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Destino da paixão

Destino da paixão

CDS figueiredo

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Capítulo

Três anos de abusos e sofrimentos levam Fannie a planejar uma fuga para ela e seus irmãos, que desde muito cedo são submetidos a trabalhos forçados por um homem sem coração. E é na caravana rumo ao Oeste que ela fica conhecendo Blake, um homem que, como ela, é forte e independente, determinado a buscar uma vida melhor e a felicidade, apesar de todos os obstáculos que o destino coloca em seu caminho...

Capítulo 1 capitúlo 1

Os moradores da pequena cidade de Hawkins, no Kansas,para se em terminado dia. Uma era o nascimento de algum bebê, o que ocorria nos quartos superiores dos sobrados, mas não

obstante dava origem a certo alvoroço. Outra consistia na presença de uma caravana de diligências e carroções estacionados às margens do riacho próximo, às vezes por dois ou três dias, se os pioneiros e colonizadores que demandavam o oeste do país estivessem cansados demais ou necessitassem

efetuar reparos demorados.

Naquela ocasião, nenhum nascimento havia sido registrado, mas a cidade mesmo assim se achava em alerta. Isso significava somente uma coisa: os ocupantes da primeira diligência do ano tinham montado acampamento nos limites da localidade.

- É uma caravana chegando! - O grito, vindo da porta do armazém, prendeu a atenção de Fannie Caldwell e gerou um longo hausto de ar para seus pulmões.

Cada terminação nervosa de Fannie a inspirava a correr até a calçada e juntar-se à pequena multidão de moradores, todos homens, exceto por ocasionais mulheres da vida, com maquiagem exagerada e aspecto sonolento. Trajando xales sobre as blusas, ou até sobre combinações, elas se aventuravam a sair de uma ou outra taverna em que trabalhavam.

Da mesma forma, e com toda a certeza, Fannie ansiava por ganhar a rua. Podia sentir os olhos de Tom cravados em seu corpo. Aqueles olhos escuros, libidinosos, a seguiam onde quer que ela fosse. Hora após hora, dia após dia, ano

após ano. Tinha de permanecer viva e intacta se quisesse manter Kip e Katie igualmente vivos e intactos. Por isso, conservou-se como estava, com o olhar focado no livro contábil aberto à sua frente, no balcão.

Resmungando, Tom ergueu a figura obesa da cadeira no canto do estabelecimento comercial. A aversão tomou conta de Fannie, enquanto o comerciante de meia-idade movia-se com certa dificuldade pelo gasto piso de tábuas. Ele segurou a porta pelo trinco, abriu-a e espiou o movimento na rua poeirenta.

-Garota- chamou, girando a cabeça. - É melhor você tirar os olhos desse livro e arrumar a loja para os negócios de hoje. Este parece ser um grande comboio, creio eu, com cerca de cem veículos.

O coração de Fannie vibrou de expectativa. Uma carruagem média comportaria no mínimo três pessoas. Talvez as coisas, finalmente, caminhassem para uma transformação

importante. Seus lábios se curvaram num sorriso, reprimido antes que Tom o percebesse. Não fazia sentido levantar suspeitas.

-Não escutou? Ou preciso ajudá-la a ouvir um bocadinho?

Ambos sabiam que ele não bateria nela naquela oportunidade. Ninguém mais estava à disposição para atender clientes. Era a chance de Tom ganhar um bom dinheiro, embora faltasse ânimo a Fannie para recompor-se e cooperar nas vendas de uma jornada que prometia ser exaustiva.

-Eu ouvi- ela disse com clareza.

-Então, mãos à obra.

Com um suspiro, Fannie fez o que lhe era solicitado.

Conhecia, desde anos antes, o preço da desobediência. Não que fosse um primor de covardia. Mas, após três anos como

aprendiz de Tom, sabia intimamente quão doloroso era o contato com os punhos, as botas e as palmas das mãos do lojista. E exatamente naquela noite ela teria muito a perder, caso se arriscasse a provocar uma surra, da qual não se recobraria em curto prazo.

