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Nem todo ouro tem valor

Nem todo ouro tem valor

P. Rodrigues

5.0
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Capítulo

abrielle está prestes a completar 21 anos e assumir o comando do império bilionário de seu pai. Mas com o controle do conglomerado vêm regras rígidas: ou ela cumpre todas as exigências ou verá o legado da família nas mãos de acionistas - inclusive de seu maior inimigo. Justo quando a pressão atinge o auge, Lucas Park, seu amigo de infância e primeiro amor, ressurge após dez anos de silêncio. Agora, Gabrielle precisa decidir entre seguir seus próprios sonhos de liberdade ou proteger o império que nasceu para liderar. Mas a reaproximação com Lucas desperta antigos sentimentos que ela acreditava ter superado - e confrontá-lo pode ser ainda mais perigoso do que perder o negócio. Entre amor e ambição, Gabrielle precisa escolher o que causará menos dano, mesmo que o preço seja seu próprio coração. Lucas, por sua vez, retorna ao país decidido a reparar o passado e reconquistar Gabrielle, mas se vê enredado por uma atração intensa e perturbadora que ameaça destruí-lo. Dividido entre a expectativa de seguir o caminho familiar e o desejo de descobrir quem ele realmente é, Lucas percebe que tanto a redenção quanto a obsessão andam lado a lado. Conforme ele e Gabrielle se aproximam, velhos amigos e novos segredos emergem, colocando não apenas a relação deles em risco, mas também suas vidas. No fim, Lucas precisa decidir: sucumbir aos próprios demônios ou proteger a única pessoa que sempre amou, mesmo que isso o destrua por completo. Enquanto o passado ameaça devorar o presente, ambos se veem obrigados a enfrentar uma pergunta: até onde estão dispostos a irem por seus objetivos - e será que o sacrifício valerá a pena?

Capítulo 1 Sobre a posse absoluta do conglomerado

Art. Único: A herdeira terá posse absoluta, irrefutável e intransferível, após a maioridade de 21 (vinte e um) anos, sob o cumprimento das seguintes exigências:

1. A herdeira deverá ser apta ao cargo de CEO, tendo pleno conhecimento certificado das seguintes áreas:

a. Administração de empresas e finanças corporativas

b. Economia

c. Engenharia

d. Arquitetura

e. Gestão de pessoas

Essa foi a primeira das dez exigências de meu pai, nada fáceis de se cumprir. Ele era a pessoa que mais me conhecia no mundo, talvez soubesse mais de mim do que eu mesma, o que me deixava desconfortável, pois sabia exatamente como lidar com meu narcisismo. Não pude conter o riso quando li pela primeira vez, na verdade, eu ri alto e tão descontroladamente, que senti cada músculo do meu corpo vibrar.

Me obrigar a ser social mediante um documento era tão John. Ele sabia que eu não gostava de participar de eventos sociais, sabia que eu não gostava das pessoas da minha idade, assim como sabia que eu sairia viajando pelo país na primeira oportunidade que tivesse. Ele fez tudo o que pode para me obrigar a permanecer ali, em baixo de suas asas, mesmo após sua morte.

Confesso que não estava nem um pouco ansiosa para me tornar a mais jovem bilionária do país, mas seria a escolha certa a se fazer, afinal, eu seria incapaz de lidar com a possibilidade da queda do império que meu pai construiu, eu jamais faria com que tudo o que lutou, tudo pelo que passou, desmoronasse devido a meu egoísmo. Não era uma lista fácil, mas com certeza eu iria cumprir com maestria, afinal, ele havia me criado para essa função, havia me ensinado tudo o que eu sei, desde as escolhas das palavras até o movimento das mãos. Eu sempre fui uma argila crua, sendo moldada por John. Já estava na hora de queimar.

Jullian, o encarregado deixado por meu pai, já havia me dado um ultimato, aquele seria meu teste, minha última oportunidade para me socializar formalmente, antes de ser dado a entrada em meu estágio na empresa.

