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Capítulo

Pegou tudo? — perguntou Jamie, parada no meio do hall de entrada da casa dos meus pais, roendo as unhas. Quando seus belos olhos azuis sorriram para mim, pensei na sorte que tinha por ela ser minha. Fui até ela e a abracei, apertando seu corpo mignon junto ao meu. — Peguei. É isso, meu amor. A hora é essa. Ela entrelaçou os dedos na minha nuca e me beijou. — Estou tão orgulhosa de você. — De nós — eu a corrigi. Depois de tantos anos vivendo de planos e sonhos, meu objetivo de criar e vender minhas próprias peças de mobília artesanal estava prestes a se tornar realidade. Eu e meu pai, que também era meu melhor amigo e sócio, estávamos a caminho de Nova York para uma reunião com alguns empresários que se mostraram muito interessados em investir em nosso negócio. — Sem o seu apoio, eu não seria nada. Essa é a nossa chance de conseguir tudo que a gente sempre sonhou. Ela me beijou de novo. Nunca imaginei que pudesse amar alguém tanto assim. — Antes de ir, é melhor saber logo que a professora do Charlie me ligou. Ele arranjou confusão na escola outra vez. O que não me surpreende, já que puxou tanto ao pai... Sorri. — O que ele aprontou agora? — Segundo a Sra. Harper, ele disse para uma menina que zombava dos óculos dele que esperava que ela engasgasse com uma lagartixa, já que ela se parecia com uma. Que engasgasse com uma lagartixa. Dá pra acreditar? — Charlie! — chamei. Ele veio da sala de estar com um livro nas mãos. Não estava de óculos, e eu sabia que era por causa do bullying. — Que foi, pai? — Você disse para uma menina que queria que ela se engasgasse com uma lagartixa? — Disse — confirmou ele, como se não fosse nada de mais. Para um menino de 8 anos, Charlie parecia se preocupar muito pouco com a possibilidade de deixar os pais irritados. — Cara, você não pode dizer uma coisa dessas. — Mas, pai, ela tem mesmo cara de lagartixa! — retrucou ele. Tive que me virar para disfarçar a risada. — Vem aqui e me dá um abraço. Ele me abraçou apertado. Eu ficava apavorado ao pensar no futuro, no dia em que ele não quisesse mais abraçar o velho pai. — Vê se você se comporta enquanto eu estiver fora. Obedeça à sua mãe e à sua avó, está bem? — Tá, tá... — E coloque os óculos pra ler. — Por quê? Eles são ridículos. Eu me agachei, o dedo em riste tocando o nariz dele. — Homens de verdade usam óculos. — Você não usa! — reclamou Charlie. — Tá, alguns homens de verdade não usam. Só ponha os óculos, tá legal? Ele resmungou antes de sair correndo para a sala. Eu ficava feliz por ele gostar mais de ler do que de jogar videogame. Sabia que ele havia herdado da mãe, bibliotecária, o amor pela leitura. Mas, no fundo, sempre achei que o fato de eu ter lido para ele durante a gravidez também influenciou um pouco sua paixão por livros. — O que vocês pretendem fazer hoje? — perguntei a Jamie. — À tarde vamos ao mercado central. Sua mãe quer comprar flores. Provavelmente também vai comprar alguma bobagem para o Charlie. Ah, já ia esquecendo... Zeus mastigou seu Nike favorito. Vou tentar comprar um novo. — Meu Deus! De quem foi a ideia de termos um cachorro? Ela riu. — Sua. Eu nunca quis um, mas você nunca soube dizer não a Charlie. Você e sua mãe são muito parecidos. — Ela me beijou novamente antes de me entregar minha bolsa. — Tenha uma ótima viagem e transforme nossos sonhos em realidade. Eu a beijei de leve e sorri. — Quando eu voltar, vou construir a biblioteca dos seus sonhos. Com aquelas escadas altas e tudo mais. E depois, vou fazer amor com você entre a Odisseia e O sol é para todos. Ela mordeu o lábio. — Promete? — Prometo. — Me liga quando pousar, tá? Fiz que sim com a cabeça e saí de casa para encontrar meu pai, que já estava no táxi, me esperando. — Tristan! — chamou Jamie, enquanto eu guardava a bagagem no porta-malas. Charlie estava ao seu lado. — Sim? Eles colocaram as mãos em torno da boca e gritaram: — NÓS TE AMAMOS. Sorri e disse o mesmo para eles, em alto e bom som. Durante o voo, meu pai não parava de dizer que essa era nossa grande oportunidade. Quando aterrissamos em Detroit para aguardar a conexão, pegamos o celular para dar uma olhada nos e- mails e enviar notícias para minha mãe e Jamie. Assim que ligamos os telefones, nós dois recebemos um bombardeio de mensagens da minha mãe. Soube instantaneamente que alguma coisa estava errada. Senti um frio na barriga e quase deixei o telefone cair enquanto eu lia. Mãe: Aconteceu um acidente. Jamie e Charlie não estão bem. Mãe: Venham para casa. Mãe: Rápido!!! Num piscar de olhos, num breve momento, tudo que eu sabia sobre a vida mudou.

Capítulo 1 O ar que respira

Todas as manhãs, leio cartas de amor escritas para outra mulher. Nós duas temos muito em comum:

os olhos cor de chocolate e o mesmo tom de loiro no cabelo. Também temos a mesma risada: discreta

no início, mas que se torna mais alta quando estamos na companhia das pessoas que amamos.

Quando ela sorri, ergue o canto direito da boca, exatamente como eu.

Encontrei as cartas na lixeira, dentro de uma caixa de metal em formato de coração. Centenas

delas. Algumas longas, outras mais curtas; algumas felizes, outras incrivelmente tristes. Pelas datas,

são muito antigas. Bem mais velhas do que eu. Algumas assinadas por KB, e outras, por HB.

Imaginei como meu pai se sentiria se soubesse que mamãe havia jogado tudo fora.

Mas, ultimamente, tem sido difícil para mim imaginar que ela já foi como aquela carta.

Inteira.

Completa.

Parte de algo esplêndido.

