LIVRO ÚNICO Uma promessa feita por sangue. Matteo se encontrava em grande problema ao ser feito prisio-neiro por uma família rival. Salvo por Costa, prometeu que faria qualquer coisa para pagar essa dívida, mesmo com seu sangue, se preciso fosse. Anos se passam sem que Costa reclamasse esse dever de Matteo. Até que, no dia do noivado de sua filha, ele precisa recorrer ao favor prometido. Eva não pode ser chamada de fraca. Sendo a única filha da Casa De Nobrega, segue à risca as palavras de seu pai, sempre para o bem da família. Seu temperamento pode ser difícil e muitas vezes pe-rigoso. E sua coragem será colocada à prova quando, após perder seu pai e ser perseguida pelo noivo, ainda precisa enfrentar a fúria da família Mazzari. Caminhos se cruzam e promessas são cobradas. Duas almas podem sair ilesas do meio da tormenta?
10 anos atrás.
Está ligeiramente escuro, a pequena janela no cômodo não deixa a luz do dia se infiltrar nada além do que pequenos fios dourados. Mi-nha cabeça dói, os machucados no rosto e corpo em um latejar constan-te que me mantém acordado. O olho esquerdo está tão inchado a ponto de nem mesmo conseguir abrir enquanto o outro está parcialmente cer-rado. Observo os dois guardas parados na porta com suas mãos segu-rando armas pesadas, as roupas ainda manchadas com meu sangue.
O da direita funga, seu nariz quebrado após minha cabeça atin-gi-lo. Sorrio depois de cuspir aos seus pés, o que o faz grunhir. Não te-nho a melhor reputação em ser comportado quando me encurralam, que foi exatamente o que fizeram comigo. Pego desprevenido, não tive tempo para analisar uma rota de fuga ou mesmo defesa. Por um mo-mento de descuido dos meus homens, e também meu, acabamos sendo alvejados saindo de uma reunião importante.
Venho de uma família que já foi muito temida, mas meu pai fez certas escolhas que o transformaram em uma piada, assim como o resto de nós. Com muito custo, suor e noites sem dormir, estou tentando re-erguer nosso nome e formar alianças com outras famílias. A Famiglia Gallo, por exemplo, cederia uma parte do território para nossas máqui-nas de caça-níqueis ilegais se nós deixássemos passar parte de suas dro-gas. Era um acordo mais que conveniente para ambos os lados.
Porém, como minha família possui seus inimigos, os Gallo tam-bém possuem os deles. A relação entre as famílias é frágil, levando a conflitos constantes e muitas vezes sequestros seguidos de assassinatos. Fui pego no fogo cruzado, levado amordaçado, espancado e minha calma controlada está esvaindo por entre os dedos como areia a cada minuto que passa.
Remexo as mãos e sinto os pulsos arderem com a corda aperta-da. Meus pés descalços doem, as pernas formigando pela mesma posi-ção nas últimas horas. Ou seriam dias? Não consigo saber, ou mesmo lembrar. Barulhos começaram a ser ouvidos do lado de fora da porta. Um estouro estremece o chão e vozes alteradas se tornam gritos que se aproximam cada vez mais. Os guardas se entreolham ao empunhar as armas ao mesmo tempo em que a porta é aberta com um empurrão.
Só tempo de jogar o corpo para o lado, tombando com a cadeira, quando duas metralhadoras têm seus gatilhos puxados. O som dos tiros se mistura com os gritos e os cartuchos caindo no chão. Do lado de fora pode-se ouvir a confusão de um ataque e meu sangue ruge com a ex-pectativa de uma luta.
― Solte-o. - Um deles instrui, passando a alça da metralhadora no ombro e pescoço.
Minha cadeira é erguida e resmungo com a dor em meu ombro pela queda de mau jeito. A corda ao redor dos pulsos é afrouxada, meu corpo indo para frente e sendo segurado por uma palma quente no cen-tro do meu peito.
- Devagar, ragazzo .
Ergo o rosto e, pelo olho entrecerrado, reconheço o rosto sério do homem de cabelos grisalhos nas laterais.
― Costa... De Nobrega...
Tento sorrir, mas acho que mais se parece com uma careta dolo-rida quando o homem me puxa de pé. Solto um grunhido quando mi-nhas costelas latejam e apoio o peso do corpo contra o homem.
- Esses filhos da puta... Como vocês...?
- Tenho meus aliados. - Costa sorri brevemente antes de tor-nar a ficar sério. - Seu pai implorou por ajuda. Eu devia um favor a ele há muito tempo atrás. Agora, ande mais rápido.
― Acho... que quebrei uma perna. - Torço o rosto.
- Você já foi melhor.
Sorrio com a alfinetada. Teve uma vez que quebrei duas costelas e levei um tiro, mas ainda consegui derrubar três homens e fugir de carro. Talvez esteja realmente fora de forma.
