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Ser Humano: Contos sobre o que nos faz humanos

Ser Humano: Contos sobre o que nos faz humanos

Ariel Pires

5.0
Comentário(s)
172
Leituras
1
Capítulo

Os contos contidos neste exemplar são situações bem comuns a qualquer um de nós. Nos momentos felizes e tristes, nos altos e baixos, no bom e mau humor, nos sentimentos reprimidos e/ou livre expressados. Contos para qualquer fase da vida, independente do momento. A ficção em contato com o real. A arte imitando a vida em todas as suas fases e nuances. Em “Ser Humano: Contos sobre o que nos faz humanos” acompanhamos as histórias de cinco mulheres de diferentes idades e fases da vida. Cada uma delas encarando suas lutas diárias e dramas rotineiros pertinentes ao universo feminino e em seu processo de autoconhecimento, amadurecimento e desenvolvimento pessoal, tão caros às mulheres nestes tempos corridos. Que esses contos possam lhe causar uma certa identificação em tudo aquilo que nos torna plenamente humanos.

Capítulo 1 Esther

Mensagem da autora

Queridos leitores, essa obra literária é apenas uma ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais ou lugares é mera coincidência. A classificação indicativa dessa obra é recomendada para maiores de 18 anos. Espero muito que vocês gostem, porque ela foi escrita com muito carinho e dedicação. Uma ótima leitura a todos!

P.S: A história poderá conter situações que podem gerar gatilhos mentais. Leia devagar e a seu tempo.

_____________________________________________________________________________________________________________________________________________

Esther foi criada por seus pais desde sempre, de forma rígida, um pouco autoritária e sob um discurso pautado pelos princípios do cristianismo, já que sua família era muito apegada à vida eclesiástica, cumprindo todos os ritos com extrema rigidez. Toda a infância dela se resumiu aos seus pais obrigando-a ou forçando-a a participar dos cultos e eventos até a sua adolescência, o que gerou uma certa raiva e rebeldia de Esther nesta fase da vida e discussões sérias na família.

Um dia, quando estava participando de uma reunião com o grupo, Esther repara em um garoto sentado bem ao seu lado. Ele era familiar, era frequente em todos os eventos e ela não podia deixar de notá-lo. Até que ele vira o rosto na direção dela e, na mesma hora e bem rápida, ela vira para frente, fingindo que estava prestando atenção no homem engravatado e bem alinhado falando sobre os próximos eventos que ocorreriam na igreja e que demandaria apoio de todos os membros para que tudo funcionasse da melhor maneira possível. Quando finalmente, a reunião chegou ao fim e todos foram dispensados, o garoto se aproxima de Esther. Ela para diante dele, arregala levemente os olhos e o olha de forma a não esboçar reação. Ela não sabia como agir naquele momento e na sua cabeça começa a fervilhar de informações sobre como deveria iniciar uma conversa com ele. Até que ele toma a iniciativa:

- Oi! Meu nome é Daniel! Qual é o seu?

- E-E- Esther! - ela responde gaguejando.

- Você já faz parte daqui? Nunca tinha reparado em você!

- Meus pais sempre me trazem… q- quer dizer, eu sempre estive aqui!

- Que bom! Aí, você já foi no nosso grupo de estudos sobre a Bíblia?

- Não! Como é que é isso? - Esther sorri com os olhos.

- A gente estuda e debate sobre algum versículo ou passagem da Bíblia. É bem legal porque a gente tira muitas conclusões e sempre aprende algo novo da Palavra de Deus!

Depois desse dia, ela passou a frequentar as reuniões do grupo. Era algo que no início ela até ficou animada e empolgada, mas com o tempo começou a sentir que aquilo não era para ela. Ela começou aos poucos a se distanciar dos jovens daquele grupo, aquilo havia se tornado algo maçante, como se ela não se encaixasse naquele local e que estava ali apenas para cumprir tabela, já que não se sentia à vontade para falar e debater sobre os assuntos, já que ela não era muito adepta aos versículos e ensinamentos bíblicos.

Desde que foi alfabetizada, seus pais a obrigavam a ler a Bíblia, e ao final, perguntavam o que ela tinha entendido da passagem. Quando ela falava, seu pai sempre a interrompia, dando a Esther uma sensação de que ela era incapaz de entender o que tinha lido. Até que ela foi crescendo, continuou na sua árdua tarefa diária e deixou de falar o que pensava, já que sabia que seu pai sempre falaria algo para ela em tom prepotente, como quem estivesse dando sermão sobre o “certo” e o “errado” e como ela sendo uma adolescente cristã deveria se portar. À sua mãe, cabia a tarefa de “moldá-la” conforme os padrões da igreja exigiam, saias longas ou abaixo do joelho, camisetas e/ou blusas longas que cobrissem o seu corpo, além de replicar o discurso de que ela tinha que ser uma “mulher cristã, dona do lar, submissa e disponível ao marido sob todas as circunstâncias”, algo que era muito pregado pelos líderes e pastores da igreja que frequentavam como uma regra que deveria ser cumprida à risca, sem questionamentos.