-Sim, senhor.- O som de sua suave submissão mascarava a selvagem rebeldia entranhada no coração. A resposta servil enganaria até o mais astuto patrão.

Ela fechou o livro de contabilidade e guardou-o embaixo do balcão. Em seguida, deu início às tarefas, espanando a poeira das prateleiras e aumentando em cinquenta por cento os preços constantes das etiquetas, como Tom ordenara.

O comerciante assim garantiria um bom lucro com a venda das mercadorias remarcadas para cima, mas não a ponto de fazer com que o viajante, sedento dos atrativos de uma cidade e dos produtos expostos no interior do armazém, fechasse a carteira de dinheiro.

- Onde está Kip? - Tom rosnou. As tábuas rangeram sob sua massa corporal quando ele tornou a entrar na loja e arrastou-se até a cadeira. - Esses viajantes vão precisar de alguém para ajudar a carregar os pacotes.

Seriam mais duas moedas por cliente. Mais um gole de uísque para Tom. Fannie fez um esforço a fim de manter o ar de calma.

- Ele virá daqui a pouco. Não se lembra? Ontem à noite você pediu que Kip fosse ao riacho esta manhã e trouxesse um peixe para o jantar.

-Pedi?-Tom duvidou, com razão.

Era uma mentira de ocasião, porém aquele idiota bêbado nunca saberia. Kip e Katie se achavam longe do córrego. Estavam carregando um carroção com os suprimentos que haviam roubado do armazém na noite anterior, depois

que Tom, embriagado, caíra inconsciente. Vigias da estrada vinham dando notícias do avanço da caravana, nos últimos dois dias, enquanto as duas crianças e sua jovem irmã Fannie finalizavam os preparativos para partir. Se o plano corresse bem, quando Tom acordasse de uma nova e previsível bebedeira, naquela noite, ela e os gêmeos já teriam

ido embora.

No momento em que a primeira diligência despontou na rua, Fannie não resistiu ao impulso de ir olhar. O carroção em movimento representava seu anseio longamente mantido em segredo. Tom falara a verdade.

Bem contados, havia com ou mais veículos atravessando a rua principal de Hawkins, com destino à margem do riacho, do outro lado, onde montariam acampamento.

Dentro de apenas uma hora, a leva inicial de pioneiros encontraria o endereço do armazém. Ao anoitecer, o corpo de Fannie estaria dolorido de cansaço. Tom então faria um intervalo de minutos, empolgado com as notas de dinheiro

que encheriam sua gaveta, e sairia para espairecer nas duas tavernas locais ou na que escolhesse para beber, deixando-a

encarregada de atender os retardatários. Finalmente alcoolizado, talvez cambaleasse direto para sua casa.

Ela nem queria pensar no que sucederia depois. Mas, quando Tom entrasse em estado de torpor, o plano tería seus detalhes concretizados. Haviam sido três anos de me ticuloso planejamento. Enfim ela contava com tudo de que necessitava para tirar Kip e Katie daquela suja cidade esquecida por Deus. Cidade? Duas tavernas, uma ferraria, o armazém-geral de Tom, algumas lojas, a isso se resumia a vida comercial do lugar.

Tom obtivera lucros consideráveis durante os dias de calor e de vento quente do verão nas planícies do Kansas, quando a lenta caravana parava para reabastecimento de gêneros alimentícios e os viajantes compravam quinquilharias, após semanas em estradas de terra. Infelizmente, os ganhos de Tom nunca o deixaram mais rico ou mais perto da

respeitabilidade. No inverno, ele desperdiçava cada tostão para manter a barriga cheia de uísque.

Tudo bem com relação a Fannie. Quanto mais o patrão se demorasse fora do armazém, menos provável o desencadear de uma implicância com ela. Ou com Katie. A situação da ir mãzinha a preocupava muito. Até então, Tom havia guardado distância da menina de doze anos. Mas ultimamente, Fannie tinha notado, o comerciante focalizava Katie com avidez nos olhos escuros, admirando-lhe o corpo que desabrochava; as fris verdes que ainda brilhavam de inocência. Todas as feições da criança prenunciavam uma bonita jovem, e só um tolo não veria o potencial sedutor da menina Nem mesmo Tom seria tão imbecil.

