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O ar que ele respira.

O ar que ele respira.

renata medeirosM

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Capítulo

Prólogo Tristan 2 de abril de 2014 — Pegou tudo? — perguntou Jamie, parada no meio do hall de entrada da casa dos meus pais, roendo as unhas. Quando seus belos olhos azuis sorriram para mim, pensei na sorte que tinha por ela ser minha. Fui até ela e a abracei, apertando seu corpo mignon junto ao meu. — Peguei. É isso, meu amor. A hora é essa. Ela entrelaçou os dedos na minha nuca e me beijou. — Estou tão orgulhosa de você. — De nós — eu a corrigi. Depois de tantos anos vivendo de planos e sonhos, meu objetivo de criar e vender minhas próprias peças de mobília artesanal estava prestes a se tornar realidade. Eu e meu pai, que também era meu melhor amigo e sócio, estávamos a caminho de Nova York para uma reunião com alguns empresários que se mostraram muito interessados em investir em nosso negócio. — Sem o seu apoio, eu não seria nada. Essa é a nossa chance de conseguir tudo que a gente sempre sonhou. Ela me beijou de novo. Nunca imaginei que pudesse amar alguém tanto assim. — Antes de ir, é melhor saber logo que a professora do Charlie me ligou. Ele arranjou confusão na escola outra vez. O que não me surpreende, já que puxou tanto ao pai...

Capítulo 1 O ar que ele respira.

2 de abril de 2014

— Pegou tudo? — perguntou Jamie, parada no meio do hall de entrada da casa dos meus pais,

roendo as unhas. Quando seus belos olhos azuis sorriram para mim, pensei na sorte que tinha por

ela ser minha.

Fui até ela e a abracei, apertando seu corpo mignon junto ao meu.

— Peguei. É isso, meu amor. A hora é essa.

Ela entrelaçou os dedos na minha nuca e me beijou.

— Estou tão orgulhosa de você.

— De nós — eu a corrigi.

Depois de tantos anos vivendo de planos e sonhos, meu objetivo de criar e vender minhas

próprias peças de mobília artesanal estava prestes a se tornar realidade. Eu e meu pai, que também

era meu melhor amigo e sócio, estávamos a caminho de Nova York para uma reunião com alguns

empresários que se mostraram muito interessados em investir em nosso negócio.

— Sem o seu apoio, eu não seria nada. Essa é a nossa chance de conseguir tudo que a gente

sempre sonhou.

Ela me beijou de novo.

Nunca imaginei que pudesse amar alguém tanto assim.

— Antes de ir, é melhor saber logo que a professora do Charlie me ligou. Ele arranjou confusão

na escola outra vez. O que não me surpreende, já que puxou tanto ao pai...

Sorri.

— O que ele aprontou agora?

— Segundo a Sra. Harper, ele disse para uma menina que zombava dos óculos dele que esperava

que ela engasgasse com uma lagartixa, já que ela se parecia com uma. Que engasgasse com uma

lagartixa. Dá pra acreditar?

— Charlie! — chamei.

Ele veio da sala de estar com um livro nas mãos. Não estava de óculos, e eu sabia que era por

causa do bullying.

— Que foi, pai?

— Você disse para uma menina que queria que ela se engasgasse com uma lagartixa?

— Disse — confirmou ele, como se não fosse nada de mais.

Para um menino de 8 anos, Charlie parecia se preocupar muito pouco com a possibilidade de

deixar os pais irritados.

— Cara, você não pode dizer uma coisa dessas.

— Mas, pai, ela tem mesmo cara de lagartixa! — retrucou ele.

Tive que me virar para disfarçar a risada.

— Vem aqui e me dá um abraço.

Ele me abraçou apertado. Eu ficava apavorado ao pensar no futuro, no dia em que ele não

quisesse mais abraçar o velho pai.

— Vê se você se comporta enquanto eu estiver fora. Obedeça à sua mãe e à sua avó, está bem?

— Tá, tá...

— E coloque os óculos pra ler.

— Por quê? Eles são ridículos.

Eu me agachei, o dedo em riste tocando o nariz dele.

— Homens de verdade usam óculos.

— Você não usa! — reclamou Charlie.

— Tá, alguns homens de verdade não usam. Só ponha os óculos, tá legal?

Ele resmungou antes de sair correndo para a sala. Eu ficava feliz por ele gostar mais de ler do que

de jogar videogame. Sabia que ele havia herdado da mãe, bibliotecária, o amor pela leitura. Mas, no

fundo, sempre achei que o fato de eu ter lido para ele durante a gravidez também influenciou um

pouco sua paixão por livros.