Aquilo para Esther soava como um pesadelo. Algo que a aterrorizava, que a atormentava, já que, aos seus 17 anos, já estava começando a traçar os seus projetos pessoais. Queria estudar, ter sua própria casa, nem que fosse pra morar sozinha, queria trabalhar como designer, era muito ligada nas tendências, ainda que, na cabeça de sua mãe, a moda era uma das artimanhas do demônio para que as mulheres seduzissem os homens. Quando Esther tentava expressar sua opinião contrária ao pensamento de sua mãe, ela era hostilizada de forma que seu pai, não raras vezes, utilizava-se do recurso “apanhar para aprender”, já que nas pregações era mencionado a importância do “uso da vara”, na tarefa de disciplinar e educar os filhos. Esther a cada dia ficava mais insegura, tinha mais medo de se expressar e de ser contrária aos outros e ainda reprimia suas emoções, na tentativa de evitar que seus pais se exaltassem ou perdessem a paciência.

Mas nem tudo era ruim pra Esther. Um dia, Daniel, o jovem que a convidou para o grupo de estudos a encontra novamente após o culto:

- Porque você parou de ir aos encontros, Esther? Estamos tendo debates muito bons sobre o Sermão da Montanha!

- Eu… não… sabia o que dizer…! - ela baixa levemente a cabeça em direção ao chão - Vocês me pediam pra falar e eu… não… - ela interrompe a frase. Daniel percebe a timidez dela:

- Era só você ter nos dito que não queria falar! Porque não me disse? A gente não ia forçar você! - Esther levanta a cabeça e olha suavemente para ele. Não profere nenhuma palavra e Daniel pergunta:

- Quer pensar um pouco sobre isso? Depois você me dá a resposta se pretende continuar ou não - ele esboça um leve sorriso e olha para ela. Esther continua a olhá-lo, sem esboçar reação. Estava apática naquele exato momento, mas dentro de si, emoções fervilhavam.

Ela precisava ir para casa, entrar no seu quarto e deitar de forma displicente na sua cama, seu porto seguro. Logo depois daquele diálogo com Daniel, se lançou para dentro do carro dos seus pais e partiu. Chegou ao seu quarto, tirou aquelas roupas pesadas e desconfortáveis, colocou um pijama leve e deitou-se. Fechou os olhos por alguns minutos. Se sentia estranha, não sabia como. Veio a imagem de Daniel na sua cabeça, os debates entre eles, os momentos de pavor que experimentou quando a pediram para falar sobre o estudo, tudo para ela era intensamente desconfortável. Até lembrar disso era difícil.

Ela acabou pegando no sono. Acordou só com o som estridente da notificação de mensagem do seu celular. Sua melhor amiga e confidente desde a época de escola, Maria Eduarda, conhecida como Madu, pergunta:

Madu: Fala aí! Como você está? Não manda mais mensagem pra mim, tá sumida, o que houve?

Esther: Estava na igreja. Não te respondi mais cedo porque meus pais não me deixam usar celular no culto!

Madu: Aff! Até hoje seus pais insistem nisso? Eles não veem que você já tem 17 anos?

Esther: Acho que eles nunca vão me deixar em paz! (emojis chorando)

Madu: Porque você não vem aqui em casa? Tô com saudades de você, miga! Podemos pensar sobre o seu plano de fuga da casa dos seus pais! O que acha?

Esther: Eu super topo!

Madu: Te espero aqui, miga! Até daqui a pouco!

Esther: Vou me arrumar rapidinho e logo logo estarei aí!

Madu: (emojis felizes e ok)

E ela rapidamente se arruma: uma calça jeans destroyed básica, uma blusa roxa cavada atrás e tênis converse all star pretos surrados. Passa pela sala onde seus pais estão e avisa que vai passar na casa da Madu. Eles permitem, ela se despede deles e parte de bicicleta até seu destino. Logo após sua saída, o pai de Esther se aproxima da esposa:

- Eu me preocupo demais com essa amizade! Essa amiga dela não é flor que se cheire! - Ele diz em tom de reprovação.

- Eu também não aprovo muito essa amizade, mas o que vamos fazer? Não podemos controlá-la o tempo todo! - A mãe complementa.

- Eu queria tanto que ela se conectasse com os jovens da igreja! Queria tanto que ela fizesse amizades por lá! Não entendo essa resistência dela em interagir com os outros! - o pai fala em tom preocupado.

- Temos que fazer uma campanha em prol da vida da nossa filha! Pra que ela não se perca e não ceda às tentações desse mundo perverso! - a mãe de Esther diz em um tom prepotente.

- Vamos mandar uma mensagem ao nosso líder! Vamos falar a ele toda a nossa preocupação com a nossa filha!

E assim o fazem. Na mesma hora, contactam aquele que para eles era uma autoridade, um líder e mentor da vida secular e espiritual da família, cujo nome era Oséias. Como sabiam que ele tinha muita demanda e demorava para responder mensagens de texto, resolvem ligar. Não demora muito e ele atende o telefone:

- Em que posso ajudar? Líder Oséias falando…

- Aqui quem fala é o irmão Pedro, pai da Esther…

- Ah, sim! Olá, irmão Pedro! O que está acontecendo?

- É a nossa filha… ela precisa de um acompanhamento espiritual… ela está se envolvendo com as pessoas erradas e eu temo que ela se desvie! Por favor, venha aqui em casa para conversarmos! - O pai diz em tom de clemência.

- Tudo bem, já que você exige… eu ia me reunir com o meu grupo do círculo de oração, mas eu sinto algo muito forte me dizendo que eu preciso ir até vocês! Acredito que seja a voz do Altíssimo! - ele diz em um tom profético e autoritário.