― Porra, vocês demoraram ― murmuro.
― Sua forma de agradecimento é bastante questionável. - Costa gesticula para a porta. - Liderem nossa passagem, estamos saindo.
Com passos apressados, tento seguir Costa sem tropeçar. Porém, o homem anda rápido demais e meus pés insistem em se manter incon-sistentes. Saímos pelo corredor e chegamos à frente da enorme mansão abandonada convertida em prisão, o sol me atingindo o rosto com in-tensidade e me forçando a fechar o olho e gemer de dor.
― Aguente firme, Matteo.
Caminhamos com dificuldade, sangue escorrendo da minha tes-ta e dos vários ferimentos no corpo. O carro destrava e, com esforço, Costa abre a porta e me empurra para dentro. Sento sobre o banco do passageiro com uma careta, meu sangue misturado com sujeira deixa manchas sobre o couro branco. Viro o rosto para a janela e vejo os guardas armados, e fico tentado a erguer o dedo do meio.
Entretanto, minha cabeça lateja, meu corpo dói e a língua pare-ce inchada. A luz do sol parece piorar tudo. Encosto a cabeça no apoio do banco, a visão nadando, meu nome ecoa e parece longe demais. To-do o cansaço e machucados cobram seu preço e me levam ao esqueci-mento.
***
Três semanas depois.
O som do tiro ecoa pelo salão, o alvo preto e branco de uma si-lhueta balança com a força da bala o atravessando. Analiso o buraco feito dois dedos acima de onde deveria ser o coração e movo o alvo para mais longe. Não posso perder a prática de conseguir matar um filho da puta de uma distância segura. A raiva em ter sido pego de sur-presa ainda me assola. Os machucados e roxos ainda doem e me lem-bram a cada segundo de como fui fraco.
Meu olho esquerdo não está mais inchado, mas a coloração ver-de e amarela ao redor parece terrível. A córnea está vermelha e dolori-da. Segundo o médico de confiança de Costa, a pancada foi realmente forte. Tanto, que posso ter perda de visão em vinte e cinco por cento. Recarrego a arma com habilidade e miro novamente, praguejando com a visão um pouco embaçada. Grunho ao errar os dois tiros seguidos e trago o alvo para mais perto, analisando que, se fosse uma pessoa de verdade, teria atingido de raspão.
- Se girar um pouco o pulso, você consegue acertar entre os olhos.
Tiro a atenção do alvo e viro para encontrar a garota de tranças com laços vermelhos que me visita todos os dias pela manhã. Eva, a pequena valente e filha de Costa, com seus grandes olhos castanhos curiosos e impressionáveis.
- Entende de tiro, Piccolina ?
- Meu papà tem me ensinado há alguns meses. - Encolhe um ombro, seus olhos indo para o meu alvo. - Não é difícil depois que pega prática.
Assinto brevemente e apoio a arma de volta sobre a mesinha. As balas tilintam com o movimento e puxo um pano do bolso para limpar meus dedos sujos quando vejo que Eva me olha, a ponta do dedo indi-cador coçando a sobrancelha esquerda.
- Vai ficar uma cicatriz aí - diz baixinho.
Passo o polegar abaixo do corte no meu supercílio.
- Apenas mais uma lembrança dolorida.
Ela assente, cruzando as mãos nas costas.
- Você parece melhor, senhor Mazzari.
- Um pouco menos triturado. E pensei ter dito que poderia me chamar de Matteo.
A garota sorri timidamente, seus olhos me sondam de longe.
- Papà não acha adequado.
- Mas ensinar tiro para uma garotinha é?
Seu semblante fica sério, toda a tenacidade que cobre sua feição infantil mostra como seria uma mulher obstinada no futuro.
Perigosa.
- Não sou mais criança, tenho quase treze anos. Os meninos aprendem a manusear uma arma com a mesma idade. - Eva franze o cenho, seus braços cruzando. Seu vestido azul céu com laços brancos desmente sua fala. - Papà me prometeu uma faca Cold Steel de aniver-sário.
Sorrio de lado ao guardar a arma no cós da calça.
- O que está fazendo aqui, cara Eva?
- Não o achei em seu quarto, assim, imaginei que poderia estar aqui - resmunga, uma carranca torcendo suas feições novamente. - Papà quer vê-lo no jardim assim que possível para uma conversa antes do jantar. Ouvi dizer que mataram o Chefe da Famiglia Gallo depois que sequestraram você. Acham que pode ter sido seu pai e eles querem vingança. Senhor Mazzari, acha que vai ter que atirar em alguém? Vo-cê não vai morrer, não é?
Observo o rosto curioso da menina, minha mão passando pelas costelas já cicatrizadas. Se isso realmente tivesse acontecido, seria um grande problema para minha família. Franzo o cenho, meus olhos des-viando para os dedos de Eva retorcendo um laço de seu vestido quan-do me aproximo devagar.