— O que vocês pretendem fazer hoje? — perguntei a Jamie.

— À tarde vamos ao mercado central. Sua mãe quer comprar flores. Provavelmente também vai

comprar alguma bobagem para o Charlie. Ah, já ia esquecendo... Zeus mastigou seu Nike favorito.

Vou tentar comprar um novo.

— Meu Deus! De quem foi a ideia de termos um cachorro?

Ela riu.

— Sua. Eu nunca quis um, mas você nunca soube dizer não a Charlie. Você e sua mãe são muito

parecidos. — Ela me beijou novamente antes de me entregar minha bolsa. — Tenha uma ótima

viagem e transforme nossos sonhos em realidade.

Eu a beijei de leve e sorri.

— Quando eu voltar, vou construir a biblioteca dos seus sonhos. Com aquelas escadas altas e

tudo mais. E depois, vou fazer amor com você entre a Odisseia e O sol é para todos.

Ela mordeu o lábio.

— Promete?

— Prometo.

— Me liga quando pousar, tá?

Fiz que sim com a cabeça e saí de casa para encontrar meu pai, que já estava no táxi, me

esperando.

— Tristan! — chamou Jamie, enquanto eu guardava a bagagem no porta-malas. Charlie estava ao

seu lado.

— Sim?

Eles colocaram as mãos em torno da boca e gritaram:

— NÓS TE AMAMOS.

Sorri e disse o mesmo para eles, em alto e bom som.

Durante o voo, meu pai não parava de dizer que essa era nossa grande oportunidade. Quando

aterrissamos em Detroit para aguardar a conexão, pegamos o celular para dar uma olhada nos e-

mails e enviar notícias para minha mãe e Jamie.

Assim que ligamos os telefones, nós dois recebemos um bombardeio de mensagens da minha

mãe. Soube instantaneamente que alguma coisa estava errada. Senti um frio na barriga e quase deixei

o telefone cair enquanto eu lia.

Mãe: Aconteceu um acidente. Jamie e Charlie não estão bem.

Mãe: Venham para casa.

Mãe: Rápido!!!

Num piscar de olhos, num breve momento, tudo que eu sabia sobre a vida mudou.

Capítulo 1

Elizabeth

3 de julho de 2015

Todas as manhãs, leio cartas de amor escritas para outra mulher. Nós duas temos muito em comum:

os olhos cor de chocolate e o mesmo tom de loiro no cabelo. Também temos a mesma risada: discreta

no início, mas que se torna mais alta quando estamos na companhia das pessoas que amamos.

Quando ela sorri, ergue o canto direito da boca, exatamente como eu.

Encontrei as cartas na lixeira, dentro de uma caixa de metal em formato de coração. Centenas

delas. Algumas longas, outras mais curtas; algumas felizes, outras incrivelmente tristes. Pelas datas,

são muito antigas. Bem mais velhas do que eu. Algumas assinadas por KB, e outras, por HB.

Imaginei como meu pai se sentiria se soubesse que mamãe havia jogado tudo fora.

Mas, ultimamente, tem sido difícil para mim imaginar que ela já foi como aquela carta.

Inteira.

Completa.

Parte de algo esplêndido.

Agora, ela parecia ser exatamente o oposto.

Acabada.

Incompleta.

Sozinha o tempo todo.

Depois que meu pai morreu, mamãe se tornou uma vadia. Não existe modo mais educado de

dizer isso. Não foi de uma hora para outra, apesar de a Srta. Jackson — a vizinha do final da rua —

ter espalhado para um monte de gente que minha mãe abria as pernas para todo mundo antes mesmo

que meu pai nos deixasse. Eu sabia que não era verdade, pois nunca me esqueci de como ela olhava

para ele quando eu era criança. Era como se ele fosse o único homem na face da Terra. Sempre que

ele tinha que sair bem cedo para trabalhar, a mesa do café já estava posta, e o almoço, pronto, para

ele levar. Ela até preparava uns lanchinhos, porque meu pai vivia reclamando que sentia fome entre

as refeições, e mamãe sempre se preocupava em fazer com que ele se alimentasse bem.

Papai era poeta e dava aulas em uma universidade que ficava a uma hora da nossa casa. Não foi

surpresa descobrir que eles trocavam cartas de amor. Palavras eram o ponto forte dele, sua grande

vantagem. E mesmo não sendo tão boa quanto o marido, minha mãe conseguia expressar tudo o que

sentia em cada carta que escrevia.