Fannie cerrou os punhos de raiva, sentindo um nó na garganta. Aquele porco jamais poria um dedo em Katie. Não enquanto ela, a irmã mais velha, tivesse algum alento no corpo. A sensação de ira lhe era familiar e envolveu-a como uma tempestade na planície. Ele não se atreveria a avançar os dedos sobre sua irma. Era parte do acordo. No entanto, quando Tom havia honrado qualquer pacto?

Três anos antes, ela estremecera de medo, amargura, ultraje e traição, ao ver algumas notas de dinheiro passarem das mãos de Tom às de seu padrasto, Silas. Entendera, então, que não existia volta e nada iria salvá-la, bem como os

irmãos menores. Simplesmente, tinham sido vendidos, em caráter temporário.

Silas evitara encarar a enteada nos olhos, enquanto pigarreava e introduzia no bolso os cinquenta dólares que o

gordo e malcheiroso comerciante lhe dera, e saira pela porta da loja poeirenta sem uma só palavra de adeus. O cruel padrasto nem mesmo tinha esperado que os corpos de sua mãe e do bebê que seria seu novo irmão caçula esfriassem na sepultura, para quebrar a promessa de cuidar das três crianças remanescentes.

Tom havia passado a língua pelos lábios espessos enquanto olhava Fannie de cima a baixo. A Kip e Katie, reservara um rápido e desprezivo exame.

-Bem, não quero que me causem nenhum problema-afirmara então, movendo a barriga à frente com um pesado avanço das pernas, de modo a ficar face a face com Fannie.

-Isso está claro?

O odor repugnante do lojista atingiu-a à medida que ele se aproximava, e ela lutou para não sentir ânsia de vômito. Como tardara a responder, Tom havia colhido o queixo dela com os dedos oleosos e forçado um contato direto com sua expressão obviamente lasciva.

-Fiz uma pergunta.

- Sim, senhor. Está perfeitamente claro que prefere que sejamos obedientes.

Ela esmerou-se na gramática e na dicção, com um pequeno toque de arrogância ao falar como sua mãe, nascida no Leste, lhe havia ensinado.

As sobrancelhas grossas de Tom se juntaram no franzir da testa e os olhos ficaram nublados, denotando confusão. Uma onda de superioridade passou pelo coração de Fannie. Aquele idiota nunca venceria uma disputa de conhecimentos, nem mesmo contra um cão de rua. Sem mencionar a luta com alguém dotado de um pingo de cérebro. Caso ela o demovesse de aplicar castigos físicos, não teria problemas em cumprir os dois anos de cativeiro que ouvira Silas combinar com ele. Em dois anos, ela faria dezesseis e se tornaria capaz de tomar as próprias decisões. Poderia fugir dali e cuidar dos gêmeos por conta própria.

No entanto, Tom não mantivera a palavra dada, e um ano após o previsto fim dos serviços na loja, Fannie e seus irmãos ainda se achavam presos, escravos de um homem odioso que não tencionava libertá-los, a menos que ocorresse uma morte. Sua ou deles.

Ela combateu o familiar ressentimento que acompanhava suas lembranças e a injustiça de uma promessa rompida. Então, o primeiro grupo de pioneiros adentrou o apertado armazém. Não pareciam diferentes, na conduta, de tantos outros clientes que ela havia observado, ao longo do tempo: fisionomias fatigadas, corpos arqueados ao peso de uma vida dificil, em interminável viagem por trilhas obscuras.

Mas os olhos...

Ah! Aquele inconfundível brilho de esperança que cintilava, intenso, no rosto dos homens e mulheres em busca do paraíso, da seara de leite e mel, da Terra Prometida.

Fannie sorriu para cada pessoa que vinha ao balcão comprar os bens cotados a preços exorbitantes. Ninguém parecia se importar com isso. Ela pôde estudar cada face. E uma fila de crianças recém-esfregadas com sabão seguia

seus pais.

-Quero fazer uma toalha de mesa e cortinas, para a casinha que vamos construir - explicava uma senhora de sorriso discreto, olhando seus filhos enquanto lhes apresentava um corte de tecido azul, com estampa xadrez.

