Fernanda se pegou mais um vez olhando para dentro de si e vendo todas as lembranças que ainda restaram de seu grande amor adolescente, estava presa eternamente naquele vórtice das coisas que deveria ter dito e nunca dissera, aquelas palavras impronunciadas iriam com ela até depois de sua morte, geradas, mas nunca nascidas. Essa é uma história sobre amor, mas não é exatamente um romance. *ATENÇÃO: Pode contém gatilhos*
O ano era 1998, antes da popularização dos celulares e quando havia muito tempo livre e ocioso. Sem as lentes disseminadas desses aparelhos, as pessoas agiam sem medo de serem flagradas.
Fernanda havia passado no teste de seleção de uma aclamada escola de ensino médio, para o mais competitivo curso oferecido. Podia-se dizer que ela era inteligente, mas ela nunca se vira assim. Um típico caso de síndrome do impostor que a acompanharia durante toda a sua vida, mas que ela conseguiria lidar com alguma destreza.
Fisicamente, ela estava acima do peso, os cabelos eram rebeldes e pouco definidos, coloridos com a tinta mais vermelha que ela encontrava nas prateleiras dos supermercados, mas tinha uma beleza que atraia olhares. Mas enfim, que garota de 15 anos não é bonita? Porém, ela não se via bonita.
Ela se achava feia, se achava gorda, se achava burra e sem graça. Pensando bem, Fernanda era apenas uma tola, isso sim!
Nos primeiros dias ela aproveitou para conhecer as instalações da escola, tinha uma curiosidade aumentada sobre espaços e ambientes, queria conhecer os caminhos e aonde eles levavam. Fez algumas amizades também, tímida e introspectiva, mas logo seria "adotada" pela sua extrovertida, muitas vezes ela parecia arrogante aos olhos dos outros, ainda assim, ela conseguia atrair certo grau de simpatia. Foi numa dessas "explorações" que ela o viu pela primeira vez.
Ela subia por uma escada, abaixo dos lances havia uma salinha, que acomodava os representantes estudantis do curso no qual ela fora admitida. A parede era de combogós, Fernanda ouviu as risadas, palavras que ela não entendeu, e isso a fez olhar pelos buracos dos combogós.
Naquela salinha minúscula estavam alguns rapazes, altos e bonitos, mas ele se destacava. Ele estava de frente para ela, olhos verdes e cabelos loiros. Ao seu lado, um outro ainda mais bonito, cabelos loiros e compridos, olhos cor-de-mel e um sorriso maravilhoso.
Fernanda tinha que admitir, seu fraco eram rapazes loiros. Ela desacelerou o passo, olhou um pouco mais, precisou até dobrar o pescoço para ter certeza do que via.
- O que foi?! - Fabio perguntou, pra tirá-la daquele transe, ele havia notado que ela olhava para os rapazes na sala.
Fábio era um jovem bonito e inteligente, alto, negro, educado como poucos jovens de sua idade. Ao seu lado estava seu amigo, Fabrício, um pouco mais baixo que Fábio, também negro com traços indígenas visíveis principalmente em seus cabelos naturalmente lisos. Fabrício a olhava sempre com desconfiança, Fernanda se sentia incomodada com o olhar dele, mas eles eram os primeiros amigos que fazia na escola. A ternura de Fábio e a necessidade adolescente de pertencer à algum grupo a fazia suportar a desconfiança do olhar de Fabrício.
- Nada não. - respondeu, segurando no braço de Fábio.
Seguiram então, os três, na exploração dos prédios escolares.
Fernanda podia ser introspectiva, mas era determinada, e ela queria saber quem eram os rapazes da salinha. Algumas semanas depois, ela e sua nova amiga Patrícia, foram até a salinha embaixo da escada e se apresentaram, sim, elas se apresentaram sem nenhuma vergonha.
Eles estavam lá. O nome dos rapazes eram Marcos e Rafael. Eles eram irmãos.
De cara, o rapaz de olhos verdes, Rafael, se interessou por Patrícia. Não teria como ser diferente, pensou Fernanda. A amiga era linda, cabelos ondulados, corpo esguio, rosto perfeito e olhos grandes. Muito inteligente e bastante extrovertida, Fernanda achava que era seu perfeito oposto.
Logo, para Fernanda, restou o Marcos. Ele era mais bonito e mais velho, tinha um jeitinho de "quem não prestava" e foi isso que ela disse-lhe. Marcos riu, a partir dali, se iniciava um jogo de troca de insinuações que duraria alguns anos entre os dois.
- Você tem cara de safada! Já fez muito moleque sofrer? - disse Marcos, ao ouvido de Fernanda.
- É só cara, meu amor, no fundo eu sou um anjo. - Respondeu, colocando as mãos sobre o próprio queixo e piscando várias vezes, para parecer inocente.
- Lúcifer era um anjo. - ele retrucou.
Fernanda continuou a trocar insinuações com Marcos, cada vez mais e mais íntimas, ao ponto de todos se afastarem para que os dois "desenrolassem*", mas isso nunca acontecia. Eles preferiam manter a relação na troca de palavras que consumar qualquer coisa. Para os dois, era mais diversão do que desejo de fato.
Como era de se esperar, Rafael e Patrícia começaram a namorar alguns meses depois.
Fernanda se sentiu sozinha.
*Desenrolar - Gíria, "se tornar mais íntimo", "iniciar namoro"
Capítulo 1 Pelos combogós da escada
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Capítulo 2 A arquibancada
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Capítulo 3 Ela não era responsável por aquilo
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Capítulo 4 Fernanda não tem coração
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Capítulo 5 Eu achei que você tinha desmaiado
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Capítulo 6 O ano seguinte
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Capítulo 7 Na praia
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Capítulo 8 Ambiguidade (1)
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Capítulo 9 Ambiguidade (2)
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Capítulo 10 Você tem rosto de anjo, mas não age como um
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