- Por favor, líder Oséias! Precisamos muito da sua orientação sobre como vamos lidar com a resistência e a indiferença da nossa filha às coisas de Deus! - o pai de Esther diz em tom de desespero.

Enquanto isso, Esther continua no seu caminho até à casa de Madu. Ao mesmo tempo que pedala, dá uma leve cantarolada enquanto sente a leve brisa suave tocar seu corpo e seu rosto, fazendo-a esquecer um pouco do desconforto e do sentimento de estranheza que tinha vivido naquele dia. Finalmente, ela chega ao seu destino. Desce da bicicleta e a acorrenta em um poste próximo. Se aproxima da entrada, toca a campainha. A mãe de Madu, dona Fátima, a atende e a recepciona:

- Olá, Esther! Seja bem vinda! Tudo bem com você? A Madu disse que você viria! - diz esboçando um belo sorriso no rosto.

- Estou muito bem, dona Fátima! Obrigada por perguntar e por se importar tanto assim comigo! - Esther esboça um leve sorriso e se alegra por estar ali.

- A Madu está lá em cima no quarto dela, ansiosa pra te ver! Se precisarem de algo, estarei aqui embaixo, é só me pedir! Vou deixar vocês à vontade e com toda a privacidade para colocarem todas as fofocas em dia! - ela dá uma leve risada.

- Muito obrigada, dona Fátima! - Esther responde, e logo após sobe as escadas. Fica diante da porta de Madu e bate. Ela abre e se anima em ver a melhor amiga, dá um leve gritinho e a abraça bem forte. Esther, embora gostasse dessa forma de demonstrar carinho da amiga, ficava meio sem reação, não devolvia o abraço, mas sabia o quanto Madu era afetuosa, às vezes, até demonstrava isso de formas bem exageradas.

Madu era o oposto de Esther. Desde sempre, foi criada com bastante liberdade por sua mãe, que estava divorciada há mais de 10 anos. Depois de um casamento conturbado e problemático, entendeu que teria que criar a filha de maneira que ela pudesse fazer suas próprias escolhas, traçar seu próprio caminho, que ela não precisaria depender de outras pessoas para alcançar seus sonhos e sua felicidade. E assim Madu cresceu. Esther ficava fascinada o quanto sua amiga podia fazer tantas coisas sem sua mãe demonstrar desprezo, ou julgá-la, ou condená-la por achar que estava fazendo algo reprovável.

“Se eu fizer algo assim, minha mãe é capaz de me colocar em cárcere privado dentro da igreja com um grupo de ‘impuras’ como eu”, ela pensava.

E assim elas começaram a conversar. Esther começou a contar sobre todo o desconforto que havia vivenciado pela manhã. Madu sabia como ninguém o quanto a questão de “ir à igreja à força” incomodava Esther e a deixava ainda mais confusa sobre quem ela realmente era, sobre tudo o que sentia, e ela era a pessoa que se disponibilizava e se interessava em ouví-la. Nos momentos mais difíceis e caóticos de Esther, ela tornou-se seu porto seguro. Podia contar a ela sobre os mais diversos temas, que eram “assuntos proibidos” e/ou tabus para os seus pais, pertinentes à realidade que ambas vivenciavam naquele momento da vida. Diferente da mentalidade conservadora de seus pais, Esther sabia que a amiga teria opiniões divergentes e a incentivaria a viver e a romper com a mentalidade pela qual ela foi criada desde a infância. E Madu não só a obrigava a sair do “lugar comum” como também era experiente na maioria desses assuntos.

- Esther, você precisa se abrir mais! Precisa sair, viver novas experiências, novas oportunidades! - Madu diz de forma enfática e empolgada - Até quando você vai permitir que seus pais controlem a sua vida desse jeito?

- Não é tão fácil assim, amiga… - Esther diz de forma apática - Você não os conhece e não convive com eles pra saber como me tratam!

- Nem preciso disso, amiga! - Madu responde com um tom provocador e debochado - Eu só ia mandá-los para aquele lugar e ainda ia esfregar umas verdades na cara deles! - ela dá uma risada maldosa - Era só começarem a me tratar desse jeito!

- Que tipo de “verdades” seriam essas? - Esther pergunta dando uma leve risada e esboçando curiosidade.

- Eu ia chegar pra sua mãe e falar: “Dona Rute, cê tá muito irritadinha e estressada! Acho que seu marido não tá dando conta! Fala pra ele se ocupar menos na igreja e dar mais atenção pra você em casa!”, isso se eu estivesse mais “educada” - ela ri de forma debochada depois dessa fala.

- E como você falaria se não fosse educada? - pergunta Esther com um semblante surpreso pela ousadia e irreverência da amiga.

- Eu falaria: “Dona Rute, para de me encher o saco e vai transar com o seu marido, vai! E você, seu Pedro, trate de fazer com uma certa frequência pra ela parar de falar merda!” - Madu começa a rir alto, e Esther solta uma risada bem envergonhada e ao mesmo tempo sem acreditar no que havia acabado de ouvir.

- Meu Deus, Madu! Sério que você falaria assim? - Esther pergunta ainda descrente.

- Com certeza! Você me conhece e sabe que eu falo mesmo quando me irritam! - Ela se senta de forma displicente na cama - Afinal, você não quer ser uma dona de casa infeliz e frustrada sexualmente como a sua mãe, quer?