Para Fannie, tornou-se relaxante a presença daquela família. Ela esperou que fizessem amizade. Se não estava enganada, duas das crianças tinham a mesma idade de Kip e Katie. Isso era bom. Talvez os irmãos finalmente aprendessem a sorrir também.

Pela porta aberta da loja, entrava um vento cálido de final de primavera. Fannie segurou o fôlego quando, atrás da brisa, surgiu uma forma masculina, vestindo casaco de camurça e um par de mocassins nos pés. Era esguio, mas tinha a aparência musculosa de um homem acostumado ao trabalho duro, à vida que ela sonhava para sí.

Ao avançar, saindo da contra-luz, o viajante deixou à mostra um semblante que a deslumbrou. Os compridos cabelos negros se curvavam nas pontas e os olhos escuros esquadrinhavam o ambiente, arrebanhando a atenção de todos os presentes. Incluindo a de Toni, a mais famosa meretriz da cidade, que passou a seguir de perto o atraente homem.

Ele caminhava com um ar de confiança, capaz de infundir coragem em Fannie. Sem a menor dúvida, era o chefe da caravana, exatamente o homem que ela procurava.

Blake Tanner-esse era seu nome-- lançou um olhar às prateleiras do armazém e esboçou um sorriso complacente.

Preços remarcados para cima e artigos de qualidade inferior. Já conhecia bem o lugar. Por meia dúzia de vezes, havia parado ali, a caminho do rio Platte. Tinha alertado os viajantes para não pagarem tão caro pelas mercadorias, mas eles ignoraram seu conselho, movidos mais pela diversão do que pela necessidade. Bem, descobririam sozinhos a falta de sensatez. Blake fizera sua parte, a escolha pertencia aos pioneiros que guiava.

Mas aquela seria a última parada. Caso não atravessassem as montanhas antes do inverno, teriam de se abrigar em algum lugar. Com tantas pessoas a alimentar, quem saberia se os suprimentos eram suficientes para os diversos meses de imobilidade? Blake não podia pensar em perder qualquer um dos peregrinos que, confiantes, o haviam contratado com o fim de conduzir a caravana, desde Independence até o Oregon, numa só estirada.

Se ele fosse mais rigoroso, a fila de carroções nunca teria parado em Hawkins, mas consertos precisavam ser feitos, e não existia um ferreiro entre os migrantes. A cidadezinha dispunha de um profissional, cujos serviços garantiriam,

no mínimo, mais um mês de viagem segura, mantendo o comboio dentro do tempo planejado. Além disso, onde encontrariam outra oportunidade para deixar as carruagens em ordem? Após liderar várias caravanas, ele contava ao menos quinze carroções perdidos antes da chegada ao exuberante vale de Willamette. Com os veículos devidamente reparados, talvez perdesse apenas trés ou quatro.

Era realmente melhor acampar um ou dois dias em Hawkins.

O armazém se enchia depressa de clientes. Blake enfrentou a tentação de escapar daquele ambiente sufocante, como sempre lhe acontecia em lugares fechados e estreitos. Mas

o senso de responsabilidade pesava sobre seus ombros, e ele também desejava manter um olho nas pessoas que liderava. Especialmente em Willard James, pai de seis filhos, no qual não confiava, embora nada tivesse de concreto contra ele.

Blake havia ponderado se um homem que parecia tão amigo, tão generoso e tão trabalhador não era bom demais para ser verdadeiro ou autêntico. Willard constituía a pessoa mais amistosa, prestativa e esforçada que ele jamais conhecera. Apenas uma dessas qualidades bastaria para levantar suspeitas em Blake, mas os três traços juntos... Na mente do calejado guia, Willard devia ser um criminoso a

fugir da polícia.

Ele costumava tomar todas as precauções para não ter um ladrão infiltrado na caravana, pois as notícias corriam velozes e sua reputação estava em jogo. Murmúrios de algum viajante lesado ou descontente causariam a presença de um destacamento policial na próxima parada. E, como regra geral, o futuro e o sucesso de uma caravana dependiam de autorização para entrar numa cidade e comprar suprimentos.

