Você nunca quis que eu... – É isso que você acha? – disse Ancel. – Sim – disse Berenger, sem pestanejar. A verdade absoluta cou pairando entre os dois. Ancel sabia disso e, mesmo assim, também sabia da confusão que sentira qua ndo Berenger o beijara, sabia do sentimento agudo e escaldante que tinha ao pensar que Berenger rescindiria o contrato entre eles. – Não me passe adiante – pediu Ancel. – Ancel, eu vou apoiar a tentativa do príncipe de tomar posse do trono. A probabilidade de ele fracassar é grande, seus apoiadores serão ostracizados, tachados de traidores... Não posso garantir a você uma vida, um futuro. – Berenger estava sacudindo a cabeça. – Se o regente vencer, não terei dinheiro nem terras. Você deve car com alguém que possa lhe dar os luxos que merece, não com alguém que vai envolvê-lo em... – É por isso? – perguntou Ancel. – É por isso que você resolveu rescindir o contrato que tem comigo? Isso lhe parecia fazer sentido. E foi a isso que ele se apegou. Teve vontade de perguntar "Por acaso isso quer dizer que não está me passando adiante porque não me quer?". No entanto, não sabia como verbalizar a dúvida. E, normalmente, sabia muito bem como verbalizar e pedir o que queria. – Você seria capaz de me dizer, com sinceridade, que iria querer car comigo se isso significasse pôr em risco sua posição? – perguntou Berenger. – Se eu não tivesse dinheiro algum? – Nunca transei com ninguém sem ser por dinheiro. As palavras não saíram do jeito que ele pretendia. O modo dolorosamente objetivo com que Berenger lhe zera aquela pergunta significa que Ancel havia dado uma resposta sincera. Foi Berenger quem falou: – Quando o vi na arena, achei você incrível. Você era destemido, poderoso. Arrebatou todos os lordes do recinto e deu uma surra neles. Eu não conseguia tirar os olhos de você. – Você também me deseja? – perguntou Ancel. – Ancel... – Quando nos beijamos, você... – Sim. – Não me importo com o que pode acontecer. – Ancel foi se aproximando, porque Berenger o desejava. Não conseguia impedir que os sentimentos causados por esse fato transparecem em sua voz, o prazer que provocava, a autoconfiança recém-conquistada. – Você não é pobre neste instante. Pode pagar por mim. Berenger estava sacudindo a cabeça em negativa. – Ancel, eu não sou pobre neste instante. Mas se o príncipe fracassar... – Se ele fracassar... – disse Ancel. Estava adentrando no espaço de Berenger. Pôs a mão nas amarrações da capa do amo, e Berenger não se esquivou.
capitão, uma camadinha de lustro F que ele guardou para si. Jord era um bom guerreiro, era leal a seu príncipe, mas isso não servia de nada para obter a patente de capitão. Os capitães eram lhos de aristocratas – mesmo que a Guarda do Príncipe fosse um pouco diferente, saída da escória. Quando a insígnia foi jogada para ele, ele quase a deixou cair. – Gosto que minhas ordens sejam obedecidas com rapidez, e você acabou de ver o que vai acontecer se não vier quando o chamar. – O príncipe, então, lançou um olhar para Govart, sangrando na terra.
Realmente: ver o príncipe atravessar Govart com sua espada havia instigado uma obediência cega nas novas tropas e deixado uma expressão chocada no rosto do escravo akielon. Todos caram paralisados, inúteis, enquanto Govart era enxotado do acampamento. Depois disso, eles tiveram que compensar um dia de jornada a cavalo, fazendo-a na metade do tempo. Jord gritou para os homens levantarem acampamento, gritou mais uma vez para que montassem nos cavalos, arrastou e colocou Lorens em cima do cavalo com as próprias mãos e ordenou a Orlant que atirasse um balde d'água em Andry, que cara dormindo enquanto tudo isso acontecia. A tropa enm começou a se movimentar, e diversas vezes ele teve que recorrer à Guarda do Príncipe para evitar retardatários e obrigar o restante dos mercenários a permanecer em formação. – Pegue quatro homens e leve a retaguarda desse esquadrão de volta para a estrada – Jord orientou. Orlant deu um sorriso e disse: – A retaguarda? Você quer que eu... – Não – interrompeu Jord, que conhecia o outro homem há muito tempo. Quando chegaram ao acampamento, os homens do regente tinham se recuperado o suciente do choque a ponto de demonstrar teimosia em relação às ordens. A maioria deles sabia muito pouco a respeito de ser um soldado. Tudo o que Govart exigira do grupo foi que eles cassem fora de seu caminho. Jord não poderia estar mais atarefado: as montarias não estavam encilhadas corretamente, havia gritos roucos emitidos debaixo de uma tenda desmoronada e um uxo constante de palavrões proferidos contra o príncipe ("aquele lho da puta loiro e insensível, aquele canalha alto e presunçoso feito de gelo"). Quando a noite caiu e as tochas queimaram em chamas, acompanhando as leiras de tendas (mais ou menos) retas, Jord percebeu que estava sozinho nos limites do acampamento, perto das árvores. Lá fora, eu podia ouvir o farfalhar das folhas, mais alto que os ruídos do acampamento, onde fogueiras e tochas de sentinela formavam pontos de luz que contrastavam com os contornos de tendas de lona, que eram mais escuras. O silêncio das tropas era enganoso, já que os