É domingo e está passando um programa de auditório na TV. Um casal está dentro de uma pequena piscina inflável com água e bastante sabão. A mulher não pode deixar o cara escapar, e isso tudo gera um show de bunda e seios. É tanto sensualismo que me pergunto se é certo Beatriz estar assistindo isso. Mas ela só tem três anos.
LORENZO
É domingo e está passando um programa de auditório na TV.
Um casal está dentro de uma pequena piscina inflável com água e bastante sabão. A mulher não pode deixar o cara escapar, e isso tudo gera um show de bunda e seios.
É tanto sensualismo que me pergunto se é certo Beatriz estar assistindo isso.
Mas ela só tem três anos.
Sua distração se dá pelo fato de que, para ela, é muito engraçado toda vez que o casal escorrega e leva um tombo.
Isso me alivia, gosto de vê-la sorrindo.
Tenho treze anos e as cenas na TV não me cativam nem um pouco. Achei que seria o suficiente, mas a verdade é que nada na TV parece bom ao ponto de esconder minha fome.
Televisão não é comida e não enche a barriga de ninguém. Mas se a vendêssemos, talvez...
Beatriz solta uma gargalhada quando o casal leva outro tombo e dessa vez é um tombo daqueles.
Bom, talvez a televisão seja realmente uma boa distração para minha irmãzinha, mas não consigo deixar de pensar que ela também esteja com fome.
Minha barriga parece que tem o Hulk dentro dela, esmagando e esmagando.
A última vez que comemos alguma coisa foi na noite passada. A vizinha aqui de perto, dona Maria, viu que meu pai tinha saído e veio nos trazer três pedaços de torta de frango. Sobras do aniversário da sua filha que aconteceu naquela manhã durante um almoço.
Ela até nos convidou, mas papai disse que não tínhamos o que dar de presente e que por isso não iríamos.
Ele também disse que dona Maria era uma velha fofoqueira que precisava aprender a cuidar da vida dela.
Mas se não fosse por ela, Beatriz e eu não tínhamos comido nada ontem à noite.
Gosto da dona Maria que sempre vem nos visitar quando o papai vai embora. Ela diz que ele vai atrás de trabalho, mas ela mente.
É uma fofoqueira e mentirosa.
Tenho treze anos, mas sei que meu pai sai para beber, afinal limpo o vômito dele pela sala com medo da minha irmãzinha escorregar e se machucar.
Sinto o cheiro de urina que fica na calça dele quando vou até o cesto de roupas, e o cheiro de álcool emana dele naturalmente.
Quando passa por mim, meu estômago só falta revirar, e sei que não é ânsia de vômito por causa do estômago vazio.
Ele sai à noite e volta só no outro dia.
Se trouxesse ao menos o pão, não reclamaria, mas ele só traz tristeza.
Agora, já passa do horário do almoço, papai ainda não está em casa e Beatriz e eu não comemos nada ainda.
Já me pergunto o que iremos comer à noite.
Ela tem três anos, mas não fala quase nada. Não sei se isso é normal e me agonia um pouco. Ela acaba usando o choro como forma de comunicar que algo não está certo.
Nosso pai odeia quando ela começa a chorar, principalmente quando ele está de ressaca.
Ela já está acostumada com a dor da fome?
Minha irmãzinha é só cabelo de tão magrinha que está. Dói meu coração quando consigo ver suas costelas.
Talvez devesse pegá-la no colo e ir à casa da dona Maria para perguntar se ainda tem torta de frango.
A porta da frente é aberta com muita força, me espanto e o barulho da TV fica distante. Olho para a porta de madeira e vejo meu pai entrando aos tropeços.
A única coisa que ele traz na mão é uma garrafa de cerveja. Meu coração bate forte e meu estômago embrulha.
Estou com medo dele e por isso me encolho um pouco no sofá que é tão velho que tem espumas saindo.
Papai cambaleia para dentro de casa, finge que não nos vê e fico aliviado.
Mas aí Beatriz começa a chorar, não sei se é de fome ou porque papai trouxe com ele uma energia ruim.
Ele vira e olha para ela por cima do ombro. Minha única reação é pegar a minha irmãzinha no colo, mesmo que minhas mãos estejam tremendo.
- Xiu, Bia, para com isso! - cochicho para ela enquanto a balanço no colo, mas não resolve.
Olho assustado para o meu pai e ele resmunga de cara fechada com os dedos já agitados.