- Credo! - Esther faz uma expressão de nojo - Porque me perguntou isso? - Nesse momento, Madu se levanta aproximando-se de Esther de forma a ficar bem próxima ao seu rosto com os seus narizes quase se encostando. Ela passa a mão direita pelos cabelos de Esther de cima a baixo, percorrendo depois o seu rosto delicadamente até o maxilar. Esther sente um misto de estranheza e uma leve sensação prazerosa ao sentir a unha comprida do polegar de sua amiga passar pelo seu rosto.

- Porque isso seria um desperdício imenso! - responde Madu com uma entonação diferente, levemente embargada em um tom levemente sedutor, com o olhar fixo para Esther como se estivesse tentando alguma investida, mas que não havia sido percebida e nem entendida por ela. Esther permanece com um semblante de dúvida, enrijecida na mesma posição, enquanto Madu a olha nos olhos de forma penetrante como se quisesse tirar alguma coisa das profundezas de seu ser.

Até que Madu finalmente se afasta com uma frustração perceptível em seu rosto e se senta novamente na cama. Esther permanece na mesma posição, atônita, sem entender o que havia acabado de acontecer ali. Iria levar um tempo até ela digerir tudo aquilo. Madu está olhando para o chão, com as pernas arreganhadas como se estivesse tentando dar um tempo para Esther, achando que ela entenderia a mensagem que havia lhe passado naquele exato momento. Alguns minutos se passaram e elas continuaram em silêncio. Até que Madu rompe o silêncio.

- Eu só queria que você se permitisse mais, amiga! Sabe o quanto eu me preocupo com você! - Esther finalmente sai da posição em que estava e senta ao lado de Madu:

- Você sabe o quanto eu só quero ter uma vida normal! - Esther volta ao seu semblante apático e distante, proferindo essa frase com uma frustração evidente em seu tom de voz.

- Sai dessa, amiga! Sabe o quanto eu quero que você seja feliz nessa vida! - Madu a abraça de forma comovente e sensível.

Ambas descem as escadas e encontram-se com Dona Fátima diante da TV assistindo sua série favorita. Madu anuncia que Esther já está de saída e ela se levanta do sofá na mesma hora para ir até a porta e se despedir. Esther desacorrenta a bicicleta, sobe sobre ela, dá um leve aceno de longe e parte. Após retribuir o gesto, Madu e sua mãe entram novamente, Dona Fátima percebe o semblante entristecido da filha e pergunta o que houve sem obter resposta. Madu sobe as escadas, entra no seu quarto, se joga na cama e fica pensativa e reflexiva. Algum tempo se passa e ela chega a balbuciar em tom baixinho:

- Ah, amiga! Quando é que você finalmente vai perceber isso? Será que algum dia você vai entender? Tudo por causa daqueles seus pais retrógrados e “quadradões”! - Ela acomoda a cabeça no travesseiro, fecha os olhos e passa o resto da noite lá.

Esther continua seu percurso, ainda tentando digerir o que havia acontecido entre ela e Madu. Enquanto pedala, pensamentos começam a tomar conta de sua mente, ela ainda tenta entender o que sentiu naquele momento. Tantos sentimentos… confusos… estranhos… novos… muitos ela ainda não sabia descrever e nem se lembrar se havia sentido algum deles antes. Talvez tivesse sentido, mas não com aquela intensidade… como uma torneira que estava fechada há anos e havia sido aberta de forma abrupta, jorrando água, de forma regrada no início, mas depois a liberando com um fluxo forte e ininterrupto, já que estava há anos retida e sem escoar para fora dos canos.

Até que ela finalmente chega à casa e se depara com uma cena não muito agradável. Se depara com o líder Oséias saindo pela porta principal. Ele se despede dos pais dela e a encontra perto do portão.

- Olá, Esther! Como vai você? - Ele a olha de cima a baixo como se a estivesse julgando por conta das roupas que usava.

- O- o - oi, líder Oséias! - Esther se espanta com o olhar de reprovação dele.

- Estávamos falando sobre você! Seus pais estão um pouco preocupados com a sua postura e o seu comportamento na igreja… - Ele responde enquanto Esther fica sem reação, não sabia como responder - Mas, não se preocupe! Tenho certeza de que, a partir de hoje, tudo na sua vida será diferente! - Esther se assusta com essa fala.

- Enfim, preciso entrar agora antes que fique tarde! - Esther muda o foco do assunto.

- Tudo bem, sem problemas! Já estou de partida também! - ele se despede e parte.

Esther caminha cautelosamente até a porta. A abre e encontra os seus pais sentados diante dela na sala de estar como se estivessem prontos para um longo sermão.

- Precisamos falar com você, Esther! - Seu pai inicia a conversa - Precisamos muito que você nos escute!

- O que você foi fazer na casa da Madu? - Sua mãe pergunta em tom de reprovação - Você sabe perfeitamente o que a gente pensa sobre ela!

- Eu queria conversar com ela, revê-la… estava com saudades! - diz Esther em um tom indiferente.

- Filha, eu sei que você está em uma fase complicada na vida, mas precisamos que você entenda… a Madu não compartilha dos mesmos princípios que nós! - O pai dela fala em tom calmo, tentando mediar a situação. Mas a mãe retruca de forma autoritária e ríspida:

- Fase difícil uma ova! - ela diz olhando para o marido como que reprovando a fala dele - Ela sabe perfeitamente que essa menina não presta, e que deve se afastar dela se quiser se tornar uma mulher decente, valorizada e íntegra! - Ela fala com um tom moralista evidente em sua voz e no seu gestual.