Agora, ela parecia ser exatamente o oposto.

Acabada.

Incompleta.

Sozinha o tempo todo.

Depois que meu pai morreu, mamãe se tornou uma vadia. Não existe modo mais educado de

dizer isso. Não foi de uma hora para outra, apesar de a Srta. Jackson — a vizinha do final da rua —

ter espalhado para um monte de gente que minha mãe abria as pernas para todo mundo antes mesmo

que meu pai nos deixasse. Eu sabia que não era verdade, pois nunca me esqueci de como ela olhava

para ele quando eu era criança. Era como se ele fosse o único homem na face da Terra. Sempre que

ele tinha que sair bem cedo para trabalhar, a mesa do café já estava posta, e o almoço, pronto, para

ele levar. Ela até preparava uns lanchinhos, porque meu pai vivia reclamando que sentia fome entre

as refeições, e mamãe sempre se preocupava em fazer com que ele se alimentasse bem.

Papai era poeta e dava aulas em uma universidade que ficava a uma hora da nossa casa. Não foi

surpresa descobrir que eles trocavam cartas de amor. Palavras eram o ponto forte dele, sua grande

vantagem. E mesmo não sendo tão boa quanto o marido, minha mãe conseguia expressar tudo o que

sentia em cada carta que escrevia.

De manhã, quando ele saía de casa, ela cantarolava e sorria enquanto limpava a casa e me

arrumava. E falava dele, dizendo o quanto o amava, como sentia sua falta e que escreveria uma carta

de amor antes que ele voltasse, à noite. Quando ele chegava em casa, mamãe sempre o servia com

duas taças de vinho, e então era ele quem cantarolava a música favorita dos dois e beijava a mão

dela. Eles riam juntos e cochichavam como adolescentes que estão vivendo seu primeiro amor.

— Você é meu amor eterno, Kyle Bailey — dizia ela, enquanto o beijava.

— Você é meu amor eterno, Hannah Bailey — respondia ele, girando-a em seus braços.

O amor dos dois era capaz de provocar inveja até nos contos de fada.

Quando papai morreu, naquele dia abafado de agosto, uma parte de minha mãe também se foi.

Lembro-me de ter lido um romance em que o autor dizia algo do tipo: “Nenhuma alma gêmea deixa

esse mundo sozinha. Ela sempre leva consigo um pedaço de sua outra metade.” Odiei aquilo, pois

sabia que era verdade. Minha mãe ficou enclausurada em casa por meses. Eu a obrigava a se

alimentar todos os dias, na esperança de que ela não definhasse de tanta tristeza. Nunca a tinha visto

chorar até aquele momento. Não demonstrava minhas emoções quando estava perto dela, pois sabia

que isso só a deixaria mais triste.

Eu já chorava o suficiente quando ficava sozinha.

Quando finalmente saiu da cama, foi para ir à igreja. Eu a acompanhei durante algumas semanas.

Lembro-me de me sentir totalmente perdida, aos 12 anos, sentada no banco de uma paróquia. Nunca

fomos uma família religiosa, só rezávamos quando algo de ruim acontecia. Nossas visitas à igreja

não duraram muito tempo, pois mamãe chamou Deus de mentiroso e desrespeitou os fiéis, dizendo

que deveriam parar de perder tempo, de ser enganados com esperanças vazias e inúteis de uma terra

prometida.

O pastor Reece pediu que ficássemos algum tempo sem aparecer. Pelo menos até as coisas se

acalmarem.

Até então, nunca tinha passado pela minha cabeça que alguém pudesse ser banido de um templo

sagrado. Quando o pastor dizia “venham todos”, acho que não estava se referindo a “todos” de fato.

Recentemente, mamãe adotou outro passatempo: homens diferentes em curtos intervalos de

tempo. Uns para dormir, outros para ajudar a pagar as contas. E há ainda aqueles que ela gosta de

manter por perto em momentos de solidão, ou também porque lembram meu pai. Alguns ela até

chama de Kyle. Agora à noite havia um carro parado em frente a nossa casa. Azul-escuro, com alguns

cromados e bancos de couro vermelho. Dentro dele, um homem estava sentado com um charuto na

boca, minha mãe no colo. Pareciam ter acabado de sair dos anos 1960. Ela ria baixinho enquanto ele

sussurrava algo em seu ouvido, mas não era o mesmo tipo de risada da época do papai.

Era vazia, frívola e triste.

Dei uma olhada na rua e vi a Srta. Jackson cercada de outras fofoqueiras, apontando para mamãe

e o homem da semana. Queria ouvir o que elas diziam e mandar que ficassem quietas, mas elas

estavam na calçada oposta. Até mesmo as crianças que brincavam de bola na rua, driblando alguns

gravetos, observavam os dois com os olhos arregalados.

Carros caros como aquele nunca transitavam numa rua como a nossa. Tentei convencer minha

mãe a se mudar para uma vizinhança melhor, mas ela se recusou. Na época, achei que era porque ela

e papai tinham comprado a casa juntos.

Talvez ela não tivesse se esquecido completamente dele.

O homem soltou a fumaça do charuto no rosto dela, e os dois riram. Mamãe usava seu melhor

vestido: amarelo, tomara-que-caia, com cintura justa, saia rodada. A maquiagem era tão pesada que a

fazia parecer ter 30 e poucos anos, em vez de 50. Ela era bonita sem toda aquela porcaria na cara,

mas dizia que se maquiar transformava uma menina em mulher. O colar de pérolas era da minha

avó, Betty. Eu nunca a vi usar aquele colar com um estranho, e não entendi o porquê de ela fazer isso

agora.

Os dois olharam na minha direção, e me escondi na varanda, de onde continuei espiando-os.

— Liz, se você está tentando se esconder, pelo menos faça isso direito. Venha aqui conhecer meu

novo amigo — falou minha mãe bem alto.

Saí de trás da pilastra e caminhei na direção dos dois. O homem soprou a fumaça mais uma vez e,

conforme eu me aproximava, observando seus cabelos grisalhos e seus olhos azul-escuros, o cheiro

do charuto chegou ao meu nariz.

