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Todas as manhãs, leio cartas de amor escritas para outra mulher. Nós duas temos muito em comum:
os olhos cor de chocolate e o mesmo tom de loiro no cabelo. Também temos a mesma risada: discreta
no início, mas que se torna mais alta quando estamos na companhia das pessoas que amamos.
Quando ela sorri, ergue o canto direito da boca, exatamente como eu.
Encontrei as cartas na lixeira, dentro de uma caixa de metal em formato de coração. Centenas
delas. Algumas longas, outras mais curtas; algumas felizes, outras incrivelmente tristes. Pelas datas,
são muito antigas. Bem mais velhas do que eu. Algumas assinadas por KB, e outras, por HB.
Imaginei como meu pai se sentiria se soubesse que mamãe havia jogado tudo fora.
Mas, ultimamente, tem sido difícil para mim imaginar que ela já foi como aquela carta.
Inteira.
Completa.
Parte de algo esplêndido.
Agora, ela parecia ser exatamente o oposto.
Acabada.
Incompleta.
Sozinha o tempo todo.
Depois que meu pai morreu, mamãe se tornou uma vadia. Não existe modo mais educado de
dizer isso. Não foi de uma hora para outra, apesar de a Srta. Jackson — a vizinha do final da rua —
ter espalhado para um monte de gente que minha mãe abria as pernas para todo mundo antes mesmo
que meu pai nos deixasse. Eu sabia que não era verdade, pois nunca me esqueci de como ela olhava
para ele quando eu era criança. Era como se ele fosse o único homem na face da Terra. Sempre que
ele tinha que sair bem cedo para trabalhar, a mesa do café já estava posta, e o almoço, pronto, para
ele levar. Ela até preparava uns lanchinhos, porque meu pai vivia reclamando que sentia fome entre
as refeições, e mamãe sempre se preocupava em fazer com que ele se alimentasse bem.
Papai era poeta e dava aulas em uma universidade que ficava a uma hora da nossa casa. Não foi
surpresa descobrir que eles trocavam cartas de amor. Palavras eram o ponto forte dele, sua grande
vantagem. E mesmo não sendo tão boa quanto o marido, minha mãe conseguia expressar tudo o que
sentia em cada carta que escrevia.
De manhã, quando ele saía de casa, ela cantarolava e sorria enquanto limpava a casa e me
arrumava. E falava dele, dizendo o quanto o amava, como sentia sua falta e que escreveria uma carta
de amor antes que ele voltasse, à noite. Quando ele chegava em casa, mamãe sempre o servia com
duas taças de vinho, e então era ele quem cantarolava a música favorita dos dois e beijava a mão
dela. Eles riam juntos e cochichavam como adolescentes que estão vivendo seu primeiro amor.
— Você é meu amor eterno, Kyle Bailey — dizia ela, enquanto o beijava.
— Você é meu amor eterno, Hannah Bailey — respondia ele, girando-a em seus braços.
O amor dos dois era capaz de provocar inveja até nos contos de fada.
Quando papai morreu, naquele dia abafado de agosto, uma parte de minha mãe também se foi.
Lembro-me de ter lido um romance em que o autor dizia algo do tipo: “Nenhuma alma gêmea deixa
esse mundo sozinha. Ela sempre leva consigo um pedaço de sua outra metade.” Odiei aquilo, pois
sabia que era verdade. Minha mãe ficou enclausurada em casa por meses. Eu a obrigava a se
alimentar todos os dias, na esperança de que ela não definhasse de tanta tristeza. Nunca a tinha visto
chorar até aquele momento. Não demonstrava minhas emoções quando estava perto dela, pois sabia
que isso só a deixaria mais triste.
Eu já chorava o suficiente quando ficava sozinha.
Quando finalmente saiu da cama, foi para ir à igreja. Eu a acompanhei durante algumas semanas.
Lembro-me de me sentir totalmente perdida, aos 12 anos, sentada no banco de uma paróquia. Nunca
fomos uma família religiosa, só rezávamos quando algo de ruim acontecia. Nossas visitas à igreja
não duraram muito tempo, pois mamãe chamou Deus de mentiroso e desrespeitou os fiéis, dizendo
que deveriam parar de perder tempo, de ser enganados com esperanças vazias e inúteis de uma terra
prometida.
O pastor Reece pediu que ficássemos algum tempo sem aparecer. Pelo menos até as coisas se
acalmarem.