- Não há nada que Matteo Mazzari não possa resolver. - Aperto seu ombro levemente. - E se tiver que atirar em alguém na cabeça, vou usar sua dica, Piccolina.
Eva sorri quando Jade aparece na porta.
- Aí está você! Incomodando o senhor Mazzari novamente?
- Ela veio me trazer um recado e um ótimo conselho. - Olho para Jade e coloco minha mão sobre os cabelos de Eva. - Ela é uma garota brilhante, inteligente e perspicaz. Costa teve sorte de tê-la e vo-cês deveriam apreciá-la melhor.
- Senhor Mazzari...
- Ela é a filha do Chefe da Famiglia De Nobrega. Trate-a como tal. - Viro para Eva e seguro seu queixo em um aperto suave. - Nun-ca abaixe sua cabeça. Para ninguém, Eva. Confie em seus instintos sempre e lute até o último suspiro. Me ouviu bem?
Eva assente rapidamente quando solto seu queixo e me viro pa-ra Jade com um aceno antes de sair do salão. Poucos passos depois ain-da posso ouvir suas vozes ecoando pelo corredor.
- Eva, o que faço com você?
- Sou filha de Costa De Nobrega, vou assumir seu lugar um dia. E também vou me casar com Matteo quando for adulta.
- Não diga bobagens. Agora vá para seu quarto e se lave para o jantar.
Balanço a cabeça. Com meus vinte e cinco anos e com um casa-mento marcado para o próximo mês, estou mais do que inacessível pa-ra uma criança de treze anos. Nossos caminhos não iriam se cruzar dessa maneira.
Puxo meu telefone e envio uma mensagem para meu homem de confiança e braço direito, guardando o aparelho sem esperar sua res-posta. O sol da tarde está se pondo no horizonte quando saio para o jardim, o laranja se misturando ao azul do mar. A brisa fresca sopra na varanda, a rede de franjas brancas balança, roçando o chão de piso vermelho. Árvores cheias agitam, pássaros cantando não muito longe.
Faz qualquer um se sentir em paz.
Entretanto, as últimas notícias ainda me perturbam.
- Aí está você. Como se sente hoje?
- Menos pior que ontem. - Seguro sua mão em um aperto ao me aproximar. Costa gesticula para que me sente e suspiro ao encostar no estofado claro da poltrona. - Fiquei sabendo sobre o Chefe da Fa-miglia Gallo.
Foi a vez de Costa suspirar.
- As notícias correm rápido. - Seus olhos escuros fitaram so-bre o ombro na direção da casa antes de voltar para mim. - A família está pedindo retaliação. O filho mais velho, Anthony, tomou o lugar do pai. Ele não está nem um pouco feliz.
- Não há motivos para meu pai ter feito isso. - Balancei a ca-beça, esfregando o queixo. - Não fui sequestrado pelos Gallo, assim como não existe poder na mão do meu pai para mandar matar alguém.
- Mas Anthony não sabe disso. E ele está agindo na dor. - Costa cruzou as mãos sobre as coxas. - Você sabe que pode ficar aqui o tempo que quiser, Matteo, mas existem tarefas a serem feitas.
Assenti, meus dentes rangendo até sentir a picada de dor no maxilar.
― Sei muito bem disso, Costa. Um dos motivos de já ter pedido minha carona para casa no caminho até aqui. Minha família precisa de mim.
Costa assentiu, observando o mar batendo contra as rochas.
― Você faz aquilo que é melhor. Minhas portas sempre estarão abertas para você e sua família.
Levanto, sentindo minhas costas doerem. Os cortes no rosto ainda estão avermelhados e se unirão às outras diversas cicatrizes pelo corpo em breve. Esfrego o pulso, os olhos presos no jardim florido da casa que fiquei nas últimas semanas para me recuperar.
Vejo Cristian surgir pela trilha de cascalho que levava à saída da grande casa De Nobrega e estendo a mão para Costa.
― Sou grato por me resgatar e por me hospedar em sua casa. ― Apertamos as mãos, meus dedos mantendo os de Costa com força. ― Eu, Matteo Mazzari, como Chefe da minha Famiglia, a minha palavra de honra de que pagarei pela ajuda. Quando precisar, seja onde for, estarei lá para ajudá-lo. Mesmo que tenha as mãos cheias de sangue, ou que custe minha vida.
Costa apertou minha mão entre as suas e assentiu seriamente.
― Tenho sua palavra, rapaz.
Sem mais o que dizer, viro as costas e saio da grande casa com aquela promessa caindo sobre os ombros. Virando a curva, Eva surge de trás da pilastra, seus olhos tristes ao acenar. Parto, sem imaginar que anos mais tarde estes mesmos olhos me olhariam com súplica.
Minha palavra seria cobrada.
E pagaria com minha alma se preciso fosse.