- Amor, vamos acalmar os nossos ânimos e baixar o tom de voz… - ele tenta apaziguar a situação, novamente, sem sucesso.

- Eu já cansei de falar manso com a Esther, de nada adiantou, ela continua a manter a amizade com essa menina! - ela vira o rosto em direção a Esther - Filha, queremos que rompa essa amizade imediatamente! - ela diz em tom enérgico e autoritário. Esther se irrita:

- Já não basta controlarem tudo na minha vida, agora querem controlar até minhas amizades? Não veem que eu vivo um inferno aqui nesta casa? - A mãe responde aumentando o tom de voz:

- Inferno é a vida de quem não segue os princípios bíblicos, minha filha! De quem não segue os caminhos do Senhor e se rende às tentações deste mundo e à uma vida pecaminosa! E essa sua amiga vai acabar indo pro inferno, por conta dessa vida devassa! - Esther perde a paciência e grita bem alto:

- NÃO VOU ROMPER A AMIZADE COM ELA! NÃO VOU! Se é isso que vocês querem! Ela se importa mais comigo do que vocês dois que só querem me trancar em casa e me impedir de viver! - Esther ameaça subir para se isolar no quarto novamente, como fazia rotineiramente.

- CONTINUE A FALAR ASSIM NA MINHA FRENTE E EU VOU TE BATER! EU SOU SUA MÃE, ESTHER! E EU MEREÇO RESPEITO! - A mãe de Esther vocifera gritando bem alto.

- HÁ! QUE PIADA! ME EXIGEM RESPEITO E NÃO RESPEITAM NEM O MEU DIREITO DE ESCOLHA! AFINAL, VOCÊS NÃO ME RESPEITAM EM NADA DO QUE EU FAÇO! - Esther se vira bruscamente e anda a passos largos até a escada.

ESTHER, VOLTE AQUI! AINDA NÃO TERMINAMOS! - A mãe dela grita com o semblante distorcido de raiva.

- JÁ TERMINAMOS SIM! SÓ AJAM COMO PAIS PELO MENOS UMA ÚNICA VEZ E ME DEIXEM EM PAZ! - Esther sobre os degraus e bate a porta com força, fazendo um barulho estridente. A mãe dela continua a gritar na sala pelo nome de sua filha em vão. A raiva a consome quase que totalmente e seus punhos ficam cerrados com força. Seu marido esboça uma reação de frustração e demonstra que não concordou com a abordagem de Rute.

- Amor, o que você fez? - Ele ainda não digeriu o que havia presenciado.

- O QUE EU FIZ? EU ESTOU LUTANDO PELA NOSSA FILHA, ISSO SIM! Não percebe que a estamos perdendo para o diabo? - Rute fala em tom raivoso e preocupado ao mesmo tempo. Ela conduz as duas mãos ao rosto e deixa a sala chorando enquanto balbucia: “nossa filha será tragada pelo diabo! Eu não aceito perdê-la assim! Não aceito, Deus! NÃO ACEITO!” - Ela roda pela casa balbuciando tal frase.

E aquele dia criou um certo abismo entre Pedro e Rute. Eles começaram a se distanciar aos poucos e uma onda de silenciamento surgiu entre os dois, já que não podiam demonstrar a crise que existia no casamento por conta da vida eclesiástica e por eles assumirem cargos de destaque na igreja em que congregavam. Afinal, assumir os problemas que existem na vida é deixar claro o pecado que existe no seio familiar, conforme o que era pregado pelos líderes espirituais. E, para eles, Esther estava começando a trilhar esse caminho e a família estava começando a sofrer por conta de não conseguirem manter sua filha indo à igreja e seguindo os caminhos de Deus.

Alguns dias se passam, Esther continua sendo forçada a frequentar os cultos e atividades da igreja por seus pais. Ela mal esperava o dia de fazer seus 18 anos, já que seu aniversário estava perto. E ela estava planejando uma saída com seus amigos de escola, principalmente Madu, que caminhava com ela desde o princípio e a conhecia mais do que ninguém. Era isso que a motivava e a animava nos dias e na convivência difíceis que enfrentava diariamente.

Até que o dia do seu aniversário chegou e Esther não podia estar mais feliz. Já estava tudo pronto e preparado. Mas ela não imaginava a tragédia que estava por vir. Como sempre, seus pais decidiram tomar uma atitude contra tudo o que ela havia planejado. Esther aparece diante deles com o vestido que havia comprado para sair e aproveitar o seu dia especial. Ela espera ansiosamente os seus convidados chegarem. A campainha toca e ela atende a porta, mas a animação se desfaz quando percebe que é Daniel que está diante dela com um embrulho bonito em suas mãos.

- Olá, Esther! Feliz aniversário! - Esther esboça um olhar arregalado e não sabe como reagir naquele momento. Está estática diante daquele jovem que ela não tinha nem um pouco de vínculo e nem intimidade. Ele olha por trás de Esther e os pais dela o convidam a entrar.