— Richard, esta é a minha filha, Elizabeth. Mas todo mundo a chama de Liz.

Richard me olhou de cima a baixo, o que fez com que eu me sentisse um objeto. Ele me analisou

como se eu fosse uma boneca de porcelana prestes a se quebrar. Tentei disfarçar o desconforto, mas

não consegui, então baixei os olhos.

— Como vai, Liz?

— Elizabeth — corrigi, ainda olhando para o chão. — Só os mais íntimos me chamam de Liz.

— Liz, isso não é jeito de falar! — repreendeu minha mãe, franzindo a testa e deixando as rugas à

mostra. Ela não teria falado dessa forma se soubesse que isso acentuava as linhas de expressão em

seu rosto. Eu odiava quando um homem novo aparecia e ela sempre escolhia ficar do lado dele e não

do meu.

— Tudo bem, Hannah. Além do mais, ela está certa. Leva tempo para conhecermos alguém. E

apelidos têm que ser merecidos. Não são oferecidos a troco de nada.

Havia algo nojento na forma como Richard me encarava e baforava seu charuto. Eu usava uma

calça jeans larga, com uma camiseta bem grande, mas, mesmo assim, me sentia exposta.

— A gente está indo à cidade comer alguma coisa. Quer ir? — convidou ele.

— Emma ainda está dormindo — recusei. Olhei em direção à casa, onde minha menininha estava

deitada num sofá-cama. Nós duas já o dividíamos há um bom tempo, desde que viemos para a casa

da minha mãe.

Ela não foi a única que perdeu o amor de sua vida.

Eu tinha esperanças de não acabar como ela.

Esperava ficar só na fase da tristeza.

Steven tinha morrido há um ano, e eu ainda tinha dificuldade para respirar. Emma e eu

morávamos em Meadows Creek, no Wisconsin, nossa casa de verdade. O lugar foi reformado, e nós

o transformamos em um lar. Foi ali que eu e Steven nos apaixonamos, brigamos e fizemos as pazes

inúmeras vezes.

Bastava a nossa presença para tornar a casa um lugar aconchegante. Mas, depois que Steven se foi,

parecia que uma nuvem escura pairava sobre ela.

Foi no hall de entrada que ficamos juntos pela última vez. Seu braço envolvia minha cintura, e

nós achávamos que nos lembraríamos daquele instante para sempre.

Mas o “para sempre” foi bem mais curto do que todos imaginavam.

Durante muito tempo, a vida seguiu seu curso, até que, um dia, tudo ruiu.

Eu me senti sufocada pelas lembranças e pela tristeza, e então corri para a casa da minha mãe.

Voltar ao nosso lar significava encarar a verdade: ele não estava mais entre nós. Por mais de um

ano, vivi um faz de conta, fingindo que ele tinha saído para comprar leite e que voltaria a qualquer

momento. Todas as noites, quando me deitava, ficava do lado esquerdo da cama e fechava os olhos,

imaginando que Steven estava ali comigo.

Mas minha filha merecia mais do que isso. Minha pobre Emma precisava de mais do que um sofá-

cama, homens estranhos e vizinhos fofoqueiros dizendo coisas que uma garotinha de 5 anos nunca

deveria ouvir. Ela também precisava de mim. Eu estava vagando pela escuridão, não era a mãe que

ela merecia. Enfrentar as lembranças do nosso lar talvez me trouxesse paz.

Voltei para dentro de casa e olhei para meu anjinho dormindo, seu peito subindo e descendo em

um ritmo perfeito. Nós duas temos muito em comum: as covinhas na bochecha e o mesmo tom loiro

no cabelo. Também temos a mesma risada: discreta no início, mas que se torna mais alta quando

estamos na companhia das pessoas que amamos. Quando ela sorri, ergue o canto direito dos lábios,

exatamente como eu.

Mas tínhamos uma grande diferença.

Os olhos dela eram azuis como os dele.

Deitei-me ao lado de Emma, beijando suavemente seu nariz. Depois, peguei a caixa no formato de

coração e li mais uma carta. Já tinha lido aquela antes, mas mesmo assim ela tocou minha alma.

Às vezes, eu fazia de conta que as cartas eram de Steven.

E sempre derramava algumas lágrimas.

Capítulo 2

Elizabeth

— Vamos mesmo pra casa? — perguntou Emma de manhã, sonolenta, quando a luz entrou pela

janela, iluminando seu rostinho. Tirei-a da cama, peguei Bubba, seu ursinho e companheiro de todas

as horas, e fiz os dois se sentarem na cadeira mais próxima. Bubba não era simplesmente um ursinho

de pelúcia, era um ursinho-zumbi. Minha garotinha era um pouco diferente, e, depois de assistir ao

Hotel Transilvânia, cheio de zumbis, vampiros e múmias, ela decidiu que adorava coisas estranhas e

assustadoras.

— Vamos, sim — respondi, sorrindo ao fechar o sofá-cama. Não consegui dormir a noite toda e

fiquei arrumando nossas coisas.

Emma estava com um sorriso bobo no rosto, igualzinho ao do pai.

— Oba! — exclamou, contando a Bubba que íamos para casa.

Casa.

Sentia uma pontada no coração cada vez que ouvia essa palavra, mas continuei sorrindo. Aprendi

que tinha que sorrir na frente de Emma, porque ela acabava ficando triste quando percebia que eu

estava mal. Nesses momentos ela me dava os melhores beijos de esquimó, mas esse era o tipo de

responsabilidade que ela não precisava ter.

— Acho que vamos chegar a tempo de ver os fogos no telhado. Lembra quando fazíamos isso

junto com o papai? Lembra, lindinha? — perguntei.

Ela estreitou os olhos, tentando se lembrar. Como seria bom se nossa mente funcionasse como um

grande arquivo e pudéssemos simplesmente reviver nossos momentos favoritos a qualquer instante,

escolhendo-os num sistema bem-organizado.

— Não lembro — respondeu ela, abraçando Bubba.

Aquilo partiu meu coração.

Continuei sorrindo mesmo assim.

