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Um Passo de Cada Vez

Um Passo de Cada Vez

Natália Gomes

5.0
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Leituras
1
Capítulo

Após uma audição desastrosa, Amélia se vê completamente debilitada e sem poder fazer o que acredita ser o mais importante na sua vida: Dançar balé. Lesionada e sem poder contar com a própria sorte, ela retorna a sua cidade natal e precisa lidar com a relação conturbada com sua mãe e a tensão existente no relacionamento dos seus pais. Na busca incansável pela perfeição, ela conhece Ethan Olsen, um jogador de futebol americano com um passado nada bom, e a partir disso, a vida deles se entrelaçam por caminhos inesperados, onde ambos tentam se reconstruir fisicamente e internamente. Porém, uma amizade por acaso pode se tornar uma paixão intensa e desafiadora, onde apesar de quebrados, eles buscam a cura. O que ainda não sabem é que o amor que irá nascer será a reconstrução um do outro.

Capítulo 1 De volta para casa

Por pouco eu não fui de encontro ao chão ¬- pela segunda vez naquela noite -. Eu mal conseguia ficar em pé e a minha teimosia fez com que o enfermeiro pacientemente, explicasse meu quadro pela terceira vez. Enquanto isso, o meu instrutor estava encostado no batente da porta, me olhando com muito desgosto. Eu queria que aquela carranca fosse de preocupação, mas claramente não era. Ele estava com raiva. Após alguns minutos olhando meu prontuário Ross acariciou a barba e deu as costas, saindo do pequeno consultório, levando com ele toda a arrogância e reprovação.

- Não posso deixar você continuar com as aulas...

Essa frase ecoou na minha mente, fazendo com algum ponto neural iniciasse uma dor de cabeça incômoda. Por mais gentil que o enfermeiro fosse, eu não estava preparada para ouvir aquilo. Não de novo. Não pela quarta vez em um ano. Não. Não e não.

O jovem rapaz que parecia ser apenas alguns anos mais velho do que eu, enfim terminou de fazer os curativos com calma. Eu tentei apagar as últimas horas da minha mente e fiquei observando uma parede branca com um quadro de avisos pendurado.

- Eu não posso ser suspensa. Não no último semestre. Eu dei a minha vida este ano. Minha carreira está em risco.

- Seu corpo todo está em risco, senhorita Rivera. Seus pés estão dois milímetros mais tortos do que na última vez que nos vimos. Você está com entorse e joanetes. Há bolhas em carne viva. A estrutura óssea diminuiu um centímetro. Precisamos ser claros. É hora de parar. Pelo menos esse semestre.

Eu senti minhas orelhas queimarem de tanta raiva, e embora eu não quisesse ser grossa com o enfermeiro, foi inevitável.

- Não é hora de parar, é hora de você fazer como da última vez e me liberar. Faltam só três meses para o semestre acabar, depois eu penso nisso tudo.

- Eu não posso fazer isso... Seria irresponsável da minha parte e não estou a fim de perder o emprego. Está afastada por um mês. Quando retornar para as aulas, quero que passe aqui antes para que eu possa examinar você novamente. Seus exames ficarão prontos amanhã, irei enviar por e-mail.

Eu apenas escutei a parte em que eu ficaria um mês afastada.

Só podia ser brincadeira.

- Não posso ficar um mês sem dançar! Eu vou ser massacrada quando eu voltar!

Ele pareceu não me ouvir. Eu desisti de gastar a minha energia e deixei com que o enfermeiro terminasse o trabalho. Ele enfaixou meus pés e me passou uma lista de remédios e cuidados diários para os ferimentos cicatrizarem. Quando voltei a ficar em pé, segurei o grunhido na minha garganta e decretei que as lágrimas não caíssem, eu não podia demonstrar que estava com uma dor pavorosamente assustadora. Eu nunca havia chegado naquele ponto. Minhas sapatilhas de balé estavam penduradas na minha mochila com sangue seco, como um lembrete bem grande de que eu havia arruinado a minha carreira e possivelmente, a de todos os outros.

- Pelo seu estado, eu deveria te suspender esse semestre. Um mês ainda é pouco... - Eu fechei os olhos com força e reprimi as minhas lágrimas e ele continuou a falar - Sinto muito... Vou te ajudar a ir até a cadeira de rodas. Não quero que você ande pelos próximos sete dias.

Minha cabeça girou, tudo só piorava.

- Sua mãe já está na recepção para te levar para casa... Tente relaxar, Amélia. O balé pode ser cruel demais as vezes. Não deixe seu sonho virar um pesadelo. Eu estou há pouco tempo na enfermaria da Julliard, e já vi muitas coisas ruins. Você parece uma boa menina, não quero ter que atender mais uma paciente com pulsos cortados, bulimia ou trombose. E muito pior, não quero decretar uma amputação por falta de circulação de sangue ou falência dos tendões.

O balé, de fato, era muito cruel.