Até então, nunca tinha passado pela minha cabeça que alguém pudesse ser banido de um templo
sagrado. Quando o pastor dizia “venham todos”, acho que não estava se referindo a “todos” de fato.
Recentemente, mamãe adotou outro passatempo: homens diferentes em curtos intervalos de
tempo. Uns para dormir, outros para ajudar a pagar as contas. E há ainda aqueles que ela gosta de
manter por perto em momentos de solidão, ou também porque lembram meu pai. Alguns ela até
chama de Kyle. Agora à noite havia um carro parado em frente a nossa casa. Azul-escuro, com alguns
cromados e bancos de couro vermelho. Dentro dele, um homem estava sentado com um charuto na
boca, minha mãe no colo. Pareciam ter acabado de sair dos anos 1960. Ela ria baixinho enquanto ele
sussurrava algo em seu ouvido, mas não era o mesmo tipo de risada da época do papai.
Era vazia, frívola e triste.
Dei uma olhada na rua e vi a Srta. Jackson cercada de outras fofoqueiras, apontando para mamãe
e o homem da semana. Queria ouvir o que elas diziam e mandar que ficassem quietas, mas elas
estavam na calçada oposta. Até mesmo as crianças que brincavam de bola na rua, driblando alguns
gravetos, observavam os dois com os olhos arregalados.
Carros caros como aquele nunca transitavam numa rua como a nossa. Tentei convencer minha
mãe a se mudar para uma vizinhança melhor, mas ela se recusou. Na época, achei que era porque ela
e papai tinham comprado a casa juntos.
Talvez ela não tivesse se esquecido completamente dele.
O homem soltou a fumaça do charuto no rosto dela, e os dois riram. Mamãe usava seu melhor
vestido: amarelo, tomara-que-caia, com cintura justa, saia rodada. A maquiagem era tão pesada que a
fazia parecer ter 30 e poucos anos, em vez de 50. Ela era bonita sem toda aquela porcaria na cara,
mas dizia que se maquiar transformava uma menina em mulher. O colar de pérolas era da minha
avó, Betty. Eu nunca a vi usar aquele colar com um estranho, e não entendi o porquê de ela fazer isso
agora.
Os dois olharam na minha direção, e me escondi na varanda, de onde continuei espiando-os.
— Liz, se você está tentando se esconder, pelo menos faça isso direito. Venha aqui conhecer meu
novo amigo — falou minha mãe bem alto.
Saí de trás da pilastra e caminhei na direção dos dois. O homem soprou a fumaça mais uma vez e,
conforme eu me aproximava, observando seus cabelos grisalhos e seus olhos azul-escuros, o cheiro
do charuto chegou ao meu nariz.
— Richard, esta é a minha filha, Elizabeth. Mas todo mundo a chama de Liz.
Richard me olhou de cima a baixo, o que fez com que eu me sentisse um objeto. Ele me analisou
como se eu fosse uma boneca de porcelana prestes a se quebrar. Tentei disfarçar o desconforto, mas
não consegui, então baixei os olhos.
— Como vai, Liz?
— Elizabeth — corrigi, ainda olhando para o chão. — Só os mais íntimos me chamam de Liz.
— Liz, isso não é jeito de falar! — repreendeu minha mãe, franzindo a testa e deixando as rugas à
mostra. Ela não teria falado dessa forma se soubesse que isso acentuava as linhas de expressão em
seu rosto. Eu odiava quando um homem novo aparecia e ela sempre escolhia ficar do lado dele e não
do meu.
— Tudo bem, Hannah. Além do mais, ela está certa. Leva tempo para conhecermos alguém. E
apelidos têm que ser merecidos. Não são oferecidos a troco de nada.
Havia algo nojento na forma como Richard me encarava e baforava seu charuto. Eu usava uma
calça jeans larga, com uma camiseta bem grande, mas, mesmo assim, me sentia exposta.
— A gente está indo à cidade comer alguma coisa. Quer ir? — convidou ele.
— Emma ainda está dormindo — recusei. Olhei em direção à casa, onde minha menininha estava
deitada num sofá-cama. Nós duas já o dividíamos há um bom tempo, desde que viemos para a casa
da minha mãe.
Ela não foi a única que perdeu o amor de sua vida.
Eu tinha esperanças de não acabar como ela.
Esperava ficar só na fase da tristeza.