— Que tal pararmos no mercado e comprarmos picolés para tomar enquanto vemos os fogos?

— E salgadinho pro Bubba!

— Claro!

Ela sorriu e deu um gritinho, animada. Dessa vez, meu sorriso foi de verdade.

Eu a amava mais do que ela poderia imaginar. Se não fosse por ela, com certeza já teria me

rendido ao luto. Emma salvou minha alma.

Não me despedi da minha mãe porque ela não voltou para casa depois do jantar com o

aventureiro da vez. Logo que me mudei, eu telefonava, preocupada, quando ela demorava a chegar,

mas ela acabava gritando comigo, dizendo que era adulta e sabia o que estava fazendo.

Deixei um bilhete:

Indo pra casa.

Amamos você.

Até breve.

E&E

A viagem durou horas no meu carro velho, e ouvimos a trilha sonora de Frozen tantas vezes que

cheguei a pensar em cortar os pulsos. Emma ouviu um milhão de vezes cada música e ainda incluiu

seu toque pessoal nos versos. Sinceramente, gostei mais da versão dela.

Assim que ela dormiu, dei um descanso também para Frozen, e o carro finalmente ficou

silencioso. Apoiei minha mão no banco do carona, esperando que outra a envolvesse, mas isso não

aconteceu.

Estou bem, dizia a mim mesma, repetidamente. Estou muito bem.

Um dia, isso seria verdade.

Um dia, eu ficaria bem.

Na entrada da rodovia I-64, meu estômago embrulhou. Queria muito que existisse outro caminho

para chegar a Meadows Creek, mas esta era a única via de acesso à cidade. O movimento na estrada

era grande por causa do feriado, mas o asfalto novo tornava a rodovia, que antes era toda esburacada,

mais segura. Meus olhos se encheram de lágrimas quando me lembrei do momento em que ouvi a

notícia.

Acidente grave na I-64!

Caos!

Tumulto!

Feridos!

Mortos!

Steven.

Uma respiração de cada vez.

Continuei dirigindo e não permiti que as lágrimas caíssem. Forcei-me a permanecer inerte; assim

não sentiria nada. Caso contrário, acabaria desabando, e eu simplesmente não podia fazer isso. Olhei

pelo retrovisor e encontrei forças ao ver minha filha. Chegamos ao final da estrada e respirei fundo

novamente. Eu me concentrava em uma respiração de cada vez. Não conseguia ir além disso; tinha a

sensação de que poderia sufocar com o ar.

Uma placa de madeira branca e bem polida anunciava: “Bem-vindos a Meadows Creek”.

Emma tinha acordado e estava olhando pela janela.

— Mamãe?

— Oi, querida.

— Acha que papai vai saber que a gente se mudou? Será que ele vai saber onde deixar as plumas?

Quando Steven faleceu e nós nos mudamos para a casa da mamãe, apareceram plumas brancas no

jardim. Emma perguntou o que eram, e mamãe respondeu que eram pequenos sinais dos anjos,

demonstrando que eles estavam sempre por perto cuidando de nós.

Ela adorou a ideia e, cada vez que encontrava uma pluma, olhava para o céu, sorria e sussurrava:

“Eu também te amo, papai.” Depois, tirava uma foto com a pluma e a colocava na caixa “Papai &

Eu”.

— Tenho certeza de que ele sabe onde nos encontrar, minha querida.

— Sim — concordou Emma. — Ele sabe onde nos encontrar.

As árvores pareciam mais verdes do que eu lembrava, e as lojinhas no centro de Meadows Creek

estavam enfeitadas de vermelho, azul e branco para o feriado da Independência. Era tudo tão

familiar e, ao mesmo tempo, tão diferente. A bandeira americana da Srta. Frederick tremulava ao

vento enquanto ela colocava pétalas de rosas secas no vaso. Era possível sentir seu orgulho patriótico

ao vê-la ali, admirando sua casa.

Ficamos paradas no único sinal de trânsito da cidade por uns dez minutos, o que não fazia

nenhum sentido. Enquanto aguardávamos, pensei em todas as coisas que me lembravam de Steven.

De nós. Quando o sinal abriu, pisei no acelerador, querendo chegar logo em casa para afastar as

sombras do passado. Assim que o carro começou a descer a rua, minha visão periférica captou um

cachorro vindo em minha direção. Pisei no freio bem rápido, mas a lata-velha demorou a parar.

Quando finalmente freou, ouvi um latido alto.

Meu coração quase saiu pela boca. Fiquei paralisada; parecia incapaz de respirar novamente.

Estacionei o carro de qualquer jeito, enquanto Emma perguntava o que estava acontecendo, mas não

dava tempo de responder. Abri a porta do carro, precipitei-me em direção ao pobre cachorro e vi um

homem correndo na mesma direção. Ele me encarava com um olhar desesperado, praticamente me

forçando a enxergar a intensidade de seus olhos azuis acinzentados. A maioria dos olhos azuis

parece trazer consigo um sentimento caloroso e gentil, mas não os dele. Os dele eram intensos, assim

como sua própria postura. Fria, reservada. Em torno de suas íris, era possível ver o azul profundo em

meio às manchas prateadas e pretas, que tornavam seu olhar ainda mais impenetrável. Lembrava as

sombras no céu quando uma tempestade estava prestes a cair.

Esse olhar me era familiar. Será que eu o conhecia? Jurava que já o tinha visto em algum lugar.

Ele parecia amedrontado e furioso ao se aproximar do cachorro, que imaginei ser dele, parado no

chão. Estava com um grande fone de ouvido no pescoço, conectado a alguma coisa na mochila.

Usava roupas de ginástica. A camisa branca de manga comprida acentuava os músculos dos

braços, o short preto deixava as pernas grossas à mostra, e o suor escorria de sua testa. Imaginei que

estivesse levando o cachorro para correr e acabou perdendo a coleira, mas ele não estava de tênis.

Por que estava descalço?

Não importava. Será que o cachorro estava bem?

Eu deveria ter prestado mais atenção.

— Desculpe, eu não vi... — comecei a dizer, mas ele soltou um grunhido ríspido, como se minhas

palavras o ofendessem.

