Login to Lera
icon 0
icon Loja
rightIcon
icon Histórico
rightIcon
icon Sair
rightIcon
icon Baixar App
rightIcon
Ainda Não Acabou

Ainda Não Acabou

Karen Moon

5.0
Comentário(s)
3.7K
Leituras
22
Capítulo

Até onde você iria para salvar alguém que desistiu de viver? Donovan e Gavin, dois americanos que fizeram do Brasil sua residência permanente há alguns anos atrás, encontram uma jovem moça na praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. Num ímpeto de heroísmo, conseguem salvá-la da morte iminente. Mas isso não significa que ela está salva. Agora ambos precisarão cuidar dela, vigiá-la, e desse zelo talvez surja algum sentimento mais forte...

Capítulo 1 A noite

(GAVIN)

Já fazem seis meses que estou no Rio.

E em algum lugar da minha consciência, sei que disparos de aviso e reclamações cada vez mais insistentes estão fazendo muito barulho em algum lugar. Mas aqui, dirigindo meu 4x4 azul a toda velocidade pelas avenidas que rodeiam a praia (poluída) de Botafogo, com a adoradíssima companhia do meu melhor amigo, consigo abaixar o tom dessas bravatas. Estamos felizes, sadios, prosperando cada vez mais e cada dia mais decididos a não voltarmos para os Estados Unidos.

Donovan é três anos mais velho que eu, tem a pele escura e o cabelo crespo cortado baixo. Ele está vestindo uma calça e camisa social; um casaco repousa sob seus ombros. Eu o noto olhando para a paisagem lá fora com aquele indisfarçável brilho no olhar, o mesmo desde que aterrissou no Galeão e viu que estava mesmo em terras brasileiras. Eu cheguei uma semana depois, e fui recebido por um incomumente empolgado Donovan.

Viemos a negócios e nada podia estar melhor: meu curso de inglês para nativos estava indo de vento em popa, os investimentos que fiz na empresa deram mais do que certo, e meu melhor amigo e o segundo homem na liderança da Urus estava plenamente feliz. E era muito bom ver alguém que eu já vira afundado na depressão sorrindo daquele jeito.

— Vamos parar um pouco? — pergunta Donovan. Ele começou a falar em português mesmo quando estamos sozinhos, e eu já me acostumei com isso. Então respondo também em português:

— Aqui? Você sabe que essa praia é imprópria para banho, não é? E já são onze da noite, precisamos ir pra casa. Estamos o dia inteiro na rua e eu preciso mesmo comer alguma coisa.

— A gente para num quiosque e belisca alguma coisa — responde ele, olhando mais uma vez para o mar sujo que, na cabeça dele, parece lindo e convidativo. E sim, ele usou a palavra "beliscar" ao invés de "degustar". Ele definitivamente "pegou a manha" brasileira e já até fala como nativo.

— Sei não...

— Para de ser chato, eu nem vou mergulhar. Só quero ver o mar.

— O mar carregado de lixo e excrementos?

— A palavra que você quer usar é "cocô" — ele ri. — Também temos "caca", "bosta", "caquinha", "mer..."...

— Eu sei disso tudo — corto, exasperado. — Eu tenho que saber, sou eu que administro um curso para brasileiros falarem como nativos americanos.

— Mas você poderia tentar falar como um nativo brasileiro também, ué.

Sim, ele disse "ué". E eu adoro essa... Palavra. Quer dizer nada e tudo ao mesmo tempo, duas letrinhas que expressam perfeitamente o sentimento do locutor. Eu definitivamente amo essa língua! Não mais que o Donovan, claro.

— Eu falo como nativo brasileiro... — murmuro.

— Um pouquinho, só — implica ele. Então volta a me implorar: — Dez minutos é tudo o que eu te peço.

Vencido, suspiro e murmuro:

— Okay, são apenas dez minutos... E vou cronometrar — faço uma breve pirraça, mas ele sabe que é pura irritação infantil e não me dá crédito. Ponto para ele.

Reduzo a velocidade e procuro um lugar onde eu possa estacionar. Alguns ônibus e carros ainda passam na pista, mas bem menos do que a agitada e turbulenta movimentação diária do trânsito em horário comercial. É uma quinta feira relativamente quente, mas aqui perto da praia está bem mais fresco. Na verdade, assim que desligo o carro e saio para o calçadão, sinto um vento frio gelando minha espinha. Franzo as sombrancelhas e fecho os últimos botões da minha camisa salmão. Donovan fecha a porta do carro e me espera ansioso ligar o alarme, que dispara um sutil aviso sonoro antes de nos encaminharmos para um enorme bloco de pedras. Reparo que ele deixou o casaco no carro, mas não digo nada.

