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Narrado por Luísa Andrade
Eu jurava que nunca mais ia sorrir.
Depois que o mundo arrebentou as costuras da minha vida, depois do assalto, dos tiros, das sirenes e do zíper fechando o corpo do meu marido... e, pior, o lençol pequeno demais cobrindo a minha filha, eu tinha certeza de que todos os sorrisos tinham ficado enterrados com eles.
Mas eu estava ali, na poltrona branca de uma clínica silenciosa, com as mãos espalmadas no ventre, e o coração batendo como se quisesse me sacudir de volta para a vida.
**Dra. Tatiana:** Parabéns, Luísa. O beta HCG deu positivo. Você está grávida.
A voz dela veio macia, limpa, quase um fio de luz entrando por uma janela esquecida. Eu só conseguia olhar para o papel com os números, como se aqueles dígitos pudessem saltar e me abraçar.
**Luísa:** Eu... é real?
**Dra. Tatiana:** É real. A partir de hoje, começamos suplementos, o pré-natal, e em duas semanas o ultrassom. Vai dar tudo certo.
Eu balancei a cabeça e não respondi, porque a lágrima já tinha escapado. Não chorei alto. Só deixei que ela caísse, quente, lavando por dentro um lugar que eu achava que tinha virado pedra.
A médica continuou explicando horários, vitaminas, sinais de alerta. Metade eu ouvi. A outra metade ficou presa no mesmo pensamento: *segunda chance*. Eu abracei esse pensamento como quem abraça a última bóia em alto-mar.
Saí da clínica com o envelope contra o peito. Do lado de fora, uma garoa fina. Parecia que a cidade sussurrava: *calma, respira*. Entrei no ônibus apertado, sentei na janela e fiquei sorrindo sozinha, com medo de espantar o milagre se eu fizesse barulho demais.
Em casa, encostei as costas na porta e deslizei até o chão, rindo e chorando ao mesmo tempo.
**Luísa:** Vai dar certo, meu amor. Agora vai.
Acariciei o ventre. Eu não sabia de onde tirar forças, mas sabia por quem eu ia tirar.
---
Na outra metade da cidade, em um prédio sem placa, um homem nascido para mandar apertava os dedos na borda da mesa até os nós ficarem brancos.
Mikhail Orlov - o nome que fazia criminosos mudarem de calçada e políticos falarem baixo,ouviu, sem mover um músculo do rosto, o diretor da clínica privada gaguejar sobre uma falha no banco de material genético.
**Diretor:** Houve uma troca... é... um erro no lacre. A amostra destinada à sua noiva não foi a que usamos. A sua amostra... foi implantada em outra paciente.
Kira Zaitseva, a noiva de vitrine, gelou ao lado. O salão de mármore, o buquê de flores caras, as joias - tudo ficou pequeno.
**Kira:** Isso é absurdo! Misha, diga alguma coisa!
Ele não respondeu. Só virou a cabeça milímetros, como um lobo que fareja o vento antes de morder.
**Mikhail:** Nome.
**Diretor:** Eu... não posso. Sigilo.
O silêncio durou o tempo de um suspiro. Depois veio o estampido. Não teve grito, só o corpo desabando, o sangue espalhando em pétalas no mármore claro.
**Mikhail:** Nome.
O assistente trouxe uma pasta com mãos que tremiam. Mikhail leu. E as letras simples de um nome desconhecido se gravaram na pedra do destino dele.
**Mikhail:** Luísa Andrade.
Kira tentou segurar o braço dele. Ele se soltou com um gesto breve.
**Kira:** E o nosso casamento?
**Mikhail:** Cancelado.
**Kira:** Você não pode!
**Mikhail:** Posso tudo. E vou fazer o necessário.
Ele saiu do salão como quem fecha uma guerra no bolso. Quem viu, fez o sinal da cruz.
---
No dia seguinte, eu estava passando café quando a campainha tocou. O som cortou o ar. Não era hora de entrega. Nem de vizinho.
Abri. O corredor do prédio pequeno parecia menor com ele parado ali.
Alto. Terno escuro impecável. Olhos de um cinza que eu nunca tinha visto. Dois homens atrás, do tipo que não pisca.
**Mikhail:** Luísa Andrade?
**Luísa:** Quem quer saber?
Ele ergueu uma pasta. Eu reconheci o timbre do papel, o carimbo da clínica, a assinatura da Dra. Tatiana. Senti o estômago virar.
**Mikhail:** Precisamos conversar.
**Luísa:** Você não pode entrar- Ei!
Ele entrou. Não pediu licença. Caminhou pela minha sala simples como se ela já fosse dele. Eu fechei a porta num reflexo, me colocando entre ele e a cozinha, entre ele e minhas fotos na estante.
**Mikhail:** Parabéns pela gestação.
**Luísa:** Quem é você?
**Mikhail:** Mikhail Orlov.
O nome bateu. Não porque eu conhecesse o rosto, mas porque todo mundo conhece um rumor. Eu, que moro num bairro onde a vida dobra a esquina de noite, sabia o peso daquele sobrenome.
**Luísa:** O que você quer?
**Mikhail:** O que é meu.
Eu ri pelo nariz, derrubando a máscara do medo com a cara de quem já não tem nada a perder.
**Luísa:** Nada nessa casa é seu.
Ele pousou a pasta sobre a mesa de madeira. Abriu. Fotos, documentos, uma cadeia de rastros que eu nem sabia que existia. A assinatura do banco de material, o lacre, o relatório. Minha ficha, meu nome, meus números. A palavra *erro* repetida como um soco.
**Mikhail:** O material genético usado no seu procedimento é meu. Fui traído por quem deveria resguardar isso. Corrigi a falha. Agora corrijo o destino.
**Luísa:** Corrigir? Como? Arrancando um bebê de dentro de mim?
Mikhail me encarou, e pela primeira vez algo que não era gelo passou por aquele olhar.
**Mikhail:** Não sou um ladrão de crianças, Luísa.
**Luísa:** Não? Então por que você está aqui invadindo minha casa?
**Mikhail:** Porque minha herança está no seu ventre. E porque eu não deixo o meu sangue ao acaso.
**Luísa:** Eu perdi tudo no dia em que dois moleques armados decidiram matar por um celular. Meu marido e a minha filha viraram estatística. Eu fiquei. E resolvi que ia tentar outra vez. Com meu dinheiro, meu corpo, meu luto. Esse bebê é o que me resta. Você não vai levar.
Fiquei de frente para ele, a mão no ventre, gesto automático, instintivo, feroz.
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