— Que droga! Você só pode estar de sacanagem... — berrou de volta.

Sua voz me fez estremecer. Ele pegou o cachorro nos braços como se fosse seu próprio filho. Nós

nos levantamos ao mesmo tempo. Então ele olhou ao redor, eu também.

— Deixa eu levar vocês ao veterinário — sugeri, estremecendo ao ouvir o cachorro ganir nos

braços do homem. Sabia que não deveria ficar nervosa com seu tom de voz, pois não se deve julgar

alguém numa situação de pânico. Ele não respondeu, mas percebi hesitação em seu olhar. O rosto

era emoldurado por uma barba grossa, escura e indomada; sua boca estava escondida em algum

lugar daquela selva. Eu só podia confiar na história que seus olhos contavam.

— Por favor — insisti. — É muito longe para ir a pé.

Ele assentiu num gesto quase imperceptível, abriu a porta do carona e entrou com o cachorro no

colo.

Corri para dentro do carro e comecei a dirigir.

— O que aconteceu? — perguntou Emma.

— Vamos levar esse cachorrinho ao veterinário, querida. Está tudo bem. — Eu realmente

esperava não estar mentindo.

Em vinte minutos, chegamos à clínica veterinária mais próxima, que ficava aberta vinte e quatro

horas, e o percurso não foi exatamente o que eu esperava.

— Vire à esquerda na Cobbler Street — mandou ele.

— A Harper Avenue vai ser mais rápida — discordei.

— Você não sabe o que está fazendo. Entre na Cobbler! — gritou, irritado.

Respirei fundo.

— Eu sei dirigir.

— Sabe mesmo? Porque acho que esse é o motivo de estarmos aqui.

Eu estava prestes a jogar aquele idiota para fora do carro, mas o ganido do cachorro me impediu.

— Já me desculpei.

— Isso não ajuda meu cachorro.

Idiota.

— A Cobbler é a próxima à direita — insistiu.

— A Harper é a segunda.

— Não entre na Harper.

Ah, não? Acho que vou pegar a Harper só para irritar esse cara. Quem ele pensa que é?

Virei na Harper.

— Não acredito que você pegou a droga da Harper! — reclamou ele.

Sua raiva me fez sorrir, até o momento em que vi as obras e a placa de “rua fechada”.

— Você é sempre burra mesmo?

— E você é sempre... sempre... sempre... — gaguejei porque, ao contrário dele, eu não era boa em

discutir com as pessoas. Normalmente, engolia tudo e acabava chorando como uma criança, porque

as palavras não se formavam na minha cabeça com a mesma velocidade em que as brigas

aconteciam. Eu era uma idiota que só conseguia responder a um insulto três dias depois. — Você é

sempre... sempre...

— Sempre o quê? Fala logo! Use palavras! — exclamou ele, zombando.

Girei o volante e fiz o retorno para pegar a Cobbler.

— Você é sempre um...

— Vamos lá, Sherlock, você consegue — debochou.

— UM BABACA! UM PUTO! — berrei, entrando na rua que ele indicou.

O carro ficou em silêncio. Meu rosto ficou vermelho, e apertei o volante com força.

Assim que parei no estacionamento, ele abriu a porta sem dizer absolutamente nada, pegou o

cachorro e entrou em disparada na emergência. Fiquei na dúvida se não era melhor ir embora, mas

sabia que não ia me acalmar até ter certeza de que o cachorro ficaria bem.

— Mamãe? — chamou Emma.

— Sim, querida?

— O que é um puto?

Falha materna número 582 de hoje.

— Não é nada, amor. Eu disse “Pluto”. Como o cachorro do desenho.

— Então você chamou aquele moço de cachorro?

— Sim. Um cachorro grande e desengonçado.

— E o cachorrinho dele, vai morrer? — perguntou ela logo em seguida.

Espero que não.

Depois de tirar Emma da cadeirinha, entramos na clínica. O desconhecido estava esmurrando a

mesa da recepção. Ele falava algo, mas eu não conseguia escutá-lo.

A recepcionista foi ficando cada vez mais desconcertada.

— Senhor, só estou pedindo para preencher o formulário e informar um cartão de crédito. Do

contrário, não poderemos cuidar do seu bichinho. Além do mais, o senhor não pode entrar aqui

descalço, e sua atitude não está ajudando em nada.

O desconhecido deu outro murro na mesa e começou a andar de um lado para o outro, passando a

mão nos cabelos compridos e escuros e descendo-a até a nuca. Sua respiração estava pesada, seu

peito subia e descia em ritmo acelerado.

— E você acha que eu trouxe um cartão de crédito? Eu estava correndo, sua idiota! E se não vai

fazer nada, chame outra pessoa.

Assim como eu, a mulher recuou ao ouvir aquelas palavras e sentir sua raiva.

— Eles estão comigo — falei, caminhando até a recepção. Emma agarrou meu braço e apertou

Bubba. Abri a bolsa, peguei a carteira e entreguei um cartão para a moça.

— Você está com ele? — perguntou ela, num tom quase ofensivo, como se o estranho merecesse

ficar sozinho.

Ninguém merece ficar sozinho.

Vi que a raiva e a confusão não tinham desaparecido do olhar dele. Não queria prestar atenção,

mas aquela tristeza era muito familiar, e eu não consegui me afastar.

— Sim. Ele está comigo.

Ela continuou hesitante. Aproximei-me e perguntei:

— Algum problema?

— Não, nenhum. Só preciso que vocês preencham esse formulário.

Peguei a prancheta da mão dela e fui para a sala de espera.

A televisão estava ligada no Animal Planet. Havia um trenzinho de brinquedo em um canto e

Emma foi brincar com Bubba. O estranho continuava a me encarar daquele jeito frio e distante.

— Preciso de algumas informações — falei. Ele se aproximou devagar, sentou-se ao meu lado e

apoiou as mãos nas pernas.

— Qual é o nome dele? Do cachorro — perguntei.

Ele abriu a boca e hesitou, antes de falar:

— Zeus.

Sorri. Que nome perfeito para um labrador.