Algumas praias americanas são feitas somente de rochas, principalmente nos estados mais frios. Outras, como as da Califórnia, são bem parecidas com as de Copacabana e Ipanema, quentes e arenosas. A praia de Botafogo tinha areia, mas possuía também uma divisão feita apenas de rochas escuras. Dava pra ver que algumas eram perigosamente escorregadias e irregulares, e que qualquer pessoa que se arriscasse a ficar de pé ou até mesmo se sentar nelas poderia sofrer um feio acidente.

Donovan se sentou na pedra mais segura, a mais perto possível da pequena mureta que separava o calçadão da praia propriamente dita. Ele não parecia incomodado com a temperatura.

Sentei-me ao lado dele e mirei a paisagem. Ondas iam e vinham, e era quase impossível saber onde o mar terminava, já que o negrume de suas águas se misturava com o céu igualmente escuro. Eu daria o braço a torcer e elogiaria a vista, mas lembrei das toneladas de "caquinha" e fiz cara de nojo.

Fizemos silêncio por alguns instantes. Conhecendo o cara desde que era adolescente, sabia bem o que estava se passando pela cabeça do meu melhor amigo. Provavelmente memórias de seu passado, que por mais distante que estivesse, ainda fazia parte do seu ser. Pelo menos as crises, surtos e a maior parte do choro tinham ido embora graças a terapia. E coisas como ver o mar eram o suficiente para que ele relaxasse e voltasse ao presente.

Meu próprio passado também havia sido turbulento, embora não tanto quanto o dele. E apoiá-lo quando ele precisava desesperadamente se apoiar em algo para não cair no vazio era o mínimo que eu podia fazer.

Quase dois minutos inteiros se passaram quando ele disse a primeira coisa:

— Gavin.

Fitei-o, mas ele continuava concentrado em frente. Então apontou com o queixo silenciosamente.

Não sei como não reparei antes, talvez estivesse tão perdido em meus pensamentos quanto Donovan. Mas de maneira sutil reparei que havia uma silhueta a nossa frente. Se ficasse totalmente imóvel, poderia ser uma estátua. Mas agora a figura esguia tinha se mexido. Estava sentada com as pernas apoiadas no peito, os braços protegendo as pernas. Dava pra ver que ela também se embalava para frente e para trás.

Quantas vezes eu não vi o próprio Donovan na mesma posição, irrequieto e apreensivo no canto de alguma parede?

Então a figura parou de se balançar e permaneceu imóvel novamente. E lentamente começou a se erguer. Estava de costas para a gente, mas deu pra notar que era uma garota, adolescente ou jovem adulta. E seus pés se aproximavam cada vez mais das pontas escorregadias das rochas.

Puro pânico tomou conta de mim. Ela... Ela ia se jogar.

Num impulso forte, levantei abruptamente. Senti quando Donovan também se levantou. Ao estar um pouco mais próximo da moça, gritei:

- NÃO!!!!

Ela se assustou, mas o próprio movimento que fez ao ouvir minha voz parecia letárgico. Aquilo não era nada bom, nada bom mesmo.

Então ela olhou pra mim, ainda plantada no mesmo lugar. O som das ondas parecia mais alto do que segundos antes.

Não dava pra ver muito no escuro, mas consegui ver um rosto magro, castanho e muito abatido. Seus olhos escuros estavam aterrorizados, as mãos inertes ao lado do corpo tremiam. Ela vestia uma blusa branca que parecia grande demais para o próprio corpo, e uma calça preta larga. Estava descalça.

Por Deus, ela tinha ido mesmo se matar.

Donovan disse, ao meu lado, já tirando os sapatos:

— Quem é você? Porque está fazendo isso?

A garota não respondeu, continuou petrificada. Reparei que apesar de estar bem magra, seu rosto estava inchado, como se tivesse chorado muito.

— Meu nome é Gavin e esse é Donovan — falo alto para que ela possa me ouvir. Começo a retirar as minhas sandálias. — Qual é o seu nome?

Nada. Insisto:

— Vem aqui conversar com a gente. Não... Não pule!