De manhã, quando ele saía de casa, ela cantarolava e sorria enquanto limpava a casa e me

arrumava. E falava dele, dizendo o quanto o amava, como sentia sua falta e que escreveria uma carta

de amor antes que ele voltasse, à noite. Quando ele chegava em casa, mamãe sempre o servia com

duas taças de vinho, e então era ele quem cantarolava a música favorita dos dois e beijava a mão

dela. Eles riam juntos e cochichavam como adolescentes que estão vivendo seu primeiro amor.

— Você é meu amor eterno, Kyle Bailey — dizia ela, enquanto o beijava.

— Você é meu amor eterno, Hannah Bailey — respondia ele, girando-a em seus braços.

O amor dos dois era capaz de provocar inveja até nos contos de fada.

Quando papai morreu, naquele dia abafado de agosto, uma parte de minha mãe também se foi.

Lembro-me de ter lido um romance em que o autor dizia algo do tipo: “Nenhuma alma gêmea deixa

esse mundo sozinha. Ela sempre leva consigo um pedaço de sua outra metade.” Odiei aquilo, pois

sabia que era verdade. Minha mãe ficou enclausurada em casa por meses. Eu a obrigava a se

alimentar todos os dias, na esperança de que ela não definhasse de tanta tristeza. Nunca a tinha visto

chorar até aquele momento. Não demonstrava minhas emoções quando estava perto dela, pois sabia

que isso só a deixaria mais triste.

Eu já chorava o suficiente quando ficava sozinha.

Quando finalmente saiu da cama, foi para ir à igreja. Eu a acompanhei durante algumas semanas.

Lembro-me de me sentir totalmente perdida, aos 12 anos, sentada no banco de uma paróquia. Nunca

fomos uma família religiosa, só rezávamos quando algo de ruim acontecia. Nossas visitas à igreja

não duraram muito tempo, pois mamãe chamou Deus de mentiroso e desrespeitou os fiéis, dizendo

que deveriam parar de perder tempo, de ser enganados com esperanças vazias e inúteis de uma terra

prometida.

O pastor Reece pediu que ficássemos algum tempo sem aparecer. Pelo menos até as coisas se

acalmarem.

Até então, nunca tinha passado pela minha cabeça que alguém pudesse ser banido de um templo

sagrado. Quando o pastor dizia “venham todos”, acho que não estava se referindo a “todos” de fato.

Recentemente, mamãe adotou outro passatempo: homens diferentes em curtos intervalos de

tempo. Uns para dormir, outros para ajudar a pagar as contas. E há ainda aqueles que ela gosta de

manter por perto em momentos de solidão, ou também porque lembram meu pai. Alguns ela até

chama de Kyle. Agora à noite havia um carro parado em frente a nossa casa. Azul-escuro, com alguns

cromados e bancos de couro vermelho. Dentro dele, um homem estava sentado com um charuto na

boca, minha mãe no colo. Pareciam ter acabado de sair dos anos 1960. Ela ria baixinho enquanto ele

sussurrava algo em seu ouvido, mas não era o mesmo tipo de risada da época do papai.

Era vazia, frívola e triste.

Dei uma olhada na rua e vi a Srta. Jackson cercada de outras fofoqueiras, apontando para mamãe

e o homem da semana. Queria ouvir o que elas diziam e mandar que ficassem quietas, mas elas

estavam na calçada oposta. Até mesmo as crianças que brincavam de bola na rua, driblando alguns

gravetos, observavam os dois com os olhos arregalados.

Carros caros como aquele nunca transitavam numa rua como a nossa. Tentei convencer minha

mãe a se mudar para uma vizinhança melhor, mas ela se recusou. Na época, achei que era porque ela

e papai tinham comprado a casa juntos.

Talvez ela não tivesse se esquecido completamente dele.

O homem soltou a fumaça do charuto no rosto dela, e os dois riram. Mamãe usava seu melhor

vestido: amarelo, tomara-que-caia, com cintura justa, saia rodada. A maquiagem era tão pesada que a

fazia parecer ter 30 e poucos anos, em vez de 50. Ela era bonita sem toda aquela porcaria na cara,

mas dizia que se maquiar transformava uma menina em mulher. O colar de pérolas era da minha

avó, Betty. Eu nunca a vi usar aquele colar com um estranho, e não entendi o porquê de ela fazer isso

agora.

Os dois olharam na minha direção, e me escondi na varanda, de onde continuei espiando-os.

— Liz, se você está tentando se esconder, pelo menos faça isso direito. Venha aqui conhecer meu

novo amigo — falou minha mãe bem alto.