— E o seu?

— Tristan Cole.

Depois de terminar o formulário, entreguei tudo para a recepcionista.

— Pode debitar todas as despesas do Zeus no meu cartão.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Pode ficar caro — alertou ela.

— Pode cobrar.

Sentei-me ao lado de Tristan novamente. Ele começou a dar tapinhas de leve nas pernas, e

percebi seu nervosismo. Quando olhei para ele, estava me encarando com a mesma confusão de

quando nossos caminhos se cruzaram.

Tristan começou a murmurar algo e a esfregar as mãos uma na outra. Em seguida, colocou os

fones de ouvido e apertou o play.

Emma vinha de vez em quando perguntar se estava na hora de ir para casa, e eu dizia que iria

demorar mais um pouco. Antes de voltar a brincar com o trem, ela parou e olhou para Tristan.

— Ei, moço!

Ele a ignorou. Ela levou as mãos ao quadril.

— Ei, moço! Estou falando com você! — insistiu, batendo o pé no chão. Tristan olhou para ela.

— Você é um grande PLUTO!

Ai, meu Deus.

Alguém devia ter me proibido de ser mãe. Sou péssima nisso.

Estava prestes a dar uma bronca nela quando vi um pequeno sorriso se formar, rapidamente, por

trás da barba de Tristan. Era quase imperceptível, mas juro que vi seus lábios se moverem. Emma

tinha o dom de fazer as almas mais sombrias sorrirem. Eu era a prova viva disso.

Cerca de meia hora depois, o veterinário veio nos informar que Zeus ficaria bem. Só tinha alguns

ferimentos e uma fratura na pata dianteira. Agradeci, e ele se afastou. As mãos de Tristan relaxaram,

e ele ficou imóvel. De repente, seu corpo todo começou a tremer. Com um longo suspiro, o babaca

furioso desapareceu e deu lugar a um homem desesperado. Ele não conteve suas emoções e começou

a chorar e soluçar de forma incontrolável. As lágrimas caíam dolorosamente. Meus olhos ficaram

marejados, e juro que uma parte do meu coração compartilhou sua dor.

— Pluto! Pluto! Não chore — disse Emma puxando a camisa dele. — Está tudo bem.

— Está tudo bem — consolei-o, usando as mesmas palavras da minha doce garotinha. Pousei a

mão em seu ombro para confortá-lo. — Zeus vai ficar bem. Ele está bem. Você está bem.

Tristan virou a cabeça na minha direção e fez que sim, como se acreditasse em mim. Respirou

fundo e secou as lágrimas, balançando a cabeça para a frente e para trás. Estava tentando ao máximo

esconder seu constrangimento, sua vergonha.

Ele pigarreou e se afastou de mim. Ficamos longe um do outro até a hora em que o veterinário

liberou Zeus. Tristan segurou o cachorro nos braços. O animal estava muito cansado, mas mesmo

assim abanou o rabo e farejou o dono. Ele deu um sorriso e, dessa vez, pude vê-lo claramente. Foi

um grande sorriso de alívio. Se o amor fosse feito apenas de momentos, este com certeza era um

deles.

Não invadi seu espaço. Os dois saíram da clínica. Segurei Emma pela mão e os seguimos.

Tristan começou a caminhar com Zeus nos braços. Queria detê-lo, mas não tinha um motivo para

pedir que ele voltasse. Coloquei Emma na cadeirinha e fechei a porta. Levei um susto quando vi

Tristan bem perto de mim, me encarando. Não desviei o olhar. Minha respiração falhava, e tentei

recordar a última vez que fiquei tão próxima de um homem.

Ele chegou mais perto.

Não me mexi.

Ele respirou.

Respirei também.

Uma respiração de cada vez.

Isso era tudo que eu conseguia controlar.

Nossa proximidade fez com que eu sentisse um aperto no estômago. Já estava pronta para dizer

“de nada” ao “obrigado” que eu certamente ouviria.

— Vê se aprende a dirigir a droga do carro — esbravejou ele, furioso, antes de se afastar.

Nada de “obrigado por você ter pagado a conta do veterinário”, nem “obrigado por ter me trazido

até aqui”, e sim “vê se aprende a dirigir a droga do carro”.

Muito bem.

Com um sussurro, respondi ao vento que batia em meu rosto gelado:

— De nada, Pluto.

Capítulo 3

Elizabeth

— Nossa, como demoraram a chegar! — reclamou Kathy, sorrindo, ao aparecer na porta da frente.

Não esperava que ela e Lincoln fossem nos receber, mesmo sabendo que eles não nos viam há muito

tempo e moravam a apenas cinco minutos da nossa casa.

— Vovó! — gritou Emma enquanto eu abria o cinto da cadeirinha. Ela pulou do carro e correu,

muito feliz, para a avó. Kathy pegou a neta no colo e a levantou para dar um abraço apertado. —

Voltamos, vovó!

— Eu sei! Estamos muito felizes — disse Kathy, beijando o rosto de Emma.

— Cadê o vovô? — perguntou, referindo-se a Lincoln.

— Tem alguém me procurando?

Lincoln saiu da casa. Ele aparentava ter bem menos que 65 anos. Sempre achei que Kathy e

Lincoln nunca iriam envelhecer, pois eram bem mais ativos do que qualquer pessoa da minha idade

e tinham o espírito muito jovem. Uma vez, tentei correr com Kathy durante trinta minutos e quase

morri. E ela ainda me disse que aquilo era só um quarto do que corria normalmente.

Lincoln tirou Emma do colo da esposa e jogou-a para cima.

— Ora, ora, ora, quem está aqui?

— Sou eu, vovô! Emma! — Ela riu.

— Emma? Não pode ser. Você é muito alta para ser a minha pequena Emma.

Ela balançou a cabeça e disse:

— Sou eu, vovozinho!

— Bem, acho que preciso de uma prova. Minha pequena Emma sempre me dava beijos especiais.

Sabe como são? — Emma encostou o nariz de leve nas bochechas dele, como se desse beijinhos de

esquimó em seu rosto. — Meu Deus, é você mesmo! O que estamos esperando? Trouxe picolés de

várias cores para você. Vamos entrar!