Era esse o plano dele, se eu não conseguisse permanecer em uma festa idiota, por pelo menos duas horas, eu deveria ser a nova secretária do vice-presidente, uma vez que havia afugentado todos os candidatos. Eu não sabia qual era a pior opção, afinal, o vice-presidente era ele mesmo, então ao invés de vê-lo por alguns minutos do dia, passaria todas as horas ao seu lado. Com certeza eu conseguiria me comportar em uma festa fútil.

Escolhi o curso de arquitetura como minha primeira graduação. Segundo as regras de meu pai, eu deveria ter pleno conhecimento das outras áreas, mas não significava que precisaria me tornar bacharel nelas todas. Então Jullian me ajudou a otimizar meu tempo, me ajudando a escolher a área com que tive a melhor afinidade para me graduar, enquanto as demais, teria aulas particulares com doutores graduados pelas empresas de meu pai. Esse sistema de tutoria era benéfico para todos os envolvidos no programa. Nossa empresa pagava a formação dos profissionais treinees, e então, quando estivessem formados, eles se tornariam instrutores, formando assim um grupo bem seletivo de profissionais especializados, os melhores do país. Esse foi o segredo do sucesso de meu pai, investir em educação e lealdade. Eu via como tratar filhotes, que cresceriam sob o domínio do alfa.

Estava na hora, seria a última festa do ano na universidade, a festa de natal que eu tanto odiava. Sempre detestei o natal. Na verdade, não gostava de nenhum evento que reunisse mais de cinco pessoas, em geral, eu não gostava de pessoas. Elas são até divertidas, atiçam minha curiosidade, mas tudo passa depois de algumas horas as observando. Os macacos do zoológico são mais interessantes, tão mais honestos.

Tudo bem, eu iria conseguir. Abri a porta do táxi e desci.

A minha frente, havia um gramado completamente tomado por copos descartáveis e serpentinas brilhantes. Como era possível sujar o jardim de entrada de um pouco mais de trezentos metros, em tão pouco tempo? Ou estava tão atrasada assim? A festa estava marcada para as 10 p.m, e haviam se passado somente dez minutos. São essas atitudes que me fazem perder o interesse nas pessoas. Caminhei alguns metros, até encontrar os dormentes, que me levariam até a varanda da velha república. Não sei o que estavam pensando quando decidiram criar uma república para reunir idiotas cheio de dinheiro. A única explicação, era que seus pais os queriam fora de casa, então decidiram bancar festas todos os finais de semana, das quais eu nunca participava. Criar uma república para pessoas que moram na mesma cidade não faz sentido nenhum para mim.

"É para incentivar o convívio e criar laços", foi essa a resposta de Jullian, quando repeti inúmeras vezes que, uma vez que meu pai fazia doações para manter aquela parafernália, assim que eu assumisse, iria mandar derrubá-la. Cada um que fosse se divertir em suas respectivas casas.

Olhei pela janela vitoriana, a única com as persianas abertas, e no momento que percebi o número de pessoas ali dentro, quis dar meia volta e aceitar a proposta de Jullian. Pessoas completamente bêbadas, semi nuas, dançando ao som de uma música que sequer tinha notas musicais. Olhei para a roupa que eu estava vestindo e ri. Como pude ser idiota em achar que realmente se tratava de uma festa natalina? Meu vestido vermelho, rodado e brilhante, muito brilhante, acompanhado de um escarpeiem preto de camurça. Meus cabelos caiam longos cachos negros pelo decote tomara que caia, acompanhado de um minúsculo gorro natalino. Céus, eu poderia ser a própria mamãe Noel da festa. Tudo o que pude fazer, foi tirar aquele gorro idiota, jogar no chão amadeirado, e me virar. Estava pronta para ir embora quando a porta se abriu.

- Jingle bells senhorita Gold - disse um sorriso presunçoso.