Steven tinha morrido há um ano, e eu ainda tinha dificuldade para respirar. Emma e eu
morávamos em Meadows Creek, no Wisconsin, nossa casa de verdade. O lugar foi reformado, e nós
o transformamos em um lar. Foi ali que eu e Steven nos apaixonamos, brigamos e fizemos as pazes
inúmeras vezes.
Bastava a nossa presença para tornar a casa um lugar aconchegante. Mas, depois que Steven se foi,
parecia que uma nuvem escura pairava sobre ela.
Foi no hall de entrada que ficamos juntos pela última vez. Seu braço envolvia minha cintura, e
nós achávamos que nos lembraríamos daquele instante para sempre.
Mas o “para sempre” foi bem mais curto do que todos imaginavam.
Durante muito tempo, a vida seguiu seu curso, até que, um dia, tudo ruiu.
Eu me senti sufocada pelas lembranças e pela tristeza, e então corri para a casa da minha mãe.
Voltar ao nosso lar significava encarar a verdade: ele não estava mais entre nós. Por mais de um
ano, vivi um faz de conta, fingindo que ele tinha saído para comprar leite e que voltaria a qualquer
momento. Todas as noites, quando me deitava, ficava do lado esquerdo da cama e fechava os olhos,
imaginando que Steven estava ali comigo.
Mas minha filha merecia mais do que isso. Minha pobre Emma precisava de mais do que um sofá-
cama, homens estranhos e vizinhos fofoqueiros dizendo coisas que uma garotinha de 5 anos nunca
deveria ouvir. Ela também precisava de mim. Eu estava vagando pela escuridão, não era a mãe que
ela merecia. Enfrentar as lembranças do nosso lar talvez me trouxesse paz.
Voltei para dentro de casa e olhei para meu anjinho dormindo, seu peito subindo e descendo em
um ritmo perfeito. Nós duas temos muito em comum: as covinhas na bochecha e o mesmo tom loiro
no cabelo. Também temos a mesma risada: discreta no início, mas que se torna mais alta quando
estamos na companhia das pessoas que amamos. Quando ela sorri, ergue o canto direito dos lábios,
exatamente como eu.
Mas tínhamos uma grande diferença.
Os olhos dela eram azuis como os dele.
Deitei-me ao lado de Emma, beijando suavemente seu nariz. Depois, peguei a caixa no formato de
coração e li mais uma carta. Já tinha lido aquela antes, mas mesmo assim ela tocou minha alma.
Às vezes, eu fazia de conta que as cartas eram de Steven.
E sempre derramava algumas lágrimas.
Capítulo 2
Elizabeth
— Vamos mesmo pra casa? — perguntou Emma de manhã, sonolenta, quando a luz entrou pela
janela, iluminando seu rostinho. Tirei-a da cama, peguei Bubba, seu ursinho e companheiro de todas
as horas, e fiz os dois se sentarem na cadeira mais próxima. Bubba não era simplesmente um ursinho
de pelúcia, era um ursinho-zumbi. Minha garotinha era um pouco diferente, e, depois de assistir ao
Hotel Transilvânia, cheio de zumbis, vampiros e múmias, ela decidiu que adorava coisas estranhas e
assustadoras.
— Vamos, sim — respondi, sorrindo ao fechar o sofá-cama. Não consegui dormir a noite toda e
fiquei arrumando nossas coisas.
Emma estava com um sorriso bobo no rosto, igualzinho ao do pai.
— Oba! — exclamou, contando a Bubba que íamos para casa.
Casa.
Sentia uma pontada no coração cada vez que ouvia essa palavra, mas continuei sorrindo. Aprendi
que tinha que sorrir na frente de Emma, porque ela acabava ficando triste quando percebia que eu
estava mal. Nesses momentos ela me dava os melhores beijos de esquimó, mas esse era o tipo de
responsabilidade que ela não precisava ter.
— Acho que vamos chegar a tempo de ver os fogos no telhado. Lembra quando fazíamos isso
junto com o papai? Lembra, lindinha? — perguntei.
Ela estreitou os olhos, tentando se lembrar. Como seria bom se nossa mente funcionasse como um
grande arquivo e pudéssemos simplesmente reviver nossos momentos favoritos a qualquer instante,
escolhendo-os num sistema bem-organizado.
— Não lembro — respondeu ela, abraçando Bubba.
Aquilo partiu meu coração.
Continuei sorrindo mesmo assim.
— Que tal pararmos no mercado e comprarmos picolés para tomar enquanto vemos os fogos?
— E salgadinho pro Bubba!
— Claro!