Lincoln olhou para mim e piscou carinhosamente. Os dois correram para dentro, e eu parei por

um segundo para olhar tudo à minha volta.

A grama estava alta, cheia de ervas daninhas e dentes-de-leão, que, segundo Emma, fazem nossos

desejos se tornarem realidade. A cerca que começamos a construir para evitar que ela invadisse a rua

ou o bosque nos fundos da casa ficou pela metade, pois Steven não teve tempo de terminá-la.

As tábuas brancas de madeira estavam arrumadas numa pilha ao lado da casa, esperando alguém

completar a tarefa. Olhei para o quintal e para as árvores que demarcavam nossa propriedade. Atrás

da cerca havia um grande bosque. Parte de mim queria correr ali, se perder naquela mata por horas.

Kathy se aproximou de mim e me envolveu num abraço bem apertado. Praticamente desmoronei

junto dela.

— Como você está? —perguntou.

— Ainda de pé.

— Pela Emma?

— Sim, pela Emma.

Kathy me abraçou mais uma vez.

— O jardim está uma bagunça. Ninguém veio aqui desde... — Ela não conseguiu terminar, e o

sorriso desapareceu de seu rosto. — Lincoln disse que vai cuidar de tudo.

— Não precisa. De verdade. Posso cuidar disso.

— Liz...

— É sério, Kathy. Eu quero fazer isso, quero reconstruir.

— Bom, se você quer mesmo... Pelo menos não é o pior jardim da vizinhança — brincou ela,

olhando para a casa do meu vizinho.

— Tem gente morando aí? — perguntei. — Achei que o Sr. Rakes nunca conseguiria vender a

casa depois daquela história de que o lugar era mal-assombrado.

— Pois é. Alguém finalmente a comprou. E olha, não sou de fazer fofoca, mas o cara que mora aí

parece meio estranho. Já ouvi dizer que ele está fugindo de alguma coisa que aprontou no passado.

— É mesmo? Acham que ele é um criminoso?

Kathy deu de ombros.

— Marybeth disse que ouviu falar que ele esfaqueou uma pessoa. E Gary me contou que ele

matou um gato que não parava de miar.

— Ah, não! Era só o que me faltava: ter um vizinho psicopata!

— Ah, tenho certeza de que você vai ficar bem. Você sabe, são só fofocas de cidade pequena.

Duvido que sejam verdade. Mas ele trabalha na loja do Henson, aquele excêntrico, então não deve

ser muito certo da cabeça. Não se esqueça de trancar as portas à noite.

O Sr. Henson era dono da loja Artigos de Utilidade no centro da cidade, e era uma das pessoas

mais esquisitas de que já tinha ouvido falar. Mas eu só conhecia sua excentricidade pelos

comentários dos outros.

Os moradores locais adoravam fofocar e ter uma vida típica de cidade pequena. As pessoas

estavam sempre ocupadas, mas ninguém fazia absolutamente nada.

Olhei para o outro lado da rua e vi três pessoas cochichando enquanto pegavam as

correspondências na caixa de correio. Duas mulheres caminhavam depressa, passando na frente da

minha casa, e eu as ouvi falar do meu retorno — elas sequer me cumprimentaram ou acenaram, mas

fizeram comentários sobre mim. Na esquina, vi um pai ensinando uma menininha a andar de

bicicleta pela primeira vez sem as rodinhas. Pelo menos foi isso que pensei.

Dei um leve sorriso. A vida numa cidade pequena era tão clichê. Todo mundo sabia da vida de

todo mundo, e as notícias corriam rápido.

Kathy sorriu e me trouxe de volta à realidade.

— Bem, trouxemos coisas para fazer um churrasco. Também abastecemos a geladeira, e você não

precisa se preocupar em fazer compras por, pelo menos, uma ou duas semanas. E já colocamos os

cobertores no telhado para assistirmos aos fogos, que devem começar daqui a pouco... — O céu se

iluminou de azul e vermelho. — Começou!

Olhei para cima e vi Lincoln se acomodando no telhado com Emma nos braços, gritando:

— Veja! Ah... — dizia ela cada vez que um dos fogos explodia. — Vem, mamãe! — chamou

Emma, sem tirar os olhos do céu colorido.

Kathy passou o braço pela minha cintura e me conduziu até a casa.

— Depois que Emma dormir, tenho algumas garrafas de vinho guardadas para você.

— Para mim? — perguntei.

— Para você. Bem-vinda de volta ao lar, Liz — disse ela, sorrindo.

Lar.

Eu me perguntei quando aquela pontada no peito iria desaparecer.

Lincoln foi colocar Emma na cama e, como estava demorando mais do que o normal, decidi dar

uma olhada neles. Toda noite ela dava trabalho para dormir, e eu tinha certeza de que estava fazendo

o mesmo com o avô. Fui até o corredor na ponta dos pés e não a ouvi gritando, o que já era um bom

sinal. Espiei dentro do quarto e vi os dois estirados na cama, dormindo, o pé de Lincoln do lado de

fora do colchão.

Kathy deu uma risadinha bem atrás de mim.

— Não sei quem está mais animado com o reencontro, Lincoln ou Emma.

Ela me levou até a sala, e lá nos sentamos diante das duas maiores garrafas de vinho que já tinha

visto na vida.

— Você está querendo me embebedar? — Eu ri.

— Se isso fizer você se sentir melhor, sim — respondeu ela, sorrindo.

Sempre fomos muito próximas. Depois de ser criada por uma mãe instável, conhecer Kathy foi

um verdadeiro bálsamo. Ela me recebeu de braços abertos e sempre me tratou muito bem. Quando

descobri que estava grávida, ela chorou mais do que eu.

— Estou me sentindo péssima por ter ficado tanto tempo longe — falei, bebendo um gole e

olhando na direção do quarto da Emma.

— Querida, sua vida virou de cabeça para baixo. Quando tragédias acontecem e há crianças

envolvidas, ninguém consegue raciocinar direito. Agimos da forma que nos parece ser a mais

correta. Você só tentou sobreviver e fez o melhor que pôde. Não fique se culpando por isso.

