação do meu celular e deixo a comida de lado enquanto pego o aparelho do meu bolso. Um suspiro me escapa quando vejo mais um lembrete "discreto" da minha professora sobre o trabalho atrasado que estou lhe devendo. Ela, muito afetuosamente, faz questão de destacar o quão dependente daquilo está a minha chance de passar em sua matéria neste semestre.

Frustrada, eu jogo o celular de qualquer jeito no assento e me apoio no encosto do sofá, jogando a cabeça para trás enquanto encaro o teto cinza e desgastado do meu apartamento.

É nesses momentos que penso se deveria simplesmente desistir de tudo e ganhar a vida escrevendo colunas de fofoca na internet. Ultimamente esse tipo de coisa parece estar dando bem mais retorno do que artigos e pesquisas jornalísticas.

Entretanto, para o meu azar, saber tudo e mais um pouco sobre a vida dos demais não é exatamente a minha especialidade.

Em meio ao meu momento de dúvida e conflito interno, eu sinto o mesmo narizinho gelado tocar a minha mão e me trazer de volta do poço escuro chamado de minha mente. Eu sorrio e faço um carinho suave sobre a sua cabeça, sentindo seu pelo macio e bem cuidado sobre a superfície dos meus dedos.

Tentando deixar aqueles pensamentos nada saudáveis de lado, eu tento continuar o que estava fazendo antes que a comida esfrie. No entanto, ouço o meu celular começar a tocar a música nova da Sabrina Carpenter, Expresso - cujo coloquei como meu novo toque - e me interromper mais uma vez. Fala sério, de novo!

- Juro que se for essa professora insuportável me cobrando aquele trabalho de novo, eu vou... - Porém não concluo a frase, atendendo a ligação e aproximando o aparelho do meu ouvido. - Sra. Fuller, eu sei que estou atrasada com a entrega do trabalho, mas se puder me dar mais alguns dias, eu–

- Ei, do que está falando? Maddie, é você?

Arregalo levemente os olhos ao me dar conta de que atendi a ligação sem antes verificar o nome de quem estava na tela, portanto fazendo preposições muito precipitadas. Reviro os olhos, me xingando internamente pela lerdeza, e então respondo a ligação.

- Desculpa, eu pensei que fosse outra pessoa!

- Ah, que susto! - Ouço um suspiro ser proferido do outro lado da linha. - Pensei que tivesse ligado errado ou pior, que minha voz fosse igual a da demônia!

Não posso evitar de rir com o tom dramático da minha colega. Não que eu possa culpá-la, também entraria em pânico se me comprassem com aquela mulher.

- Aliás, por que você pensou que fosse ela? - Pergunta a ruiva, sem me dar tempo de responder antes de continuar. - Não me diga que ela ainda está te apressando por causa daquele trabalho idiota?

Posso senti-la revirando os olhos mesmo que eu não seja capaz de vê-la nesse momento. Em uma única coisa todos da nossa universidade concordam: que Sheila Fuller é de longe a professora menos querida de todo o campus.

- Pois é, já é a terceira vez hoje. Eu estou quase terminando, mas ainda falta fazer a revisão antes de mandar para ela.

- Você quer que eu te ajude? Tenho um tempinho livre amanhã depois da aula.

- Não, não precisa. Eu gosto de fazer minhas coisas sozinhas, você sabe. Mas obrigada pela oferta, amiga.

- Você sabe que pode sempre contar comigo.

Eu sorrio involuntariamente. Não vou mentir, ainda estou me acostumando com esse tipo de relacionamento. Normalmente as pessoas com quem eu fazia amizade durante a minha infância e adolescência nunca demonstravam muita importância em relação a minha pessoa.

Pelo contrário, faziam de tudo para me colocar para baixo e me fazer desistir de coisas importantes para mim e ainda mascaravam isso com a frase "só estou tentando te ajudar".

Levou um tempo até eu perceber que estava sendo manipulada. E uma vez que me dei conta, decidi cortar todo e qualquer relacionamento da minha vida.

Por um tempo deu certo. Eu me fechei, me protegi. Ergui um muro sobre meu coração e não fui mais machucada.

No entanto, tudo mudou quando conheci a Cecilia. Ela conseguiu perfurar a parede de aço que me cercava de uma maneira que eu não sei explicar. Foi tão fácil e tão natural que eu nem percebi. Em poucas semanas já estávamos madrugando juntas ao som de Taylor Swift e acompanhadas de sorvete de chocolate com biscoitos.

