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Faminto e sedento
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Capítulo

- Está morto? - Ouço uma voz perguntar, mas ela parece vir de muito longe. - Quase, mas ainda respira. O que quer que eu faça com ele? Posso acabar com a agonia do garoto com uma única bala. - Não. Valorizo a lealdade. Ele foi contra o próprio pai para proteger a Organização. Esse aí entendeu que a Irmandade[4] está acima da família. - Dizem que ele é meio maluco. - Quem de nós não é? De qualquer modo, o rapaz é corajoso. Não é qualquer um que enfrentaria um avtoritet[5] para cumprir com seu dever de lealdade ao Pakhan[6]. - Não costuma ser tão generoso, Papa[7]. Alguns diriam que um fruto nunca cai longe da árvore. E se for como o pai? - Nesse caso, por que não permitiu que o maldito seguisse com o plano para me matar? Não, o menino é água de outra pipa. E o que estou fazendo não tem a ver com generosidade, mas com pensar no futuro. Conto nos dedos de uma mão quantas pessoas morreriam realmente por mim e por minha família. É mais novo do que os meus netos. Um dia, Yerik e Grigori[8] vão estar no comando e precisarão de homens de verdade ao lado deles. Eu acho que eles continuam conversando, mas não tenho certeza. Acordo e perco a consciência várias vezes. Entretanto, entendo que o Pakhan acha que eu fiz o que fiz por ele, mas não foi. Minha decisão não teve nada a ver com alguém, mas com algo. Regras. É por elas que eu vivo. Eu nunca as quebro. Elas são o meu verdadeiro deus, muito acima do que as pessoas chamam de sentimentos ou emoções. Não tenho amor e nem raiva dentro de mim. Não consigo entender esses conceitos, já as regras, são simples: siga-as ou quebre-as. Há sempre somente duas escolhas. Preto ou branco. O cinza é uma impossibilidade e também uma desculpa para quem não consegue se manter fiel à sua palavra. Não me ofendo com xingamentos ou me dobro à tortura. Não temo a morte e nem sinto medo de nada, a não ser ter minha vida fora de padrões que estabeleci. Eu preciso dos padrões e os procuro em qualquer lugar. Quando descobriu essa minha habilidade de pensar em cem por cento do tempo de forma lógica, meu pai usou-a por muito tempo em seu trabalho na Organização. O que ele não entendeu, é que essa não era apenas uma característica minha, mas quem sou. Em tudo, todas as áreas da minha vida, busco padrões. É assim que consigo compreender o mundo ao meu redor. Foi assim que descobri a traição dele. Ele não estava somente roubando, planejava entregar o Pakhan nas mãos dos inimigo e isso desordenaria meu plano de continuar servindo à Organização. Atrapalharia as entregas de carregamentos de armas, cujas rotas calculei com precisão matemática. Traria um novo chefe para a Irmandade, que talvez quisesse modificar a planilha de lucro. Iniciar guerras desnecessárias. Eu odeio mudanças. Qualquer alteração me desestabiliza. Até mesmo uma solução alternativa para mim, tem que ser analisada de antemão. Tusso e me sinto sufocar. O ar está impregnado com uma mistura esquisita. Um dos odores é sangue, eu sei. Estou acostumado a esse cheiro desde pequeno. Aos treze anos, matei pela primeira vez. Uma ideia destorcida do meu pai para que eu fosse iniciado dentro da Organização. O outro odor, acredito que seja álcool, então acho que devo estar em um hospital. Eu não me importo, só quero ficar curado. Preciso que me costurem para que eu possa seguir com o meu trabalho. Se demorar muito, vai atrapalhar meu cronograma e eu não tolero imprevistos.

Capítulo 1 Faminto e sedento

Capítulo 1

Rússia

Dezessete anos depois

Um corvo faz um voo rasante sobre nossas cabeças, as asas negras abertas como se desejasse nos cobrir com sua escuridão. Vovó dizia que corvos são sinal de mau agouro e estou começando a acreditar que tinha razão.

Como boa russa, sou supersticiosa. Quando alguém derrama sal em cima da mesa no jantar ou almoço, fico esperando uma briga[9]. Se o meu olho direito coça, tenho certeza de que uma boa notícia[10] chegará. Também fico zangada se no meu aniversário, algum parente me dá chinelos de presente. Isso só pode significar que terei que ser internada em um hospital em breve[11].

Minha irmã caçula, Taisiya, se dobra de tanto rir quando conversamos sobre isso. Seu argumento é de que não há provas científicas de que essas coisas aconteceriam. Não discuto, continuo seguindo os conselhos da vovó e mantendo tudo que possa me trazer má sorte bem longe de mim. Eu poderia lhe dizer que também não há provas científicas de que Deus existe e ainda assim, acreditamos Nele, mas para que magoá-la? Taisiya tem muita fé e pretende passar o resto da vida servindo ao Nosso Senhor.

- O pápa[12] nunca permitirá e além do mais, vai acabar com meus sonhos de ser uma bailarina famosa e viajar me apresentando pelo mundo inteiro.

Ela me encara com pena e eu acho que sei a razão: somos princesas da máfia. Não temos escolhas quanto ao casamento e nem mesmo se vamos nos casar um dia. Ele é certo e se dará tão logo completemos dezoito anos. Talvez, antes. Assim, os planos de viajar com um corpo de balé é irreal.

- Nunca saberá se não tentar, Ana.