- Esther, seja educada e converse com Daniel! - Dona Rute a incentiva a iniciar uma conversa com ele. E eles se sentam um diante do outro. Esther continua confusa olhando para o rosto dele sem proferir nenhuma palavra por um longo período de tempo. Daniel a olha com um semblante meio tímido e envergonhado, tenta iniciar uma conversa algumas vezes, mas a timidez o vence.

Rute olha para os dois e percebe que ninguém irá tomar a iniciativa. Até que ela se senta no sofá ao lado de Esther e a cutuca. Ela se assusta e olha para a mãe com um semblante assustado misturado ao estranhamento. Até que Rute perde a paciência e resolve puxar assunto:

- Então, Daniel, você é mesmo o líder do grupo de estudos bíblicos dos jovens?

- Sim, dona Rute, eu estou sempre trazendo temas relevantes que conversem com a nossa realidade. Afinal, sabemos que não tem sido fácil ser jovem nos dias de hoje! - Daniel responde de forma cortês e empática.

- Verdade! Esse trabalho que você tem conduzido é realmente muito importante, afinal, os jovens precisam se fortalecer mutuamente na fé para não cederem às tentações desse mundo perverso! - Dona Rute profere de forma a deixar evidente o seu apoio e aceitação em seu tom de voz.

Esther não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Logo no dia que deveria ser o mais especial da sua vida, no dia em que fazia 18 anos! Uma raiva misturada a frustração e tristeza invadem seu interior. Ela sabia que seus pais não eram os melhores do mundo, mas não imaginava que eles seriam tão intrusivos e capazes de chegar a esse ponto.

A conversa entre Daniel e Rute perdura e Esther percebe que sua mãe parece interrogá-lo com relação às suas funções na igreja, seus estudos, suas ambições para o futuro e outros assuntos afins. Até que Rute solta a bomba com o real interesse por trás de tudo aquilo:

- Você é um jovem e tanto, Daniel! Saiba que eu e Pedro aprovamos o relacionamento entre você e Esther! Acredito que vocês serão um casal abençoado e veremos os frutos em breve! E saibam: é da vontade de Deus que vocês fiquem juntos! - Nesse momento, Esther arregala os olhos e não acredita no que ouviu. Aquilo não podia estar acontecendo, justo no dia do seu aniversário.

Aquele foi o pior dia na vida de Esther. Depois daquele aniversário terrível em que nenhum dos seus amigos de escola apareceu, por conta da atitude de Rute e Pedro de contatar os pais para avisar que sua filha não iria mais sair com eles, para dar lugar aos jovens da igreja que eram pessoas completamente estranhas e desconhecidas para ela na prisão que se tornou a sua própria casa e que lhe causava as reações mais desconfortáveis que uma jovem da idade dela poderia sentir.

E os dias após aquele acontecimento foram ainda mais terríveis. De forma marcadamente forçada e nem um pouco fruto da escolha entre as duas partes, Esther e Daniel iniciaram um relacionamento. Ambas as famílias insistiram e moveram céus e terra para que esse namoro acontecesse entre os dois. Assim como Esther, Daniel também tinha as suas crises da juventude que envolviam interesses românticos e sexuais em relação à uma jovem da escola dele que não compartilhava da mesma fé de sua família.

O nome dessa jovem era Milena e era uma mulher razoavelmente atraente, no auge dos seus 16 anos. Ela já havia se aproximado de Daniel por conta de certas dificuldades que tinha em matemática e física, matérias que ele dominava e entendia bem. Depois de alguns encontros que tiveram nas vésperas de provas do ensino médio, Milena e Daniel trocaram alguns olhares e um interesse romântico começou a brotar entre os dois. Isso começou a gerar um conflito imenso no interior de Daniel, já que ele sabia que seus pais não aceitariam o relacionamento entre eles por conta de Milena não professar a fé cristã.

Esse conflito fazia com que Daniel fosse assíduo nas atividades eclesiásticas e frequentasse a igreja na maioria dos cultos e eventos, como uma tentativa de tirar Milena de sua mente. Mas tudo ia por água abaixo quando ele ia à escola e precisava se confrontar com a mulher responsável por deixar a sua mente distante e absorta em pensamentos com ambições românticas, e até mesmo “físicas” com ela.

O relacionamento com Esther não podia ser tão morno e distante como eles eram um do outro nas reuniões de jovens da igreja. Por um lado, Daniel ainda tentava uma aproximação com ela, sem sucesso na maior parte das vezes. O máximo que ele conseguia extrair de Esther era uma risada levemente tímida e um pouco retraída, algo que ela fazia todos os dias em toda convivência com pessoas novas em que ela não tinha tanta intimidade.

Até que um dia, após chegar do curso de inglês, Esther pega o celular e visualiza uma mensagem de Madu.

Madu: Esther! Como você está? Fiquei sabendo do seu "namoro". Ainda não acredito que os seus pais foram capazes de uma atrocidade dessa!

Esther: Ainda estou em choque, miga! Me ajuda! (emoji chorando)

Madu: Pode deixar, miga! Já estou bolando um plano! Em breve você sairá daí! E ainda terá uma festa digna de alguém que fez 18 anos!

Esther: Obrigada, miga! Sempre posso contar com você!

Madu: Me aguarde! Em breve falo do plano por aqui! Fique atenta às minhas mensagens!

Esther: Pode deixar!

Madu: Vou te tirar dessa, amiga! E seus pais vão provar do próprio veneno! (emoji raiva falando palavrão)

Esther: Já estou ansiosa para esse dia!

