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Isadora Monteiro
Naquela manhã eu acordei mais cedo do que o comum. O sol ainda mal havia aparecido por trás das montanhas e a cidade dormia em silêncio, envolta por uma névoa fina e pelas luzes piscantes que resistiam à madrugada.
Era dezembro - e em dezembro, tudo por aqui ganha uma espécie de brilho próprio. Até o ar parece mais doce.
Calcei meus tênis gastos, prendi o cabelo em um coque apressado e saí pelas ruas estreitas. Correr pela cidade logo cedo se tornou meu pequeno ritual, uma forma de agradecer pela vida simples que levo, e de lembrar o quanto amo esse lugar.
As casinhas coloridas, o cheiro de pão fresco vindo da padaria da Dona Zuleica, as guirlandas nas portas... cada detalhe parecia me abraçar.
O som do meu passo ecoava no calçamento molhado de orvalho, e eu respirava fundo, sentindo o aroma da terra úmida misturado ao perfume das flores que o Seu Ernesto insistia em cuidar, mesmo no frio. Ele sempre dizia que flores no inverno eram um sinal de esperança - e eu acreditava.
Passei pela pracinha central, onde a prefeitura já montava o grande pinheiro de Natal. Clara, minha melhor amiga, estava ali, enrolada num cachecol vermelho, dando ordens para dois rapazes que penduravam luzes douradas. Ela me viu e acenou, sorrindo como quem carrega energia de sobra mesmo antes das sete da manhã.
- Isaaaaa! - ela gritou, com aquela voz animada que parecia ecoar por toda a cidade. - Depois passa no coreto, precisamos de ajuda com os enfeites!
- Eu passo, prometo! - respondi, rindo.
Continuei a correr, mas dei uma última olhada pra ela. Clara Vasconcellos era assim mesmo: intensidade pura. Se o Natal fosse uma pessoa, seria ela.
Dobrei a esquina que levava ao rio e vi o reflexo das luzes nas águas calmas. Ali era meu ponto preferido. Eu parava, fechava os olhos e pensava em como minha vida, embora simples, era exatamente o que eu queria.
Às vezes me perguntava como seria morar em uma cidade grande, ou seguir carreira em algum lugar distante. Eu canto desde pequena, mas nunca imaginei que o mundo precisasse ouvir minha voz. Aqui, entre montanhas e sorrisos conhecidos, eu já me sentia suficiente.
Quando o sol finalmente rompeu o véu de neblina, voltei para casa. O Hotel Monteiro, onde moro e trabalho com meus pais, ficava no alto da colina, cercado por pinheiros e com vista para toda a cidade. O prédio é antigo, de madeira clara e varandas floridas. Um lugar que mais parece ter saído de um cartão-postal.
Assim que entrei, o cheiro de canela me envolveu.
Mamãe estava na cozinha, preparando os biscoitos natalinos que os hóspedes tanto amavam. Helena Monteiro tem mãos de fada e o dom de fazer qualquer um se sentir em casa.
- Bom dia, meu amor - ela disse, sem olhar pra mim, ocupada demais decorando as forminhas. - Dormiu bem?
- Dormi. Só acordei cedo pra correr. A cidade está linda, mãe. Clara está terminando os preparativos da praça.
Ela sorriu, e eu percebi o cansaço em seus olhos. A época do Natal era a mais movimentada do ano no hotel, e ela se desdobrava entre a cozinha, as reservas e as decorações.
- Seu pai já foi buscar lenha - avisou. - Disse que vai consertar a lareira antes da noite.
Papai. Francisco Monteiro - ou Chico, como todo mundo chama. O homem mais gentil que eu conheço. Brinca com as crianças, conversa com os hóspedes como se fossem velhos amigos e sempre tem uma história nova pra contar.
Enquanto colocava a mesa para o café, ouvi o barulho do carro dele chegando. Ele entrou pela porta dos fundos, batendo as botas na soleira e trazendo o cheiro da manhã junto com ele.
- Bom dia, minhas meninas! - disse, tirando o gorro e me dando um beijo na testa. - Trouxe lenha boa e seca. Hoje à noite o fogo vai cantar bonito.
- Cantar bonito? - brinquei. - Quem canta bonito aqui sou eu, pai.
Ele riu, e mamãe balançou a cabeça, fingindo reprovação.
- Isadora, você devia cantar mais. - disse ele, sério por um instante. - A cidade toda se encanta quando ouve sua voz.
- Eu canto só pra mim - respondi, desviando o olhar. - E pro Natal, talvez.
Cantar em público ainda me deixava nervosa, mesmo depois de tantos anos ajudando no coral da igreja. Mas papai sempre insistia que a música era um dom, e que dom guardado perdia o brilho.
Depois do café, fui para a recepção do hotel. Gosto de observar as reservas, organizar as chaves, sentir o cheiro do pinheiro enfeitado no saguão. Ali, cada detalhe tem história: o carpete gasto pelas malas de viajantes, o sino dourado que papai trouxe de uma feira antiga, e as fotos nas paredes, com registros de famílias que passaram o Natal conosco ao longo dos anos.
O telefone tocou.
- Hotel Monteiro, bom dia! - atendi, animada.
Era Dona Zuleica, da padaria.
- Isadora, querida! Manda o Chico passar aqui, tenho pão de mel fresquinho e preciso devolver a travessa da sua mãe!
Sorri.
- Pode deixar, Dona Zuleica. E guarde uns pra mim, tá?
Ela riu do outro lado da linha.
- Se sobrar, guardo!
Desliguei e, por um instante, fiquei olhando a neve começar a cair lá fora - os primeiros flocos da temporada. A cidade parecia coberta por um véu de magia. As crianças corriam na praça, o padre Antônio acenava da igreja, e o sino do relógio do Seu Ernesto marcava as oito horas.
Peguei meu casaco e fui até a varanda, onde papai ajeitava uma estrela dourada no topo do pinheiro do hotel. Ele sempre fazia isso com um orgulho quase infantil.
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