Saí de trás da pilastra e caminhei na direção dos dois. O homem soprou a fumaça mais uma vez e,

conforme eu me aproximava, observando seus cabelos grisalhos e seus olhos azul-escuros, o cheiro

do charuto chegou ao meu nariz.

— Richard, esta é a minha filha, Elizabeth. Mas todo mundo a chama de Liz.

Richard me olhou de cima a baixo, o que fez com que eu me sentisse um objeto. Ele me analisou

como se eu fosse uma boneca de porcelana prestes a se quebrar. Tentei disfarçar o desconforto, mas

não consegui, então baixei os olhos.

— Como vai, Liz?

— Elizabeth — corrigi, ainda olhando para o chão. — Só os mais íntimos me chamam de Liz.

— Liz, isso não é jeito de falar! — repreendeu minha mãe, franzindo a testa e deixando as rugas à

mostra. Ela não teria falado dessa forma se soubesse que isso acentuava as linhas de expressão em

seu rosto. Eu odiava quando um homem novo aparecia e ela sempre escolhia ficar do lado dele e não

do meu.

— Tudo bem, Hannah. Além do mais, ela está certa. Leva tempo para conhecermos alguém. E

apelidos têm que ser merecidos. Não são oferecidos a troco de nada.

Havia algo nojento na forma como Richard me encarava e baforava seu charuto. Eu usava uma

calça jeans larga, com uma camiseta bem grande, mas, mesmo assim, me sentia exposta.

— A gente está indo à cidade comer alguma coisa. Quer ir? — convidou ele.

— Emma ainda está dormindo — recusei. Olhei em direção à casa, onde minha menininha estava

deitada num sofá-cama. Nós duas já o dividíamos há um bom tempo, desde que viemos para a casa

da minha mãe.

Ela não foi a única que perdeu o amor de sua vida.

Eu tinha esperanças de não acabar como ela.

Esperava ficar só na fase da tristeza.

Steven tinha morrido há um ano, e eu ainda tinha dificuldade para respirar. Emma e eu

morávamos em Meadows Creek, no Wisconsin, nossa casa de verdade. O lugar foi reformado, e nós

o transformamos em um lar. Foi ali que eu e Steven nos apaixonamos, brigamos e fizemos as pazes

inúmeras vezes.

Bastava a nossa presença para tornar a casa um lugar aconchegante. Mas, depois que Steven se foi,

parecia que uma nuvem escura pairava sobre ela.

Foi no hall de entrada que ficamos juntos pela última vez. Seu braço envolvia minha cintura, e

nós achávamos que nos lembraríamos daquele instante para sempre.

Mas o “para sempre” foi bem mais curto do que todos imaginavam.

Durante muito tempo, a vida seguiu seu curso, até que, um dia, tudo ruiu.

Eu me senti sufocada pelas lembranças e pela tristeza, e então corri para a casa da minha mãe.

Voltar ao nosso lar significava encarar a verdade: ele não estava mais entre nós. Por mais de um

ano, vivi um faz de conta, fingindo que ele tinha saído para comprar leite e que voltaria a qualquer

momento. Todas as noites, quando me deitava, ficava do lado esquerdo da cama e fechava os olhos,

imaginando que Steven estava ali comigo.

Mas minha filha merecia mais do que isso. Minha pobre Emma precisava de mais do que um sofá-

cama, homens estranhos e vizinhos fofoqueiros dizendo coisas que uma garotinha de 5 anos nunca

deveria ouvir. Ela também precisava de mim. Eu estava vagando pela escuridão, não era a mãe que

ela merecia. Enfrentar as lembranças do nosso lar talvez me trouxesse paz.

Voltei para dentro de casa e olhei para meu anjinho dormindo, seu peito subindo e descendo em

um ritmo perfeito. Nós duas temos muito em comum: as covinhas na bochecha e o mesmo tom loiro

no cabelo. Também temos a mesma risada: discreta no início, mas que se torna mais alta quando

estamos na companhia das pessoas que amamos. Quando ela sorri, ergue o canto direito dos lábios,

exatamente como eu.

Mas tínhamos uma grande diferença.

Os olhos dela eram azuis como os dele.

Deitei-me ao lado de Emma, beijando suavemente seu nariz. Depois, peguei a caixa no formato de

coração e li mais uma carta. Já tinha lido aquela antes, mas mesmo assim ela tocou minha alma.

Às vezes, eu fazia de conta que as cartas eram de Steven.

E sempre derramava algumas lágrimas.

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