Madu: Dona Rute e seu Pedro vão ver só! Esther finalmente vai se libertar! (emoji capetinha)

E uma onda de ansiedade toma conta de Esther após essa troca de mensagens. Mas ela precisava disfarçar ao máximo para que seus pais não desconfiassem de nada. Até que esse dia chega. Os pais de Esther se inscrevem para um evento de casais, como uma tentativa de resgatar o casamento que se desgasta mais a cada dia, chegando ao extremo de exigir que Pedro e Rute durmam separados, não suportando mais a companhia um do outro. Por conta dessa crise que se agravou à medida em que percebiam que não tinham total controle sobre o comportamento de Esther, Pedro tomou a iniciativa de colocar seus nomes nesse retiro, já que não aguentava mais o distanciamento emocional e físico de sua esposa, despertando nele inúmeros pensamentos e desejos sexuais reprimidos e intensos com uma certa frequência, que se intensificaram por conta dessa separação proposta por Rute. E aquilo começava a incomodá-lo e o obrigava a recitar orações no interior de sua mente com o intuito de afastar aqueles “pensamentos repugnantes e extremamente pecaminosos”. Rute continuava na sua “regra” de manter o afastamento como uma forma de preservar a sua santidade e a sua integridade como uma mulher forte na fé, espiritual e que lutava pela manutenção e boa reputação da família. Quando soube que Pedro havia colocado seus nomes na lista de presença, ela pensou que era a principal chance que tinham de resgatar o relacionamento ao mesmo tempo que mantinham a aparência de casal inabalável, íntegro, que se amava de uma forma pura e incondicional, da mesma forma que “Jesus amou a igreja” como era pregado nas passagens bíblicas.

Até que ambos se arrumam de forma extremamente social, com os típicos trajes usuais de pessoas que professam uma fé pautada nas aparências e na imagem fictícia que não representa a realidade, como uma forma de atender às expectativas alheias.

- Estamos indo, Esther! - Pedro afirma munido de suas malas em ambas as mãos.

- Tchau, pai! Aproveitem o retiro! - Esther grita do andar de cima, de dentro de seu quarto fingindo estar fazendo seu dever de casa.

- Esther! Queremos que desça aqui agora pra se despedir de nós! - Rute profere em um tom enérgico - Venha aqui se despedir de seus pais! - Esther bufa de forma frustrada e desce as escadas. Para diante deles e diz de uma forma seca:

- Tchau para vocês dois! Espero que o retiro seja bastante proveitoso!

Esther, queremos o mínimo de seriedade da sua parte! - Diz Rute não muito convencida daquela despedida - Parece que está querendo se livrar de nós!

- Amor, podemos só partir para o destino sem ter que brigar novamente com nossa filha? - Pedro pergunta tentando mediar a situação e evitar mais uma discussão acalorada entre as duas.

- Você não me engana, Esther! Não pense que não vamos cobrar do Daniel para te levar aos cultos no domingo e nem que não iremos ligar para o Conselheiro Espiritual dos Jovens para perguntar se você está frequentando as classes! - Rute diz em tom moralista e com seu semblante ameaçador e apático de sempre.

- Sim, mãe, estou ciente do quanto vocês vão continuar me impedindo de viver como sempre fazem! - Esther diz com a mesma entonação seca e indiferente de antes.

- Podemos ir agora, vida? - Pedro pergunta à Rute já impaciente com aquela conversa - Acho que você precisa espairecer um pouco.

- Vamos então! - Rute diz em tom ríspido enquanto pega as malas e anda em direção à porta. Pedro se aproxima de Esther, levemente envergonhado e diz:

- Até mais, filha! Juízo, tá? Em breve estaremos de volta! - Esther continua a olhá-lo com o mesmo semblante indiferente e apático. Por dentro, ela estava em festa porque finalmente ficaria sozinha em casa.

Até que eles saem e Esther acompanha a saída deles olhando pela janela da sala. Eles carregam o porta-malas, entram no carro e finalmente partem. Esther faz um gesto de comemoração tímido com o braço, sobe até o quarto, pega o celular e liga para Madu:

- Fala, miga! Eles já foram? - Madu responde de forma enfática e animada.

- Já foram sim! Estou sozinha aqui! - Esther responde de forma discreta.

- Então podemos dar início à nossa festa! - Madu fala animadamente - Pode chamar geral! - Ela dá a ordem.

- Pode deixar, miga! Vou chamar todo mundo!

Na mesma hora, Esther começa a fazer inúmeras ligações e mandar mensagens a todos os amigos da escola. Os mesmos que foram convidados pro seu aniversário e não compareceram por conta da atitude de seus pais. Agora seria o momento dela finalmente comemorar com quem realmente queria. Ela troca de roupa e coloca um outro vestido que havia comprado há certo tempo sem os seus pais saberem, pois tinha certeza de que sua mãe reclamaria pelo vestido ser justo, curto na altura das coxas e levemente decotado, algo que uma mulher decente e de caráter não deveria usar em nenhuma circunstância, segundo o que Rute dizia. Ela complementou o look com meia arrastão preta da mesma cor do vestido e sapatos de salto pretos, fechados na frente que ela gostava bastante, mas quase nunca usava.

