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DE TODAS AS DORES, O AMOR

DE TODAS AS DORES, O AMOR

Reneh Torres

5.0
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5
Capítulo

Esta é a história de Luca, que desde a sua infância, anseia conhecer a si mesma. Mas não apenas isto: Luca procura o amor entre todos os amores tortos e os “não-amores” Ama, ainda criança; ama na juventude; ama na idade adulta... Ama sem saber o que é amor... Aprende a amar amando. O drama ambienta-se em cidades fictícias do Sul do Brasil, e tem algumas escapadelas para São Paulo e Nova Iorque, acompanhando a vida da protagonista, dos seus cinco anos até aproximadamente os trinta, entre os anos 70 e 2000, e pincela com delicadeza e emoção alguns acontecimentos históricos e culturais do Brasil e do mundo. Por esses lugares e caminhos, Luca busca curar-se de todas as feridas provocadas pela família, por namoradas e estranhos, procurando reconhecer sua identidade sexual e de gênero. Mais do que querer aceitação dos outros, precisa aceitar a pessoa que é. Antes disso, no entanto, vai ter de saber quem ela é, de fato. Pelos caminhos dolorosos da homofobia, da transfobia, do abandono, da traição, da rejeição, Luca esforça-se para recuperar-se dos tombos da vida, e acredita que, em algum lugar, resta o amor. E que o amor é a sua redenção. Esta pode ser uma história real cheia de ficção. Ou será ficção cheia de histórias reais?

Capítulo 1 PRIMEIRO CAPÍTULO

O ar tremia sobre o calçamento de pedra ferro. O mormaço daquela tarde de janeiro colava a cabeleira castanha de Luca à testa. A criança afastou os fios de cabelo para um lado e passou a mãozinha direita contra a nuca. Tirou um pouco do suor e secou a mão na camiseta branca encardida, enquanto a mãozinha esquerda segurava, com cuidado, um besouro recolhido há pouco em uma estremosa cor-de-rosa à beira da calçada.

O sábado sonolento espreguiçava-se pela rua que findava à beira de um morro. A única alma à vista era a de Luca, que se acocorara no meio-fio para soltar o besouro preto, de barriguinha amarela, atrás de uma fileira de formigas cortadeiras. De repente, Luca ergueu seus olhinhos castanhos em direção a um enorme caminhão que se aproximava. O veículo vinha gemendo sobre pneus velhos e rodas enferrujadas. Luca ergueu-se e, fazendo uma careta, pôs a mão acima dos olhos para proteger-se da luz excessiva do sol.

Acompanhando o percurso do caminhão azul, viu-o estacionar em frente a uma casa de dois pisos ao pé do morro. O motorista desceu, puxando as calças; deu meia-volta e ajudou um homem jovem a sair pelo lado do carona, visto que a porta só abria pelo lado de fora. Logo atrás chegou um carro, com uma mulher dirigindo, acompanhada de três crianças. Já na carroceria do caminhão, o motorista começou a alcançar pequenos objetos para os outros: badulaques, panelas, roupas, eletrodomésticos. Havia muita coisa para descarregar. Coisas grandes: geladeira, roupeiros, camas, mesa, cadeiras, sofá... Luca sentou-se à sombra de um cinamomo e ficou a observar a mudança. Subitamente, tomou-se de entusiasmo e foi correndo, saltitante em suas perninhas compridas e finas, contar a novidade à mãe.

Os três irmãos de Luca e sua mãe espremeram-se na janela da sala para espionar aquela gente nova chegando na rua. Mas Luca não se contentou em olhar dali, e voltou para a calçada, espiando o vaivém entre o caminhão e a casa. Olhos semicerrados, juntou as duas mãozinhas contra a boca, como se fizesse uma oração. Riu-se, de contentamento, dando pulinhos. Ia ter novos amiguinhos para brincar.

A família de Luca interessou-se por pouco tempo. “Ah, sim, gente nova na casa grande. Que bom.”, e só. Mas para a criança era um acontecimento, uma festa. Ela divertiu-se sozinha, vendo aquele povo ocupado em descarregar coisas. Sua mãe voltou para o ferro de passar roupa. Os irmãos retornaram aos seus gibis, bonecas e bonequinhos de índios e cowboys.

O caminhão partiu. Caiu a noite. Luca esperou um pouco mais, na esperança de que algum dos vizinhos novos aparecesse à rua; no entanto, desapontou-se ao ver que apenas o homem surgiu para fechar o portão e apagar a luz da garagem.

— Vem, Luca, pra dentro! Está na hora da janta! A mãe já vai servir teu prato! — gritou sua mãe da vigia da porta.

— Já vou! — respondeu, sem se mexer, no entanto.

— Olha que o lobisomem vai te pegar! — sua mãe respondeu, com voz cômica.

Luca riu, dando de ombros. Não tinha medo dessas bobagens, ao contrário do irmão, que tremia todo e desatava a chorar quando a mãe o ameaçava gritando: “Olha o lobisomem!”. Apesar disso, obedeceu, largando as pedrinhas que tinha separado para fazer uma fortaleza para o besouro; como esse acabara indo embora com as formigas, sabia que não precisaria mais daquelas. Amanhã pegaria outro, pensou Luca, esfregando as mãos no calçãozinho laranja, já mais encardido que a calçada.