Minha irmã é a melhor pessoa do mundo. Sempre doce, engraçada e gentil. Nem dá para acreditar que é filha da minha madrasta. Mas ela é muito maluquinha também.

- Taisiya, é você quem quer ser freira, não eu. Apesar de que, será a freira mais doida do país.

Nossa família é uma exceção na Rússia. Ao contrário da maioria da população, composta de católicos ortodoxos[13], somos católicos apostólicos romanos e desde pequena Taisiya diz que vai ser noiva[14] de Cristo.

Eu quero uma vida bem diferente para mim. Minha mãe morreu quando eu ainda era um bebê e fui criada pela minha madrasta desde que me entendo por gente, que por sinal, me detesta. Kristina não é uma péssima pessoa só comigo,

mas com o mundo inteiro. Mesmo assim, não consigo sentir tanta raiva dela porque me deu de presente minha irmã. Taisiya é o meu sol. Junto com papai, a pessoa que mais amo no mundo.

- Não será uma freira, sua boba. Somente fingirá que quer ser uma e então depois, pode fugir do país.

- Você definitivamente não está bem, irmã. Para onde eu iria? Papai me traria de volta em dois tempos e ia ficar muito zangado.

Ela revira os olhos.

- Até parece que ele fica zangado com você mais do que cinco minutos, né? Se os homens da Organização soubessem o quanto ele é bom para nós, não o temeriam tanto.

- Por sua mãe, ele seria mais rigoroso - falo, antes que consiga me segurar e em seguida, me arrependo. - Sinto muito, irmã. Não deveria ter dito isso.

- Não tem problema. Eu a amo por obrigação, mas sei que mamãe é muito má com você.

Eu desconfio da razão. Tem ciúmes de mim com nosso pai porque sabe que ele ainda é apaixonado por mamãe, mesmo depois de tantos anos depois de ter falecido. Sou a cara dela. O mesmo tom loiro de cabelo, que papai diz que é como mel silvestre, olhos azuis esverdeados, magra e pequena. O corpo ideal de uma bailarina.

Olho para o céu, que agora começa a ficar cheio de nuvens e suspiro desanimada.

Um convento! Que ideia doida da minha irmã.

- Por que veio com essa história hoje? - pergunto.

- Não quero contar a razão para não deixá-la triste.

- Impossível. Sou a menina sorriso. Preciso ser para poder exibir meus dentinhos superiores separados. É meu charme - falo e, como eu esperava, ela gargalha. - Conte-me o que há de errado, Taisiya. Eu te conheço. Não viria com essa conversa de convento sem uma razão.

- Eu ouvi minha mãe falando com papai. Quer que ele prometa você para um dos primos dela.

- O quê?

- Ele também é membro da Organização. Um membro do alto escalão, Ana. Não tem como papai recusar, porque é um ótimo partido, segundo mamãe disse.

Sinto meu estômago revirar. Eu sabia que teria que me casar um dia e que seria com um homem que meu pai escolhesse, mas não esperava que, com recém-completados quinze anos, eles já estivessem fazendo arranjos para uma união. Nos meus sonhos bobos, acreditei que poderia continuar a dançar e me apresentar, como faço desde pequena.

Kristina, assim como nós, também era uma princesa da Máfia e seu casamento com meu pai foi arranjado. Não sei se o amava quando se casou com

ele, mas agora, acho que sim, o que significa que esses casamentos podem dar certo. Apesar disso, não estou pronta para ser esposa de quem quer que seja. Sou somente uma menina.

- Talvez esse homem, meu futuro marido, me deixe continuar dançando e me apresentar em teatros aqui em Moscou, mesmo. Não pelo dinheiro, só pelo prazer.

- Ele não vai deixar, Ana.

- Por que diz isso?

- Porque eu o ouvi falando com a mamãe. Ele quer herdeiros tão logo se casem.

Sinto um estremecimento de nojo. Isso significa fazer sexo com esse homem desconhecido.

- Quantos anos ele tem?

- Muito mais velho do que o nosso pai. Eu chutaria por volta de uns sessenta.

- Ai, meu Deus!

- É por isso que estou lhe falando para tentar a alternativa do convento.

Diga que vamos juntas.

- Papai nunca vai cair nessa. Ele sabe que não quero ser freira.

- Calma, eu tenho tudo planejado. Você vai falar com ele que quer viver no convento para ficar perto de mim, mas que assim que fizer dezoito anos, sairá para se casar. Quando estivermos lá, vai fugir.

- Você está com febre? Só pode estar delirando, Taisiya. Eu não sobreviveria um dia nas ruas. Fomos criadas como verdadeiras damas, não sabemos nada do mundo.

- Eu sei, Ana, mas precisa confiar em mim. Vamos dar um jeito. Não posso deixar que vá morar com aquele homem. Ele embrulha meu estômago.

Um calafrio me atravessa. Minha irmã é sempre alegre e seu rosto sério agora não combina com a menina doce que me acorda pulando na minha cama todos os dias.

- O que não está me dizendo?

- Esse homem, Ayrtom, não é uma boa pessoa.

- Como sabe disso?

- As coisas que ele e minha mãe conversaram... eu não entendi muito do que falaram, mas não gostei do que compreendi, Ana. Minha mãe não gosta de você. Esse casamento não será em seu benefício.

- Então por que papai permitirá uma coisa assim?

- Você sabe a razão. A Organização vem sempre em primeiro lugar. Está acima da família, inclusive.

- Você parece mais velha que eu. Mais preparada para o mundo, também.

Como isso é possível?

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