Ela sorriu e deu um gritinho, animada. Dessa vez, meu sorriso foi de verdade.
Eu a amava mais do que ela poderia imaginar. Se não fosse por ela, com certeza já teria me
rendido ao luto. Emma salvou minha alma.
Não me despedi da minha mãe porque ela não voltou para casa depois do jantar com o
aventureiro da vez. Logo que me mudei, eu telefonava, preocupada, quando ela demorava a chegar,
mas ela acabava gritando comigo, dizendo que era adulta e sabia o que estava fazendo.
Deixei um bilhete:
Indo pra casa.
Amamos você.
Até breve.
E&E
A viagem durou horas no meu carro velho, e ouvimos a trilha sonora de Frozen tantas vezes que
cheguei a pensar em cortar os pulsos. Emma ouviu um milhão de vezes cada música e ainda incluiu
seu toque pessoal nos versos. Sinceramente, gostei mais da versão dela.
Assim que ela dormiu, dei um descanso também para Frozen, e o carro finalmente ficou
silencioso. Apoiei minha mão no banco do carona, esperando que outra a envolvesse, mas isso não
aconteceu.
Estou bem, dizia a mim mesma, repetidamente. Estou muito bem.
Um dia, isso seria verdade.
Um dia, eu ficaria bem.
Na entrada da rodovia I-64, meu estômago embrulhou. Queria muito que existisse outro caminho
para chegar a Meadows Creek, mas esta era a única via de acesso à cidade. O movimento na estrada
era grande por causa do feriado, mas o asfalto novo tornava a rodovia, que antes era toda esburacada,
mais segura. Meus olhos se encheram de lágrimas quando me lembrei do momento em que ouvi a
notícia.
Acidente grave na I-64!
Caos!
Tumulto!
Feridos!
Mortos!
Steven.
Uma respiração de cada vez.
Continuei dirigindo e não permiti que as lágrimas caíssem. Forcei-me a permanecer inerte; assim
não sentiria nada. Caso contrário, acabaria desabando, e eu simplesmente não podia fazer isso. Olhei
pelo retrovisor e encontrei forças ao ver minha filha. Chegamos ao final da estrada e respirei fundo
novamente. Eu me concentrava em uma respiração de cada vez. Não conseguia ir além disso; tinha a
sensação de que poderia sufocar com o ar.
Uma placa de madeira branca e bem polida anunciava: “Bem-vindos a Meadows Creek”.
Emma tinha acordado e estava olhando pela janela.
— Mamãe?
— Oi, querida.
— Acha que papai vai saber que a gente se mudou? Será que ele vai saber onde deixar as plumas?
Quando Steven faleceu e nós nos mudamos para a casa da mamãe, apareceram plumas brancas no
jardim. Emma perguntou o que eram, e mamãe respondeu que eram pequenos sinais dos anjos,
demonstrando que eles estavam sempre por perto cuidando de nós.
Ela adorou a ideia e, cada vez que encontrava uma pluma, olhava para o céu, sorria e sussurrava:
“Eu também te amo, papai.” Depois, tirava uma foto com a pluma e a colocava na caixa “Papai &
Eu”.
— Tenho certeza de que ele sabe onde nos encontrar, minha querida.
— Sim — concordou Emma. — Ele sabe onde nos encontrar.
As árvores pareciam mais verdes do que eu lembrava, e as lojinhas no centro de Meadows Creek
estavam enfeitadas de vermelho, azul e branco para o feriado da Independência. Era tudo tão
familiar e, ao mesmo tempo, tão diferente. A bandeira americana da Srta. Frederick tremulava ao
vento enquanto ela colocava pétalas de rosas secas no vaso. Era possível sentir seu orgulho patriótico
ao vê-la ali, admirando sua casa.
Ficamos paradas no único sinal de trânsito da cidade por uns dez minutos, o que não fazia
nenhum sentido. Enquanto aguardávamos, pensei em todas as coisas que me lembravam de Steven.
De nós. Quando o sinal abriu, pisei no acelerador, querendo chegar logo em casa para afastar as
sombras do passado. Assim que o carro começou a descer a rua, minha visão periférica captou um
cachorro vindo em minha direção. Pisei no freio bem rápido, mas a lata-velha demorou a parar.
Quando finalmente freou, ouvi um latido alto.
Meu coração quase saiu pela boca. Fiquei paralisada; parecia incapaz de respirar novamente.