Willard e sua tímida família avançavam rapidamente na fila dentro do armazém. Ele sorria, com os braços repletos de produtos, e olhava a porta de saída. Blake também pensava em sair dali, de modo a respirar melhor, quando sentiu um toque suave em seu braço, gentilmente pedindo atenção e compelindo-o a voltar-se. Um doce perfume atingiu suas narinas, antes de ganhar a visão completa da fonte do aroma. Um xale sujo cobria os rosados ombros femininos, e as malhas esgarçadas do agasalho recaíam sobre um par de seios fartos, que atiçavam a imaginação. No rosto, a maquiagem borrada e as olheiras testemunhavam o cansaço após uma noite maldormida. Recordações da própria mãe tomaram conta de Blake, que recolheu o braço para escapar do toque.

A reação da mulher consistiu em franzir o cenho, mas ele não se desculpou.

-Por favor... - A voz enganosamente suplicante provocou repulsa no guia. - É o sr. Tanner, o chefe da caravana?

-Sim.

A moça atrevida focalizou a porta, com nervosismo.

-Desejo juntar-me a seu grupo.

-Impossível- Blake ensaiou uma risada, enquanto a mulher atritava seu braço, deixando-o contrariado.

-Não me mande embora, senhor. Vi anúncios à procura de noivas disponíveis no Oeste. Quero ser uma delas.

-Esses anúncios não são para mulheres como você.

Blake admitiu estar sendo impiedoso. Deixe-me em paz.

Apesar do rubor na face, ela não perdeu o brio e aprumou os ombros.

-Meu nome é Toni e, como já notou, não sou uma dama.

- Por que o nome masculino? - ele concedeu, curioso.

-Abreviação de Antonia, não que isso seja de sua conta.

Então, Toni sabia ser agressiva. A uma profissional de sua especialidade seria mais fácil dizer "não" do que a uma mulher dada a lágrimas e súplicas.

-Não faz diferença mesmo ele afirmou. - Minha decisão está mantida

Para seu desgosto, a meretriz continuou a pressionar.

Ele detestava pessoas insolentes.

-Nenhum anúncio especifica que tipo de mulher é procurada. - Toni tirou do vão dos seios um recorte de jornal amassado e o mostrou a Blake. - Viu? Mencionam apenas esposas.

- Não posso levar alguém como você ao encontro de um ingênuo fazendeiro que procura uma mulher decente com quem dividir sua vida e seu trabalho na terra. Não seria correto.

O desespero se apossou de Toni. Os olhos faiscaram na insistência do pedido.

- Por favor... Desejo pôr fim a esse estilo de vida. Só preciso de uma chance. Posso pagar pela viagem.

Ele a fitou com firmeza, tentando ocultar o desdém.

-Não colocaria os dedos em seu dinheiro - assegurou.

Um sonoro murro numa madeira próxima deixou Blake em alerta.

- O que há de errado com você? Não tem coração? - A acusação cruzou o recinto, a partir do balcão, e Blake detectou sua origem. A primeira coisa que viu foi um par de grandes olhos azuis e uma massa de rebeldes cachos avermelhados, espraiando-se de um coque malfeito. Parecia mais uma criança necessitada de um bom penteado do que uma mulher pronta a tomar as dores de outra.

A jovem ruiva venceu a distância em segundos e postou-se à frente dele, a face dura como granito, os olhos frios como safiras. Pela estatura, aparentava uns dez anos de idade, mas um rápido olhar ao corpo curvilíneo indicou que tinha bem mais. Blake engoliu em seco e centrou a vista naquele rosto bonito

-Então? - Fannie adotou um tom de ameaça. - Por que Toni não pode ir com você? Se nenhum homem quiser se casar com ela, simplesmente voltará a seu trabalho normal. Não existem bordéis no Oeste? Toni provavelmente fará fortuna

Atritando o braço da amiga, Toni tentou apaziguá-la.

-Tudo bem, Fannie.

-Não, não está tudo bem. Quem é esse sujeito para dizer que você não serve para se integrar a uma caravana? Ele nem a conhece.