Lucas Park, o típico herdeiro que toda garota sonha em ter como companheiro. Bonito, carismático e com uma conta cheia de dinheiro. Eu não me importava com sua simpatia, tampouco precisava de seu dinheiro, a única razão para eu não raspar sua cara no asfalto quente, é pelo simples fato que seria um desperdício. Sua simetria era assustadora quando observada por algum tempo. Com sua descendência oriental, era quase impossível não olhar em seus olhos escuros e profundos, seu nariz levemente empinado e fino, a boca era grande com lábios volumosos. Era possível ter aqueles traços naturalmente? Se a inocência tivesse um rosto, aos vinte e três anos, com certeza seria aquele. Até mesmo seu sotaque era charmoso, qual me deixou completamente surpresa. Era realmente um contraste agradável quando visto por inteiro. Exceto pelo cabelo, que estava todo brilhante, com um topete estilo John Travolta nos tempos da brilhantina.

- Pode parar de me encarar agora - me censurou.

Sorri para ele, como meu pai havia me ensinado, e caminhei para dentro da velha casa. Jonh sempre havia me ensinado a sorrir. Em situações que fugissem de meu controle, ou simplesmente quando me roubassem as palavras, eu deveria sorrir, por algum motivo, sempre funcionava. Nunca entendi o porquê. A situação não poderia ficar mais constrangedora, ninguém, absolutamente ninguém, estava com espírito natalino. Todos dançando e pulando, com copos de sangria e pipoca. Quem no universo leva pipoca para uma festa de natal? Céus, aquelas pessoas não eram nem um pouco normais, e estavam se divertindo tanto, que simplesmente senti vontade de sair silenciosamente, sem que ninguém notasse minha presença, assim eu não arriscaria atrapalhar nada. Pelo menos era essa minha intenção. Não durou muito tempo.

- Atenção pessoal! - gritou Lucas, se pondo ao meu lado - Temos uma convidada especial na noite de hoje!

No mesmo momento, todos se viraram em minha direção, levantando os copos e gritando, somente rugidos e grunhidos, feito animais na selva. Me senti como um cordeiro ciente que seria abatido. Olhei ao redor, e a situação parecia piorar a medida que percebia o que acontecia em minha volta. A velha casa se iniciava na sala de estar, não deveria ter mais do que vinte metros quadrados, mas sua capacidade de volume era surpreendente, sentados no sofá de três lugares, haviam cinco pessoas; no de dois, haviam três. Haviam também almofadas espalhadas próximas as paredes, onde haviam algumas sentadas, conversando. Uma sala com cada pessoa ocupando um único metro quadrado. Sufocante demais para mim. Para minha surpresa, senti alguém me puxar pela mão, e seguir para o próximo cômodo: a cozinha.

Ao entrarmos, olhos selvagens nos encaravam. Senti como se quisessem pular em meu pescoço, apertar suas mãos até ter toda a minha vida escapando por seus dedos e nem sabia a razão, pelo menos até seguir os olhares curiosos, até encontrar as mãos de Lucas segurando as minhas, abrindo passagem até chegarmos a porta de saída para a piscina. Por sorte nosso percurso não demorou mais do que poucos segundos, ou eu seria obrigada a me libertar de suas garras e sair correndo por mim mesma, mesmo não conhecendo a casa.

Nunca pensei que pudesse caber tantas pessoas destro de uma mesma piscina. Toda a universidade estava ali. Pessoas semi nuas, bêbadas, sem qualquer pudor. As luzes piscavam freneticamente ao som de alguma música que eu desconhecia a origem, os restante do pessoal, que não coube na piscina, espalhavam-se pelo piso de madeira e gramado. Em geral, era uma área bastante espaçosa para uma velha casa.

Nos sentamos em espreguiçadeiras próximas a piscina. Ele estava me encarando tanto, que poderia até fazer um furo em minha testa, se tentasse com mais afinco. Eu não queria olhar para ele, ou seria obrigada a ser deselegante, teria de me retirar da festa, e perderia para Jullian. A verdade é que já não me sentia a vontade em sua presença, pois após seu retorno ao país, parecia ser uma pessoa completamente diferente da qual eu me lembrava. Então fiz o que meu pai me ensinou a fazer, sorri para um cara que passava, que me retribuiu me oferecendo seu copo. Eu jamais aceitaria em outras circunstâncias.