mercenários do regente passariam as semanas seguintes procurando qualquer desculpa para causar confusão. Jord pegou a insígnia de capitão manchada e amassada e analisou o objeto. O regente os havia deslocado para a fronteira para que malograssem. Capitanear aqueles mercenários não era uma tarefa para a qual qualquer um se ofereceria. Mesmo para um capitão experiente, era impossível manter a disciplina daquela corja enquanto enfrentava ataques que vinham de oito lados diferentes. O príncipe sabia da magnitude da tarefa quando entregou aquela insígnia para Jord. E o capitão pensou nisso. Ao passar o dedo sobre a estrela amassada naquela clareira isolada, ele sorriu. À esquerda, um graveto quebrou. Foi logo guardando a insígnia e cou um tanto corado por ter sido pego em agrante em um instante íntimo de orgulho. – Capitão – disse Aimeric. – Soldado – respondeu, com uma consciência exacerbada do novo título, o qual fora pronunciado com o sotaque aristocrático de Aimeric. – Espero que não seja insolência de minha parte, mas segui o senhor até aqui. Queria lhe parabenizar. O senhor merece. Quer dizer... acho que você é o melhor homem aqui. Jord soltou uma risada debochada. – Obrigado, soldado. – Por acaso eu falei algo que não deveria? – É a primeira vez que um aristocrata tenta me impressionar. Um olhar conhecido se instaurou no rosto de traços nos de Aimeric, mas ele não baixou o olhar. Aos 19 anos, o rapaz era exatamente o tipo de bem- nascido que, em geral, conseguia entrar na guarda: um quarto lho, destinado a ser ocial. – Fui sincero no que disse. Eu o respeito. – As bochechas do garoto estavam saltadas de tanto rubor. – Eu quero me sair bem aqui. – Se sair bem aqui é simples. Você não precisa polir os botões de minha farda. Apenas dê duro. – Sim, capitão – respondeu, corado, já dando as costas. – E, soldado... Aimeric tornou a se voltar para o capitão. O hematoma no rosto cou salpicado pela luz do luar. Desde que chegara, fora vítima de lutas. Tinha virado alvo dos mercenários do regente, e qualquer desavença sempre acabava com Aimeric no meio, apanhando de todos. – O que aconteceu com Govart hoje de manhã não foi sua culpa. O príncipe tomou aquela decisão por conta própria. – Sim, capitão – disse Aimeric, e seu olhar, ao luar, cou arregalado por um instante, de um jeito estranho. Como a maioria dos homens da guarda, Jord serviu Laurent por causa de Auguste. Ainda se recordava de como era tentar impressionar alguém: Auguste era uma lembrança de ouro que jamais se esmaecia, uma estrela brilhante para servir de guia, levado antes do tempo. Naquela época, Jord era mais jovem e tinha habilidades sucientes para ser contratado como guarda em caravanas de mercadores. Auguste o havia visto lutar à distância e chamado a atenção do capitão da milícia regular para ele. Pelo menos foi isso o que o capitão disse para Jord mais tarde – a recomendação de um príncipe. Algo que Jord nunca esqueceu. Trabalhando na capital, ele vira a Guarda do Príncipe de fora – vira a guarda em seu auge, os homens escolhidos a dedo, os melhores entre os nobres, atravessando os portões do palácio a cavalo, as insígnias de estrela douradas reluzentes em sua farda. E, nos anos que se seguiram à morte do príncipe Auguste, ele também havia observado a guarda perder o brilho e desaparecer. Os jovens nobres, que vinham em peso para empunhar o estandarte de estrela do príncipe, o abandonaram e passaram para o lado do regente, cuja facção era o lugar perfeito para quem queria avançar na carreira. O novo herdeiro (Laurent) tinha 13 anos, nenhuma inuência e absolutamente nenhum interesse em assuntos militares. Assim, as bandeiras azuis e douradas foram retiradas, e os estandartes de estrelas, enrolados e guardados. Durante dois anos, o emblema do príncipe herdeiro jamais foi hasteado. Foi substituído pelas bandeiras vermelhas da regência, até que ficou difícil lembrar que houvera uma época em que os ordenados pelotões do palácio usavam estrelas no peito. Ao polir a armadura nos alojamentos regulares, Jord foi interrompido por passos rmes que calçavam botas de montaria com salto e, em seguida, entrou um garoto que possuía o tipo de perl capaz de derrubar homens de suas cadeiras: cabelo loiro e olhos levemente espremidos, a cor de... – Alteza – disse Jord, levantando-se de supetão. – Todos os demais homens recomendados por meu irmão para servir no palácio foram para o lado de meu tio. Por que você não fez o mesmo? O príncipe tinha 15 anos, estava passando por seu estirão de crescimento, o rosto não era mais o de uma criança. A voz recém-mudada, um tenor. – O regente só levou os melhores – respondeu Jord. – Se meu irmão o notou, é porque você é o melhor. – Os olhos azuis rmes, xos em Jord. – Eu quero que você faça parte da minha Guarda do Príncipe. – Alteza, não sou ninguém para... – E, se vier comigo, exigirei de você o melhor. É o que receberei? O príncipe ergueu os olhos para Jord, que sentiu cada partícula de sujeira em seu próprio rosto, o corte mal remendado da manga e cada vela gasta de sua armadura, apesar de ter
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