Ao ouvir a última parte, os olhos dela pareceram se arregalar mais. Ela olhou para trás, como se estivesse prestes a se jogar de uma vez.

— Não precisa fazer isso! — grito mais uma vez. — Podemos achar uma solução!

— Fique calma! Sei que parece o fim, mas não é — gritou Donovan. Ele colocou as duas mãos para cima num gesto apaziguador e se aproximou um passo. — Vamos conversar, tá bem?

— É isso mesmo — dei dois passos, um a mais além do de Donovan. Também faço o gesto apaziguador. — Não tenha medo. Deixe que nós tiramos você daí.

Ela continua olhando para nós dois. Parece confusa, angustiada. Está paralisada. Meu medo é que se desespere e pule no ato, por isso tentamos nos aproximar devagar.

Sinto os pés gelados em contato com a pedra. Há quanto tempo ela estava ali? Será que estava matutando sobre o que fazer e decidiu que era melhor acabar com tudo?

Eu estava tentando parecer calmo, mas não estava. Uma pessoa estava prestes a tirar a vida, e por uma incrível coincidência, eu estava ali para testemunhar e até mesmo evitar aquela tragédia. Sempre pensamos que somos incríveis, invencíveis e intocáveis, até vermos que não somos nada. Ali, implorando a forças misericordiosas que a pobre garota me ouvisse, percebi que eu era o mais fraco de todos os fracos, que não tinha poder o suficiente para evitar que alguém voluntariamente tirasse a própria vida.

Donovan já havia tentado uma vez e há muito tempo, e eu não estava lá para impedir. Foram os cuidados médicos rápidos que o salvaram, e não eu. Agora eu realmente me encontrava numa situação em que absolutamente tudo dependia de mim. O suor brotava na minha testa, a respiração ficava difícil. E o frio aumentava cada vez mais.

Me aproximo mais um pouco, rezando para que minhas palavras a acalmassem pelo menos um pouco.

— Deixa eu tirar você daí. Eu vou te ajudar, nós vamos te ajudar. — Dou mais três passos, chegando a metade do caminho. — Vem cá. Tá tudo bem. Vai ficar tudo bem.

Ela não se mexe, mas não voltou a olhar para trás. Donovan permanece no mesmo lugar, silenciosamente deixando com que o resgate seja exclusivamente meu.

— Vem cá — repito. Mais de perto, reparo nos lábios pequenos, rachados e azuis pelo frio. Dou mais dois passos. — Não faça isso. Eu estou aqui agora. Vai ficar tudo bem.

Minha voz saía firme, mas por dentro eu estava prestes a desmaiar de nervoso. Donovan deve ter reparado, pois se aproximou mais um pouco e disse:

— Vamos cuidar de você, baixinha. Não se assuste. Venha aqui.

Estendo a mão para ela. Espero que não note o tremor nos meus dedos.

Alguns segundos se passam enquanto ela nos encara. Então olha para a mão estendida e parece estar pensando. Mais instantes de silêncio e...

Vejo que ela não vai segurar. Tomou a decisão, a amarga e horrível decisão. Senti meu coração acelerando ao notar sua sutil porém óbvia desistência.

Assim que vejo o grão de esperança se esvaindo de seus olhos, assim como o pequeno impulso para voltar-se para trás, tomo uma atitude.

Perigosamente rápido, eu corro até ela. Pensei que se debateria e talvez me levasse junto com ela mar abaixo, mas nenhuma resistência foi oferecida. Carrego-a no colo e volto ajudado por Donovan, que estava pálido como jamais vira. A garota permanece muda e quieta, como se até mesmo lutar pela própria morte fosse exaustivo demais.

Ainda ajudado por Donovan, saímos das pedras. Quero colocar a moça de pé, mas sei instintivamente que ela provavelmente não vai conseguir se estabilizar. Aconchego-a no meu peito. Ela não olha pra mim. Parece que sua mente está muito, muito longe.

Donovan e eu nos encaramos. Apenas com um olhar, decidimos.

Vou em direção ao carro, desligo o alarme e abro a porta da frente. Então cuidadosamente passo o corpo gelado da moça para Donovan. Destravo a porta de trás, da qual ele abre e se senta no banco traseiro. Reparo quando ele pega o casaco e cobre a maior parte das pernas e braços da menina.

Fecho a porta do quarto, ligo o carro e saímos. Não dizemos uma única palavra o trajeto inteiro.

Continuar lendo

Você deve gostar

Capítulo
Ler agora
Baixar livro