Notei seus olhos se estreitando ainda mais, Lucas estava ao meu lado, olhando fixamente para as costas do cara de quem roubei a bebida. Por um momento, pude jurar que ouvi um xingamento. Não queria pensar nele, muito menos o que poderia estar passando por sua mente. Tudo o que eu precisava era um meio de encurtar as horas que teria que passar por aquele tormento de festa. Antes que pudesse experimentar, o copo vermelho foi arrancado de minha mão.

- Eu não faria isso se fosse você - disse Lucas sombrio.

Não sei o que me fez levar um susto, se foi sua atitude rápida e inesperada ou sua voz aveludada com seu sotaque pesado. Um frio percorreu minha espinha, como se eu tivesse feito alguma coisa de muito errado para tirar dele aquela reação. É verdade que éramos ex conhecidos, mas não pude deixar de pensar que a pessoa que eu conhecia, não seria tão rude sem um bom motivo. Eu não perguntaria o porque. Nos conhecíamos desde nossa infância, então eu sabia que antes da explicação minimamente calculada, teria sarcasmo e humor negro.

- Pensando melhor, seria interessante vê-la se divertindo - continuou ele, me devolvendo o copo.

- Essa é a visão de diversão que você tem? - questionei, gesticulando para as pessoas dentro da piscina.

- A minha visão de diversão, provavelmente é a mesma de Rodriguez, o cara bonitão que te entregou o copo batizado de sangria - disse ele se aproximando de mim, baixo o suficiente para que só eu o pudesse ouvir - Mas não posso permitir que vejam a única herdeira do império Gold desfilar nua pela casa.

Foi como se uma luz se acendesse em minha mente. Então, estavam todos drogados? Fazia sentido. Eu jamais poderia imaginar que aquelas pessoas, jovens de famílias nobres e respeitadas, com futuros promissores e imagens a preservar, pudessem ser tão irresponsáveis ao mesmo tempo. E como se moviam, em sincronia, como se pudessem ouvir um som que eu não podia, era realmente assustador. Então havia sido esse o motivo dele estar tão próximo de mim, por esse motivo havia pego em minha mão e me guiado para longe daquela aglomeração. Para me poupar. Mas por quê?

- Dave me pediu para cuidar de você - confessou

Havíamos passado tanto tempo juntos no passado, que algumas perguntas não precisavam serem feitas.

Dave era pai de Lucas, também era melhor amigo e sócio de meu pai, por esse motivo, passamos nossa infância inteira juntos. A mãe de Lucas havia morrido ao dar à luz, então eu emprestei a minha, simples assim. Crianças são tão ingênuas.

- Como tem passado Gabrielle? - iniciou ele - Você esteve fugindo de mim desde que retornei.

- Não sou uma pessoa nostálgica - confessei - Sinto muito se não te ofereci a recepção que gostaria.

Ele sorriu. Não um sorriso de deboche. Ele realmente sorriu. Um sorriso envergonhado, quase escondido, que ao que parecia, eu não deveria ter notado. Ainda havia covas em suas bochechas, assim como quando éramos crianças. Olhar para ele sorrindo fez surgir um mix de emoções que eu nem sabia que era possível para alguém como eu. Senti falta daqueles dias em que passamos horas brincando e conversando em meu jardim, de quando dormíamos durante um filme, de quando ele contava piadas sem graça e eu me obrigava a rir, apenas para vê-lo rir de volta e assim poder ver aquelas covas. Ao mesmo tempo, senti meu rosto queimar e minhas mãos de fecharem apertas, precisando respirar fundo para não perder o controle e socar sua cara, como estava desejando desde a maldita hora que ele abria aquela porta.

Ele parecia ter lembrado de alguma coisa, ou talvez só tenha sentido o mesmo que eu, o que o fez fechar a cara em uma carranca. Pelo menos seu humor não havia mudado depois de tanto tempo. Continuava me deixando confusa com suas reações.