Hoje em dia ela se tornou a minha maior confidente. Nos momentos bons ou ruins. Nos dias de sorrisos ou lágrimas. Quem diria que uma amizade de verdade poderia ser tão libertadora, não é mesmo?

- Olha, acho que vou aproveitar o tempo livre para continuar esse bendito trabalho. Nos vemos amanhã?

- Claro! Eu e o Theo marcamos de nos encontrar na cafeteria perto do campus. A gente se vê lá! Beijinhos e bons sonhos!

Eu faço careta com sua melosidade, agradecendo internamente por ela não poder me ver nesse momento, e com muito esforço, respondo:

- Igualmente. Tchau.

A ligação se encerra e eu aproveito para deixar o celular no carregador um pouquinho em vista de que a bateria está quase no fim. Pego o meu laptop na mochila e estralo os meus músculos travados antes de começar a digitar.

Alguns diriam que uma pequena corrida logo pela manhã pode ser bom para a saúde, mas eu digo que ela poderia muito bem ser evitada se eu não tivesse esquecido o meu celular no modo não perturbe e dessa forma feito com que o alarme que me desperta no horário certo todas as manhãs não tocasse.

E agora eu me encontro correndo feito louca pelas ruas movimentadas de uma cidade que parece nunca dormir na esperança de chegar a tempo e não perder a primeira aula inteira.

Aula esta onde eu deveria encontrar a professora que não deixou de encher o meu saco só um segundo esse mês com a cobrança de um trabalho idiota que levou metade da minha sanidade mental.

Eu mal tive três horas de sono, pois madruguei tentando terminar aquela bendita redação. Será um milagre se eu não pegar no sono durante as aulas do dia e um milagre maior ainda caso consiga realizar a proeza de não desmaiar em cima da montanha de louça suja que deixarão para minha conta na lanchonete mais tarde.

E como se toda desgraça do mundo não fosse pouca, eu não consegui comer nem um pãozinho antes de sair de casa e ainda terei que desmarcar o encontro com os meus amigos durante a minha única pausa de uma hora pela manhã. E tudo porque além desse trabalho, eu ainda preciso trabalhar em algo importante e que quase nunca tenho tempo.

Eu odeio desmarcar com eles e confesso que sinto falta de nossas conversas longas e completamente sem noção, mas após três semanas empurrando esse assunto com a barriga, essa é a minha única oportunidade de conseguir desvendar um dos maiores misteriosos da minha vida. Uma dúvida constante que me assombra desde a infância.

Em meio a tantos problemas acumulados, eu já posso sentir o meu ar escapar. E acredito que não se trate apenas do fato de eu estar correndo feito uma idiota pela calçada, fazendo o possível para não esbarrar nas pessoas por quem passo e que me xingam apenas por existir.

Sinto muito, mas a culpa não é minha se... ah, espera... é minha sim, deixa para lá!

Ofegante e agoniada, eu desvio a minha atenção do caminho apenas por um segundo para verificar o horário no meu relógio de pulso, quando repentinamente sinto meu sangue gelar quando o som de uma buzina me traz de volta a realidade. Eu me viro e quase não há tempo para parar antes que por poucos milímetros eu não seja atingida como castigo por ultrapassar o sinal vermelho.

Com o susto, eu cambaleio para trás e sinto o meu corpo atingir o chão. Meu coração acelerado por conta da adrenalina e por um momento eu tenho a impressão de que vou desfalecer pela momentânea falta de ar em meus pulmões.

Meu Deus, eu quase fui atropelada... quase fui atropelada por uma moto incrível!

Sim, eu sei. Não é exatamente nisso que eu deveria estar prestando atenção nesse momento...

Voltando ao script: eu respiro fundo e levo a mão até o peito, tentando me acalmar de alguma forma. E é nesse momento que escuto uma voz grave e masculina perguntar:

- Você está bem, moça?

Ah, sim... aquela voz, justo aquela voz. Voz esta que desejei inúmeras vezes nunca mais ouvir. Voz esta cujo sotaque soube identificar logo de cara. Voz esta cujo em meio a tantas outras me fazendo a mesma pergunta, foi a única que consegui escutar. Eu odeio aquela voz e, principalmente, odeio o dono dela.

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