Blake estudou a figura da contestadora. Ou era incrivelmente bondosa ou incrivelmente tola. Mas ele ainda tinhauma missão a cumprir.

-Sem gente como ela. Sem mulheres desacompanhadas. Sem viúvas com filhos, exceto se uma das crianças se tiver catorze anos e puder trabalhar. Enfim, sem mulheres que não tenham um homem para zelar por elas.

Os olhos de Fannie ficaram esbugalhados.

- O que quer dizer? Nenhuma mulher pode viajar sozinha?

-Creio que fui claro. - Um sorriso cínico surgiu na face de Blake. - Eu faço as regras, e elas têm de ser obedecidas.

-Mas por quê? - Fannie insistiu. - Toni é capaz de trabalhar duro também, como qualquer homem, talvez até melhor.

Ele fez-lhe um incisivo meneio de cabeça, apagando o sorriso. Assim eram as mulheres que queriam competir com os homens, pensou, aquelas que defendiam o direito ao voto e à posse de um lote de terra.

- Bons trabalhadores sempre são necessários - afirmou, menos intransigente.

O triunfo iluminou os olhos azuis, e Fannie sorriu com tal meiguice que encantou Blake.

--Bem, então... - ela murmurou.

Ele recompôs-se e endureceu o coração.

-Resta um problema...

-Qual?

Não aceito mulheres desacompanhadas em minha caravana. -Dirigiu o olhar a Toni. - Primeiro encontre um marido, e talvez eu os leve. Caso contrário... - Permitiu que o silêncio subsequente falasse por si.

Fannie bateu o pé no chão empoeirado. Elevou a voz:

-Mas continua sem sentido! Só alguém de cabeça fraca poderia sugerir essa bobagem.

Bonita ou não, a mocinha começava a dar nos nervos de Blake, como uma roda de ferro que rangesse ao girar. Por que ela recusava um "não" como resposta?

- É mesmo? - ele desafiou.

Fannie fez um gesto afirmativo de cabeça e estirou o indicador na direção da amiga.

- Ela quer ir ao Oeste para encontrar um marido. Você não escutou? Toni não está interessada em qualquer dos matutos existentes por aqui. Procura um bom homem com quem se casar, não algum montanhês beberrão que somente

deseja gabar-se de ter matado um grande urso.

Toni resfolegou, indício de que se achava prestes a chorar, porém recuperou-se em tempo. A rápida contenção despertou a simpatia de Blake, apesar da firmeza de seus conceitos. A meretriz inclinou-se para mais perto dele e sussurrou:

-Se eu não sair desta cidade, vou morrer. Simplesmente vou morrer.

-Hiram!-O brado de uma mulher cortou o ar, ferindo a incerteza que se apossava de Blake.

Ele olhou por sobre o ombro de Toni e viu um casal pronto para deixar o armazém, próximo do trio. O marido tentava desastradamente não focalizar a vistosa prostituta, exibindo lascívia, e a esposa não escondia sua indignação com

tal conduta. Recolheu a barra da saia com uma das mãos, para que não tocasse Toni de passagem. Blake estreitou os lábios com determinação. Não invejava aquele homem, uma vez que ficasse sozinho com sua mulher e tivesse de ouvir um sermão. Não que a culpasse. Seria o tipo de reação que poderia encorajar uma jovem imoral como Toni.

Deslizou os dedos pelos cabelos fartos. Ao mesmo tempo que gostaria de ajudar a prostituta, avaliava que uma cena semelhante àquela fatalmente se repetiria, caso permitisse a Toni juntar-se à caravana. Procurou-a com a vista entristecida, preparando algum consolo, mas ela negou-se a fita-lo

-Isso explica por que você não virá conosco-disse, antes de enterrar o chapéu na cabeça e lançar mais um olhar a Fannie, cujo rosto estava transfigurado de raiva.

Ela levantou o queixo enquanto deliberadamente desviava os olhos dele e passava o braço em torno dos ombros

caídos de Toni.

A fúria expandiu-se no íntimo de Fannie, enquanto ela fitava o pertinaz chefe da caravana.