Lucas sempre foi dono de um humor ácido, que por vezes me constrangia. Senti falta de alguém me tratar como uma garota qualquer depois de sua partida, afinal, ele era meu único amigo . Por conta da situação financeira de meu pai, ele optou por me esconder do mundo, sendo assim, não frequentei jardim de infância, pois ele acreditava que eu não conseguiria manter a verdade longe das outras pessoas, pelo menos não até eu ter idade o suficiente para entender a minha posição. A verdade é que nunca tive um temperamento bom, nem mesmo quando criança, sempre fui malvada, mal humorada e organizada demais para minha idade, o que desagradava as outras crianças com quem pudesse me relacionar. O problema maior é que nunca me interessei por pessoas. Pessoas me deixavam entediadas. Exceto Lucas.

Quando criança, ele costumava ser gordinho, baixinho e assimétrico. Seu cabelo era cortado estilo militar, o que parecia muito radical para uma criança; seus olhos eram grandes e redondos, assim como seu rosto.

Todos os dias aparecia em minha casa, na hora do café da manhã, sempre me levando biscoitos caseiros, que era a única coisa que ele conseguia fazer sozinho e corretamente. Usava um gorro caído, igual ao do Wally, e sempre usava um anel com um pequeno brilhante, em seu dedão esquerdo. Ele e seu pai precisaram voltar para a Coreia, após a morte de seu avô, para cuidar de alguns problemas na empresa da família. Eu tinha dez anos quando nos vimos pela última vez.

Uma semana atrás, ele simplesmente retornou, e como se nada tivesse acontecido, apareceu em minha casa, levando biscoitos caseiros, na hora do café da manhã. O choque foi tanto, que ao vê-lo entrando na cozinha acompanhado por minha mãe, simplesmente me levantei da mesa e deixei aquela casa, levando comigo somente a roupa do corpo. A verdade é que estava tão ressentida com ele, que sequer suportei estar em sua presença. Em todos aqueles anos, ele nunca me escreveu, nunca respondeu meus emails, sequer atendeu minhas ligações. Para mim, aquela pessoa havia morrido.

- Me perdoe por nunca ter retornado suas ligações - disse ele, como em resposta aos meus pensamentos - Eu só achei que ficaria bem sem mim. Você sempre ficou.

- Estou muito bem, obrigada - sorri forçadamente - Já pode me deixar em paz agora.

- É tão difícil assim olhar para mim? - perguntou calmamente - Ou será que minha pronuncia não está sendo clara o suficiente para te manter interessada?

- Sim, é difícil olhar para você - confessei rispidamente - Assim como é difícil ouvir seu sotaque sem sentir repulsa.

A verdade não era essa, eu sabia perfeitamente que sua voz e sotaque eram encantadores, assim com sabia, que o fato de me sentir incomodada com sua presença, seja por sua aparência ridiculamente convidativa, pois conhecia o suficiente de mim para saber que, se ele continuasse com suas investidas, independente do rancor que eu pudesse sentir contra sua pessoa, seu corpo compensaria e expulsaria quaisquer pensamentos que não tivesse como foco o tato. Ou talvez, meu ressentimento fosse forte o suficiente para perdurar pelo resto de nossas vidas, mesmo se ele implorasse miseravelmente. Seria muito difícil conviver com aquela pessoa, se pelo menos ele se mantivesse calado, eu teria alguma chance.

- Por que foi até minha casa? - Eu queria uma resposta sincera, a qual eu sabia que teria.

- Eu te devo uma explicação, e fui até la para da-la a você e a sua família. ― respondeu ele, calmamente, olhando em meus olhos.

- Você não estava lá quando eu precisei de você - confessei - Explicação nenhuma me fará mudar de opinião.