É quando Beatriz para de chorar.
Por alguma razão, ela sabe onde isso terminaria, assim como eu sei onde quase sempre termina.
Estou dirigindo um Kia Cerato já faz mais de um mês. Ele tem sido meu principal aliado nessa expedição que resolvi iniciar nos Estados Unidos após ter terminado um período desbravando terras latinas como Uruguai, Bolívia e México.
Não estava em meus planos, vir para cá, meu objetivo era fugir do óbvio e ir para lugares que nunca estive antes.
Mas confesso que fui enfeitiçado pelo desejo de pegar a autoestrada e sair sem rumo. Atravessar o país do tio SAM de uma ponta para outra de uma forma misteriosa.
E desde então tem sido uma aventura.
Passo noites em motéis baratos com energia duvidosa e funcionários estranhos. Às vezes preciso tomar banho de pia do banheiro de um posto de gasolina com aspecto abandonado. Comer comidas gordurosas em lanchonete e receber um atendimento de merda enquanto sou observado por pessoas curiosas o bastante para notar meu sotaque estranho.
Mas, tudo bem, não é como se fosse um cliente simpático também, que volta sempre ao mesmo lugar.
Porque nunca volto.
Só estou de passagem, fazendo meu retiro espiritual.
E não, não virei um brasileiro falido em solos estadunidenses.
Ainda sou o Lorenzo Molinari,sou CEO Executivo e sócio do meu melhor amigo, Oliver da Giordano S.A..
Sempre fui considerado um homem bem-sucedido. Construí meu patrimônio com muito trabalho e dedicação. Me formei como
engenheiro agrônomo a duras penas e fiz muitas renúncias pelo caminho. Porém,consegui chegar aonde poucos conseguem.
Trabalhar com a terra, é isso que realmente aprecio, é o que me move. Contudo, o meu cargo exige que repetidamente atenda demandas burocráticas em um escritório na sede de concreto, aço e vidro da companhia.
Mas é ao ar livre, nas vastas plantações das inúmeras propriedades agrícolas que comando que me sinto plenamente realizado.
Onde pertenço.
Infelizmente, nem tudo em minha vida são conquistas. Na contramão do meu sucesso profissional, está o maior fracasso da minha existência.Infelizmente, nos últimos meses, descobri da pior maneira possível que, independência financeira, não vale de nada se você está completamente quebrado por dentro.
Há seis meses perdi minha única irmã, a Beatriz. Ela foi brutalmente assassinada.
A morte dela me deixou completamente perdido e com gatilhos que não pude conter desde então.Tento evitar ao máximo lembrar da noite horrível que recebi a ligação sobre o que tinha acontecido.
Mas é devastador saber que nunca mais verei minha doce irmã caçula outra vez e perceber que só consigo parar de pensar nisso quando estou relembrando nossa infância infeliz.
E algo que simplesmente odeio é ter que recordaros anos passados com nosso pai alcoólatra, o que infelizmente contemplou toda a nossa infância e parte da adolescência.
Houve um momento quando eu já tinha idade os suficiente para entender o que significava ter um lar estruturado ou, em nosso caso, não ter um, que percebi que Beatriz e eu seríamos diferentes dos outros adolescentes da nossa idade por causa da nossa vida caótica.
Mas sabia, desde muito novo, que deveria ser aquele que impediria Beatriz a ter a mesma adolescência horrível que eu tive.
Como o homem da casa, era meu dever estudar e trabalhar até que saíssemos das sombras opressoras do nosso pai.
Diferente dos meus amigos, não os conheci em um internato para meninos. Ralei muito em instituições públicas para passar no vestibular e entrar para uma boa faculdade federal, de preferência.
Mas desde meus quinze anos, colocava a mão na massa para que quando chegasse aos dezoito, tivesse como dar o fora daquela casa com Beatriz.
E eu consegui.
Consegui dar à minha irmã uma vida boa, longe de qualquer resquício do canalha do nosso pai. Consegui fazê-la ter bons estudos e não a deixar mais passar fome.
Todo aquele medo que o nosso pai nos fez ter na infância estava enraizado e paguei os melhores profissionais para que Beatriz não ficasse tão quebrada quanto eu.
Sempre a admirei por conseguir falar sobre isso de forma tão fácil, sobre se expressar em como o passado foi difícil.
Mas eu...
Eu sou travado.
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