-Não ligue para ele, Toni. Acharemos uma outra maneira. -A obstinação se refletia nos ombros dela, mantidos orgulhosamente retos. - Mesmo se tivermos de ir sozinhas.

Toni libertou-se do abraço da amiga e seus olhos se estreitaram como os de um gato.

- O que dizer com "nós"?

O medo assombrou Fannie quando ela deu-se conta de seu erro. Vasculhou as imediações, certificando-se de que ninguém mais a ouvira. Se Tom soubesse de seus planos, úvida a mataria. Além disso, a última coisa de que

necessitava era viajar na companhia de uma pecadora.

- Esqueça. Eu falava de você. Encontrará um modo de fazê-lo mudar de ideia. Agora, é melhor eu retomar o atendimento aos clientes.

- Também eu devo voltar - disse Toni com a voz trêmula-, antes que George descubra que estive falando com o chefe do comboio.

A compaixão apoderou-se do coração de Fannie, que apertou com força a mão da jovem meretriz.

-Não desista. A caravana deve permanecer por aqui até amanhã.

Toni espreitou a outra de perto, seus olhos cor de mel buscando a face de Fannie até que esta se visse forçada a desviar o rosto.

- Você também irá perguntar ao sr. Tanner se pode juntar-se ao comboio. - Embora se arriscasse a ser enxotada por Fannie, ela sussurrou: - Ou não?

Fannie já não conseguia negar a verdade. Meneou a cabeça.

-Preciso tirar minha irmã daqui, senão Tom...

De maneira quase imperceptível, Toni elevou o queixo.

-Compreendo. Mas o que você fará? Escutou o que o sr. Tanner disse. Penso que não vai ser fácil fazê-lo mudar de ideia. Mulheres não são aceitas na caravana sem algum homem.

Um novo surto de raiva atormentou Fannie, trazendo consigo frustração e desesperança.

-Prefiro ser engolida por um grande urso...-declarou

-Eu também emendou Toni.

Um senso de camaradagem pairava no ar entre as duas, e Fannie acalorou-se ante a possibilidade de ter uma companheira de viagem. Isso só durou um momento. Ela precisava pensar no irmão e na irmã, sem preocupar-se com ninguém mais.

Se ao menos o chefe do comboio cessasse de ser tão irracional! Quem ele pensava que era, afinal? Ela devia ter-lhe dito o que achava de um valentão a exibir sua truculência pelos salões. Mesmo sendo mulher, dispunha-se a enfrentá-

lo com os punhos, como gente grande.

Blake pensava honestamente que ela lhe causaria problemas? Ou tinha birra contra a profissão de Toni? Mostrara-se hostil à prostituta, e isso revigorou sua esperança. Talvez num encontro com o guia, sozinha, ela pudesse argumentar com ele, convencendo-o de que era uma mulher diferente da amiga.

A incômoda imagem de Tom embolsando cinquenta dólares em troca dela invadiu-lhe a mente. Conseguiu descartá-la, porém. Não, ela não era do mesmo gênero. Sua mãe não

a havia criado para ser meretriz. Jamais se entregaria, por vontade própria, a qualquer homem.

-Com licença...-Uma voz arrogante soou, devolvendo Fannie à sua função de balconista, livrando-a dos devaneios sobre o que deveria ter falado ao irritante guia da caravana.

-Quero pagar minhas compras.

Era a mesma mulher amarga que evitara o toque de sua saia em Toni. Postada junto ao balcão, ela batia o pé com impaciência, enquanto o marido tinha de esforçar-se para não olhar os ombros nus da prostituta.

Naquele instante, Toni pressionava a mão no braço de Fannie e se curvava a fim de falar-lhe ao ouvido:

-Volto mais tarde, para ver se você formulou algum plano.

Por causa da pressa da amiga, Fannie não pôde responder, mas seu rosto ganhou uma carranca. Ela certamente não precisava conspirar com ninguém a fim de descobrir uma saída. Nada tinha contra a prostituta, mas acumulava

problemas demais para se preocupar com os direitos e deveres de outras pessoas.

Oh, céus! Como faria para sair dessa confusão?