Eu não suportava mais tanto barulho. Não suportava mais olhar para aquele desconhecido. Mas o que me deixava mais infeliz, era aquele sentimento de posse que senti brotar em mim, assim como quando éramos crianças. Eu poderia detestar todas as pessoas, implicar com cada uma delas e maltratá-las, mas em nenhum momento em toda minha vida, consegui ve-lo da mesma forma que os demais. Lucas sempre foi importante demais para mim, tão precioso quanto meu pai. O destido me tirou os dois, um após o outro, e mesmo que tivesse me devolvido um, ele já não carregava toda a importancia e carga emocional de antigamente, e mesmo se o fizesse, eu não era mais capaz de suportar nenhum volume de sentimentos. Me tornei um involucro raso, incapaz de conter qualquer sentimento por muito tempo, sem deixa-lo escapar pelas paredes rachadas.

Fiz o que deveria ter feito desde o momento em que cheguei. Me levantei e caminhei pelo gramado, ignorando o chamado de Lucas, que deixei me observando partir. Caminhei até estar bem longe daquela velha casa. Eu não me importava onde iria parar, na verdade, eu não queria parar. Caminhar me faria esquecer tudo o que havia acontecido naquela meia hora que passei ao lado dele. Por que ele havia retornado? Por que ainda estava vivo? Talvez eu devesse tomar as rédeas da situação, e deixar claro que não passávamos de pessoas que um dia se conheceram, afinal, eu não queria ter qualquer contato com ele. Não após ter me ignorado por dez anos.

Tentei espantar de minha mente quaisquer pensamentos que fizesse crescer aquele desejo de voltar para aquela festa e despejar nele toda a minha raiva, todo aquele sentimento ruim e depreciativo que encubei por todos aqueles anos. Definitivamente não seria uma boa ideia ficar tão próxima a ele, pois seria questão de tempo até que ele percebesse o tipo de pessoa que eu havia me tornado, e quando isso acontecesse, talvez sua ausência fosse justificada.

Obriguei minhas pernas a acelerarem, até estar correndo desenfreada, em meio a carros que buzinavam quando eu cortava caminho, ignorando completamente as leis de trânsito. Por que raios ele tinha que morar no centro da cidade? Aquele era o local mais movimentado naquela noite, véspera de natal. Todas aquelas pessoas felizes, caminhando como se não tivessem mais nada para fazer.

Murilo era uma pessoa completamente apaixonante, de pele pálida, olhos azuis e cabelo preto feito carvão, parecia um protagonista de série adolescente, exceto pelo fato de ter trinta anos, o que foi uma verdadeira surpresa quando descobri. Essa era a única razão de eu vê-lo escondida de Jullian. Era proibido qualquer relacionamento que ultrapassassem a diferença de três anos em nossa idade, se Jullian descobrisse que tínhamos dez anos de diferença, tudo estaria perdido, afinal, Murilo e eu tínhamos o mesmo objetivo: encontrar uma forma de me libertar das correntes do império Gold.

Apesar de não ser meu plano original para aquela noite, foi o melhor que conseguir pensar diante dos acontecimentos. Quando toquei sua campainha, mesmo não tendo certeza se havia alguém em casa, ansiei desesperadamente por algum conforto, mesmo que apenas carnal. Ele abriu um sorriso assim que botou os olhos em mim, me abraçando e puxando para dentro de sua cobertura. Murilo havia preenchido o vazio que havia em minha vida, nos encontramos por acaso, logo após a morte de meu pai e agora, ele era meu confidente. Eu realmente não sei o que teria feito se não o encontrasse ali, disposto a suportar meu humor, tanto naquela época quanto nesse dia.

Mas naquele dia, algo estava errado. Soube no exato momento em que encontrei seu olhar que ele não esperava me encontrar, pelo menos não naquela hora da noite, naquele dia em especial. O abraço de Murilo, normalmente tão reconfortante, parecia vazio, quase forçado. Seus braços me cercavam, mas eu sentia o distanciamento, uma frieza que nunca esteve ali antes. Meu coração disparou, e antes que pudesse perguntar o que estava acontecendo, ele sussurrou, quase sem querer: 'Precisamos conversar.' E naquele instante, soube que nada mais seria como antes.

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