Estacionei o carro de qualquer jeito, enquanto Emma perguntava o que estava acontecendo, mas não
dava tempo de responder. Abri a porta do carro, precipitei-me em direção ao pobre cachorro e vi um
homem correndo na mesma direção. Ele me encarava com um olhar desesperado, praticamente me
forçando a enxergar a intensidade de seus olhos azuis acinzentados. A maioria dos olhos azuis
parece trazer consigo um sentimento caloroso e gentil, mas não os dele. Os dele eram intensos, assim
como sua própria postura. Fria, reservada. Em torno de suas íris, era possível ver o azul profundo em
meio às manchas prateadas e pretas, que tornavam seu olhar ainda mais impenetrável. Lembrava as
sombras no céu quando uma tempestade estava prestes a cair.
Esse olhar me era familiar. Será que eu o conhecia? Jurava que já o tinha visto em algum lugar.
Ele parecia amedrontado e furioso ao se aproximar do cachorro, que imaginei ser dele, parado no
chão. Estava com um grande fone de ouvido no pescoço, conectado a alguma coisa na mochila.
Usava roupas de ginástica. A camisa branca de manga comprida acentuava os músculos dos
braços, o short preto deixava as pernas grossas à mostra, e o suor escorria de sua testa. Imaginei que
estivesse levando o cachorro para correr e acabou perdendo a coleira, mas ele não estava de tênis.
Por que estava descalço?
Não importava. Será que o cachorro estava bem?
Eu deveria ter prestado mais atenção.
— Desculpe, eu não vi... — comecei a dizer, mas ele soltou um grunhido ríspido, como se minhas
palavras o ofendessem.
— Que droga! Você só pode estar de sacanagem... — berrou de volta.
Sua voz me fez estremecer. Ele pegou o cachorro nos braços como se fosse seu próprio filho. Nós
nos levantamos ao mesmo tempo. Então ele olhou ao redor, eu também.
— Deixa eu levar vocês ao veterinário — sugeri, estremecendo ao ouvir o cachorro ganir nos
braços do homem. Sabia que não deveria ficar nervosa com seu tom de voz, pois não se deve julgar
alguém numa situação de pânico. Ele não respondeu, mas percebi hesitação em seu olhar. O rosto
era emoldurado por uma barba grossa, escura e indomada; sua boca estava escondida em algum
lugar daquela selva. Eu só podia confiar na história que seus olhos contavam.
— Por favor — insisti. — É muito longe para ir a pé.
Ele assentiu num gesto quase imperceptível, abriu a porta do carona e entrou com o cachorro no
colo.
Corri para dentro do carro e comecei a dirigir.
— O que aconteceu? — perguntou Emma.
— Vamos levar esse cachorrinho ao veterinário, querida. Está tudo bem. — Eu realmente
esperava não estar mentindo.
Em vinte minutos, chegamos à clínica veterinária mais próxima, que ficava aberta vinte e quatro
horas, e o percurso não foi exatamente o que eu esperava.
— Vire à esquerda na Cobbler Street — mandou ele.
— A Harper Avenue vai ser mais rápida — discordei.
— Você não sabe o que está fazendo. Entre na Cobbler! — gritou, irritado.
Respirei fundo.
— Eu sei dirigir.
— Sabe mesmo? Porque acho que esse é o motivo de estarmos aqui.
Eu estava prestes a jogar aquele idiota para fora do carro, mas o ganido do cachorro me impediu.
— Já me desculpei.
— Isso não ajuda meu cachorro.
Idiota.
— A Cobbler é a próxima à direita — insistiu.
— A Harper é a segunda.
— Não entre na Harper.
Ah, não? Acho que vou pegar a Harper só para irritar esse cara. Quem ele pensa que é?
Virei na Harper.
— Não acredito que você pegou a droga da Harper! — reclamou ele.
Sua raiva me fez sorrir, até o momento em que vi as obras e a placa de “rua fechada”.
— Você é sempre burra mesmo?
— E você é sempre... sempre... sempre... — gaguejei porque, ao contrário dele, eu não era boa em
discutir com as pessoas. Normalmente, engolia tudo e acabava chorando como uma criança, porque
as palavras não se formavam na minha cabeça com a mesma velocidade em que as brigas
aconteciam. Eu era uma idiota que só conseguia responder a um insulto três dias depois. — Você é
sempre... sempre...
— Sempre o quê? Fala logo! Use palavras! — exclamou ele, zombando.
Girei o volante e fiz o retorno para pegar a Cobbler.
— Você é sempre um...
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