Mas não era hora de considerar tal assunto. A fila para o balcão havia crescido e se estendia até a porta do armazém.

Por um bom tempo, Fannie ficou ocupada com o fluxo constante de fregueses, originários da caravana. Alguns eram amistosos, porém outros, impacientes e azedos, mereciam uma conduta diferenciada. Ao longo de três anos,

ela aprendera que a autopreservação exigia ficar atenta aos modos, atitudes e linguagem corporal dos clientes. Com relação a Tom, isso podia significar a distância entre ser deixada em paz e levar uma surra em regra.

Mesmo naquele instante, ela permanecia em guarda. Cada vez que a porta abria, seu coração se apertava com uma dose de medo. Sem falar que, ao retornar embriagado, Tom desejaria ardentemente provocar uma briga e o que mais inventasse para aborrecê-la.

Kip e Katie ainda se encontravam no velho celeiro abandonado, a quatro quilômetros da cidade, onde haviam guardado os alimentos e a carroça para a viagem. Hank Moore, o ferreiro local, escondera os bois para ela durante

os últimos três meses. Ela desconhecia por que o bondoso profissional a vinha ajudando. Até então, nada pedira em troca, mas era impossível contar com sua boa natureza e coração generoso. Fannie esperava o dia em que o ferreiro lhe demandaria favores.

Logo que o sol se pôs no horizonte, o derradeiro freguês saiu do armazém. Fannie suspirou de alívio. Esticou as costas em busca de conforto para a dor que sentia. Com um soluço, apanhou o livro contábil do estabelecimento. Aquele tinha sido o dia mais lucrativo que vira, pelo menos desde que se encarregara das contas. Não era difícil enganar Tom. Ele possuía suficiente arrogância para crer que ela tremia de medo dele para errar nos números ou lançar falsos registros de modo a poder subtrair algum dinheiro que, afinal, considerava como sua justa parte no negócio.

Agilmente, ela contava todas as moedas soltas na gaveta do caixa, pegava algumas notas do alto da pilha que formava e as inseria dentro da faixa de sua cintura. Então, voltava ao trabalho e equalizava os números constantes do livro.

A abertura da porta lhe causou um sobressalto, Levou a mão ao peito, até perceber Kip e Katie correndo para dentro da loja. Estavam ambos com falta de ar e respiravam fundo antes de poderem falar. Os cabelos castanhos de Kip espelhavam os de sua mãe, e por vezes Fannie ansiava por tocá-los. Mas o garoto já era crescido demais para isso e não gostava de ser afagado.

Os cabelos de Katie mostravam-se mais claros do que avermelhados. Beiravam o que seu pai chamava de "louro tostado". Recentemente, Kip começara a exibir sinais de que se transformava em homem feito, tanto quanto Katie ostentava os primeiros indícios de feminilidade. Os ombros do menino se alargavam e, por vezes, a voz desafinava entre os agudos e graves, deixando-o ruborizado e com raiva de quem desse importância a tais flutuações.

Fannie respeitava a privacidade do irmão, como fazia Katie. Já Tom era outra história: deleitava-se em humilhar o jovem, sempre que possível. Ambos os gêmeos logo iriam desabrochar, o que constituía mais um motivo para Fannie afastá-los do brutamontes.

-O que vocês dois estão tramando? - ela indagou, ciente de que ninguém entre eles poderia provocar a raiva de Tom naquela noite. Outra série de chicotadas como a que Kip recebera no mês anterior, e todos perderiam a caravana.

-Estão dançando- disse o rapazinho.

-Quem?- Fannie fechou cuidadosamente a gaveta de dinheiro e colocou a chave no vão secreto debaixo do balcão, onde Tom procuraria antes de ir para casa contar os lucros da jornada.

-As pessoas do comboio. Formaram um círculo com os carroções e dançam animadamente, com a música de um violinista.

-Podemos participar? - Katie perguntou, os olhos verdes com ar de súplica.

A despeito do coração ferido, Fannie não podía arriscar nada. Ela se vergou para mais perto dos gêmeos e manteve a voz propositalmente suave:

- Haverá muitos bailes no

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