— Eu sei, mas acho que saí correndo daqui por minha causa, não por Emma. Ela sentiu falta de

tudo. — Meus olhos se encheram de lágrimas. — E eu deveria ter visitado você e Lincoln. Deveria

ter ligado mais. Sinto muito, Kathy.

Ela colocou as mãos no meu joelho.

— Querida, escute. São dez e quarenta e dois da noite, e a partir deste minuto você vai parar de se

culpar. Trate de se perdoar, porque tanto eu quanto Lincoln compreendemos tudo. Sabemos que

você precisava de um tempo. Não sinta como se devesse nos pedir perdão, você não nos deve nada.

Sequei as lágrimas que continuavam a cair e retruquei, envergonhada:

— Droga de lágrimas.

— Sabe o que faz com que elas parem de cair? — perguntou Kathy.

— O quê?

Ela colocou mais vinho na taça. Mulher inteligente.

Ficamos conversando e bebendo por horas, e quanto mais vinho, mais risadas. Eu tinha me

esquecido de como era gostoso rir. Ela perguntou sobre minha mãe, e não consegui disfarçar minha

expressão de desgosto.

— Ela ainda está perdida, andando em círculos e repetindo os mesmos erros. Às vezes, me

pergunto se as pessoas chegam a um ponto em que não conseguem dar a volta por cima. Acho que

isso pode ter acontecido com ela, e não sei se ela vai conseguir mudar.

— Você ama sua mãe?

— Sim, sempre. Mesmo quando não gosto dela.

— Então, não desista. Mesmo que você precise ficar longe por um tempo. Continue amando-a e

acreditando nela, mesmo que a distância.

— Como você se tornou tão sábia? — perguntei. Ela sorriu, levantou a taça na minha direção e

colocou mais vinho. Mulher muito inteligente. — Você poderia tomar conta da Emma amanhã?

Queria ir até a cidade procurar um emprego. Talvez perguntar ao Matty se ele não precisa de uma

ajudinha no café.

— Que tal se nós ficarmos com ela durante o final de semana? Seria ótimo se tirasse uns dias só

pra você. Podemos retomar nossa tradição de ficar com ela todas as sextas. Até porque não acredito

que Lincoln vá largá-la tão cedo.

— Vocês fariam isso por mim?

— Faremos o que você precisar. Além do mais, todas as vezes que vou ao café, Faye pergunta:

“Como vai minha melhor amiga? Ela já voltou?” Então acho que ela adoraria passar um tempo com

você.

Não via Faye desde a morte de Steven. Naquela época, conversávamos quase todos os dias, mas

ela entendeu que eu precisava de um tempo para mim. Sabia que ela entenderia que eu precisava da

minha melhor amiga para começar essa nova fase.

— Sei que talvez não seja o melhor momento, mas você pensou em reabrir seu negócio? —

perguntou Kathy.

Steven e eu tínhamos uma empresa de design, a Dentro & Fora, que abrimos há três anos. Ele

reformava a parte externa das casas, enquanto eu fazia projetos de decoração de interiores para

residências e empresas. Tínhamos uma loja no centro de Meadows Creek, e essa fase foi, com

certeza, uma das melhores da minha vida. Mas, na verdade, eram as habilidades de Steven que

sustentavam o negócio; ele era formado em administração de empresas. Eu nunca conseguiria cuidar

daquilo sozinha. Ter um diploma de designer de interiores em Meadows Creek significava trabalhar

em uma loja de móveis vendendo cadeiras absurdamente caras. Era isso ou voltar aos tempos da

faculdade e trabalhar como garçonete.

— Não sei. Provavelmente não. Acho que não consigo cuidar de tudo sem Steven. Só preciso

arrumar um emprego fixo e abrir mão desse sonho.

— Entendo, mas não tenha medo de sonhar com coisas novas. Você é muito competente, Liz, e

não deve desistir do que te faz feliz.

Depois que Kathy e Lincoln foram embora, me atrapalhei toda para fechar os trincos da porta da

sala, os quais Steven deveria ter trocado há tempos. Bocejando, parei na porta do meu quarto. A cama

estava arrumada, mas não tive força suficiente para entrar. Parecia uma traição deitar na cama e

fechar os olhos sem ele ao meu lado.

Uma respiração de cada vez.

Um passo.

Entrei e escancarei a porta do armário. As roupas de Steven estavam penduradas. Passei as mãos

por elas antes de começar a soluçar. Arranquei tudo dos cabides e joguei no chão, lágrimas

escorrendo pelo meu rosto. Abri as gavetas e tirei o restante das coisas: calças jeans, camisetas,

roupas de ginástica, cuecas. Tudo que pertencia a Steven estava no chão.

Deitei sobre a pilha de roupas e fiquei inspirando seu cheiro, fazendo de conta que ele ainda

estava ali. Sussurrei seu nome, como se ele pudesse me ouvir, e me agarrei às lembranças de seus

beijos e abraços. Lágrimas de dor brotavam do meu coração destroçado e, ao segurar sua camisa

favorita, me afundei ainda mais em meu sofrimento. Chorei como louca, como uma criatura que

sentia uma dor inimaginável. A dor tornou meus olhos inchados e vazios. Tudo em mim doía; tudo

estava destruído. E, à medida que o tempo passava, eu ficava ainda mais cansada dos meus próprios

sentimentos. Adormeci profundamente, vítima da serenidade nascida da minha terrível solidão.

Quando abri os olhos, ainda estava escuro lá fora. Uma linda garotinha estava deitada ao meu

lado com Bubba. Um pedacinho pequeno de seu cobertor a cobria, enquanto a maior parte estava

sobre mim. Sempre que uma coisa assim acontecia, eu me sentia um pouco como minha mãe. Eu me

lembrava de quando tive que cuidar dela e abrir mão da minha infância. Isso não era justo com

Emma. Ela precisava de mim. Eu me aconcheguei ao seu lado, beijei sua testa e prometi a mim

mesma que não desabaria novamente.

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