Luca encheu bem a barriguinha com um mingau de aveia, depois de tomar banho numa bacia de alumínio. Roubou um dos gibis do irmão “pra ver as figurinhas”, como gostava de dizer, pois não sabia ler direito, ainda. Seu rostinho liso e iluminado de cinco anos virou-se agradecido para a mãe. Ela sorriu. Despediram-se. Luca foi deitar-se. Queria dormir logo e sonhar. Mas o sono não vinha. Se dormisse, o tempo passaria rápido, porém não conseguia. Quase a noite toda ficara imaginando a idade das crianças novas e a carinha delas. Tinham dois meninos, grandinhos, talvez perto da idade das suas irmãs e do seu irmão. E havia uma menina. Uma menina de cabelos negros e longos; “maiorzinha que eu”, imaginou Luca. Aí soltou um enorme bocejo, parecendo engolir os últimos fios de claridade que lutavam para entrar pela beira da cortina floreada do seu quarto. Antes de pegar, finalmente, no sono, perguntou-se: “A mãe esqueceu a luz da sala acesa?”, respondendo em seguida: “Ela deve ter dormido na frente da... uaaah... tevê...”. E não viu mais nada.

Dona Lola levou um susto quando sentiu os braços de Luca rodearem suas pernas. Ela estava amassando pão, cedinho, ainda, da manhã, e nunca vira a criança levantar-se antes dos irmãos.

— Mas o que é isso, filhote? — riu. Passou as mãos morenas pelos cabelos desgrenhados de Luca. — A mãe nunca viu você se levantar cedo... Senta aí — ordenou, apontando para a cadeira junto à mesa —, a mãe vai fazer tua mamadeira.

— Tá. — Sentou-se e juntou bem as perninhas, pousando as mãos nos joelhos e balançando os pezinhos.

A casa simples, de madeira, pintada com cal branca deixava-se banhar toda de sol pela manhã. Era fresquinha, apesar disso. As janelas grandes, sem vidraças, acolhiam o ar novo e gostoso do dia que começava. No inverno não era bom. Era preciso cobrir-se com uma montanha de acolchoados e repousar os pés, em meias grossas, contra uma garrafa com água quente que Dona Lola preparava para cada filho.

Depois de tomar sua saborosa mamadeira de café com leite e soltar um satisfeito “ahhh!”, fazendo a mãe rir e balançar a cabeça, Luca lavou o rosto e escovou os dentes. Olhou-se no espelho e fez uma cara de espanto: “Meu Deus!”, pensou, parecendo alguém que se lembrara de algo muito importante. E para Luca era, mesmo, importante. Tinha de correr. Tinha de ver se os vizinhos novos já estavam brincando na rua. Pediu para a mãe tirar o seu pijama e escolheu um conjuntinho de regata e calção azul, de algodão, e se foi para a rua, bracinhos abanando, jogados para trás, como asas de um passarinho em fuga.

Luca parou na calçada, olhou para a casa dos vizinhos novos. As janelas estavam abertas. Na casa ao lado morava sua melhor amiga, Vivi. Adorava Vivi. Ela tinha seis anos, era divertida e risonha. Gostavam de brincar de mercadinho, vendendo coisas. Gostavam de comer fruta direto do pé — na casa de Vivi havia um enorme pomar. E gostavam de fazer bolo de lama. Então, não vendo nenhuma das crianças novas, Luca achou melhor não perder tempo e ir logo brincar com Vivi, pois estava um dia bom para vender bolinhos de lama.

Atravessando a rua, caminhou devagar em direção à casa de Vivi. De onde estava não podia enxergar para o pátio; havia uma cerca de arame farpado coberta de plantas trepadeiras que se esparramavam sobre o chão batido. Chegou ao portão e parou, de súbito. Viu que sua amiga estava acocorada junto à outra menina, ambas misturando terra com água em pequenas vasilhas. Luca juntou as mãos, como costumava fazer sempre, encostando-as nos lábios. Sentiu uma coisa nova, que não sabia o nome: era ciúme. Ciúme da amiga. Fechou a cara. Já ia embora, quando a menina estranha, que estava de costas, se levantou, virando-se e indo ao seu encontro. Vivi também se levantou e sorriu para Luca. A outra menina sorriu, igualmente. O coração de Luca saltou. Deu pulos pelo peito e o pescoço. Seu rosto ficou vermelho, quase explodindo. E Luca também não sabia o que era aquela sensação. Era a segunda coisa nova que experimentava no dia. “Meu Deus!”, pensou, de novo.

— Oi, Luca! Essa é a Mirela! Ela se mudou aqui para o lado.

— Oi — disse a menina morena de longos cabelos negros e lisos. Seus olhos de jabuticaba pousaram nos de Luca.

Sem conseguir se mexer, nem sequer um dedinho, e tentando firmar as pernas que tremiam, Luca não disse uma palavra. Depois de longos segundos, deixou os braços caírem ao longo do corpo.

— Luca, vem! — Vivi fez um sinal com o braço.

Luca caminhou sem sentir o chão, sem perceber as sombras do pomar, sem respirar o cheiro das frutas e sem ouvir o canto dos passarinhos. Olhava a boca de Vivi tagarelando, tagarelando, mas não ouvia som algum. Tudo que Luca ouvia era a voz de Mirela, tudo que sentia era o perfume de Mirela, tudo que percebia eram os olhos de Mirela. Pensou: “Como ela é linda...”. E depois disso, depois daquela manhã, nunca mais o coração de Luca bateu direito.

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