Entretando, mais cruel do que a sensação de que meus pés estavam afundados em lavas, era o olhar da minha mãe enquanto me empurrava pelos corredores.

Eu morava no alojamento da Julliard, em um quarto dividido com mais duas meninas. Era tranquilo, embora a rivalidade ser absurda, estávamos sempre ocupadas na academia, aulas, treinos, corridas, nos exercícios de resistência ou no trabalho. Amber era um pouco mais nova e estava no primeiro ano de balé, eu só a via nos finais de semana quando limpávamos o quarto, e a Yanka era da minha turma. A competição interna e passivo agressiva não era nada sutil, mas diferente das outras bailarinas, Yanka não era maldosa ou desrespeitosa. Enquanto a maioria das meninas queriam matar umas às outras, Yanka não conversava e não discutia quando era provocada. Eu gostava dela por isso, por ser parecida comigo e tentar manter a sanidade em um mundo que massacra meninas desde cedo.

Dificilmente escapávamos de madrugada para alguma festa. Depois dos primeiros semestres na Julliard, toda aquela euforia para os finais de semana não existia mais. Amber ainda era novata e sempre saía aos sábados, Yanka e eu, por outro lado, aproveitámos para colocar o sono em dia.

¬ - Preciso pegar as minhas coisas no meu quarto - falei, sendo empurrada de forma determinada para a saída do prédio. A cadeira de rodas não era das mais novas, eu podia ouvir o barulho da rodinha dianteira esquerda um pouco mais agudo do que o normal.

- Não precisa. Vamos voltar para o Kansas.

Poucas palavras, rigidez. Essa era a minha mãe. A aclamada e admirada Eleanor Rivera. A estrela da Julliard nos anos noventa. A melhor bailarina que a Julliard criou. Linda, delicada, habilidosa e impecável. Sempre que a minha mãe aparecia na faculdade ela ficava cercada de pessoas e todos a bajulavam, pediam conselhos e dicas, e fazia parecer que era uma vergonha eu ser filha dela, era uma vergonha ser comparada e sempre estar bem abaixo da régua inalcançável da minha mãe. E ela sempre esfregava isso sem esforço algum. Eleanor deixava claro que eu era imperfeita, e que precisava ser lapidada. Mesmo que ser lapidada significasse ir além dos limites do meu corpo.

Um táxi estava a nossa espera. O homem de idade avançada logo notou a cadeira de rodas e se propôs a me ajudar, já que a minha mãe simplesmente entrou no carro e se sentou no banco de trás. Eu fiquei em pé e ele abriu a porta para mim, olhando para baixo. Eu havia esquecido que estava descalça, e parecia que uma bomba de soda cáustica havia explodido do comprimento dos meus tornozelos as pontas dos meus dedos. O taxista pareceu se compadecer comigo, mas não tardou em seguir viagem.

Durante o trajeto, o motorista deixou o volume do som bem baixo, não era difícil perceber o clima desconfortável. Um temporal estava se formando e parecia que eu podia ouvir os pensamentos da minha mãe. Eu era uma adulta de vinte e três anos, me virava há mais de dois anos sozinha, mas quando eu estava com ela, eu me sentia um monte de lixo.

- Eu nunca fiquei tão envergonhada na minha vida - ela, por fim, soltou o que tanto queria falar - Meu Deus, Amelia! O que foi aquilo? Depois de todo trabalho que eu dediquei a você! Depois de todo dinheiro que eu investi! Tudo o que eu e seu pai tínhamos foi para essa maldita faculdade, e é assim que você retribui? Faltando meses para o final do seu curso? Você quer mesmo me ver morando em uma casinha minúscula para sempre, não é?

Eu tinha muitas coisas para falar naquele momento, mas não o fiz. Se eu dissesse algo, eu iria chorar. E eu não era fraca.

O taxista me olhou brevemente pelo retrovisor e eu abaixei a cabeça.

- Vamos ter duas horas de congestionamento até o aeroporto, senhoritas.

Cruzei o cenho, pois pensei que iríamos passar o resto da noite em algum hotel, mas a minha mãe já estava com as passagens compradas para desembarcar no Missouri. Era muito mais barato voar para o Missouri e depois pegar um táxi para a cidade que morávamos no Kansas do que voar direto para lá. Talvez horas de viagem me distraíssem, ou talvez eu passasse cada segundo me lembrando que em apenas um dia eu possivelmente havia acabado com a minha carreira, com as expectativas da minha mãe e estava voltando para a minha cidade natal.

- Esse era para ser o dia da sua vida, Amelia! Você entende o que você fez?

Eu entendia perfeitamente o que eu tinha feito. Meus pés me lembravam a cada segundo e até as escaras secarem completamente pela extensão do meu calcanhar e calcário, eu iria me lembrar do momento mais ridículo da minha vida onde eu coloquei tudo a perder.

Pelas próximas horas, eu consegui fingir indiferença a todos os ataques verbais proferidos pela minha mãe.

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