E era só esperar até os convidados chegarem. Ela desce as escadas, já pronta para a noite e conecta o bluetooth do seu celular com a caixa de som gigante que tinha em casa que seus pais usavam para ouvir músicas gospel bem altas com o intuito de que toda a vizinhança também escutasse. Ela coloca em uma de suas playlists e aumenta o volume de forma considerável. Dessa vez, a trilha sonora seria diferente, com músicas “proibidas” e que seus pais consideravam “mundanas”, “sujas” e com letras imorais.

Ela dança de forma meio tímida em seu tempo sozinha em casa, até que alguém toca a campainha. Esther abre e se depara com Madu e mais outras duas meninas que são apresentadas como Beatriz e Nina. Elas conversam animadamente enquanto esperam os outros convidados que vão chegando aos poucos. Miranda, Viviane, Carlos, Lorenzo e Melanie eram os convidados que faltavam naquela ocasião, cada um com uma bolsa de ou de comida, ou de bebida.

E todos se fartam, se divertem, riem e conversam sobre a vida e tudo o que estavam vivendo naquela fase da vida. Todos ali com idades entre 16 e 20 anos, ainda planejando, sonhando e começando a traçar a sua independência. Até que Madu chama Esther para perto dela e das outras duas meninas que a acompanhavam.

- Essa é a Esther de quem eu tanto falo pra vocês! - Madu diz enquanto gesticula com uma das mãos. Nina se aproxima de Esther de forma a ficar com o seu rosto bem próximo ao dela:

- Realmente, ela é uma mulher muito bonita! - Olha para Esther de forma maldosa - Tenha certeza de que você estará na minha lista de “potenciais”! - Até que Beatriz intervém:

- Porque você tem que ser tão “sem freio”, Nina? Dê um tempo para a menina! Ela não está acostumada com isso e vai ficar confusa!

- Parem aí, vocês duas! - Madu profere - Dêem um tempo para ela se abrir mais! E você, Nina, tenta ir com calma! - Aponta para Nina em tom de advertência. Nina ergue as mãos como se estivesse se rendendo e diz:

- Pode deixar, Madu! Não vou tomar atitudes precipitadas, mas te digo só uma coisa… não garanto que vou me “comportar” muito, se é que me entende! - Dá uma piscada maldosa para Madu que se aproxima dela e fala de mansinho no ouvido de Nina:

- Isso é carência, por acaso? - Olha para Nina como se estivesse com segundas intenções.

- Tive uma semana péssima, Madu! Por isso estou nesse estado e me sentindo tão sozinha! - Nina responde com uma voz levemente embargada. Madu se senta ao lado dela e Nina coloca a mão sobre sua coxa direita.

- Vem aqui que vou te dar um pouco de carinho… - E elas trocam um selinho bem rápido, mas emotivo e ao mesmo tempo esboçando toda a conexão que ambas tinham uma com a outra. Esther observa aquilo atônita, afinal nunca tinha presenciado algo parecido.

- Se sente melhor agora? - Madu pergunta com as mãos no rosto de Nina enquanto a olha de forma afetuosa.

- Me sinto um pouco melhor… - Nina diz ainda com a voz embargada e encontra a mão esquerda de Madu em seu rosto - Mas só esse beijo não é suficiente! - Madu retribui com um olhar empático e complementa:

- Aproveite este momento para conhecer pessoas novas e espairecer um pouco!

- Pode deixar, minha deusa! - Nina se levanta, pega uma garrafa de cerveja que está sobre a mesa de centro, dá uma golada longa e profere:

- Hoje a noite será bem longa! - E ela anda em direção aos outros adolescentes que estavam do outro lado da sala. O alvo dela dessa vez era Miranda.

Esther continua na mesma posição, ainda tentando digerir o que havia presenciado. Madu percebe que Esther está com o olhar arregalado e pede que ela se aproxime. A amiga se aproxima e ambas dividem uma petisqueira de aperitivos e salgadinhos que estão sobre a mesa. Até que Esther rompe o silêncio:

- Você e a Nina têm algo a mais? - Ela desvia o olhar para Madu.

- Que isso, miga! Não temos nada uma com a outra! É que Nina é só meio “carinhosa” demais e precisa demonstrar seu afeto algumas vezes… Eu disse pra ela que qualquer coisa podia se abrir comigo! E fazemos isso de vez em quando, trocamos alguns selinhos e carícias uma com a outra, mas não temos nada estabelecido ou oficializado… - Madu coloca uma de suas mãos sobre a mão esquerda de Esther e complementa - …afinal, quero estar disponível para uma “pessoa” em especial! - Ela repousa a sua cabeça sobre o ombro de Esther que fica paralisada nesse momento com inúmeras emoções e sentimentos fervilhando na sua cabeça.

Tudo aquilo era extremamente novo para Esther. Não que ela nunca tivesse fantasiado nada com sua melhor amiga antes, após ser assediada na escola por um garoto que a ficava stalkeando e ainda fazia ameaças:

“Você é SÓ MINHA, Esther! Quem ousar se aproximar ou tocar em você, vai se arrepender de ter nascido! SÓ EU TOCO NO QUE É MEU!”

Depois desse episódio, em que Madu e seus outros amigos tiveram que intervir, acarretando apenas uma advertência para esse menino e o infeliz rótulo em Esther como a “principal provocadora desse comportamento no garoto” pelos pais dele e seus próprios, ela passou a adotar pensamentos de repulsa e repúdio à figura masculina, intensificado ainda mais pela posição de seu pai que provocou nela um silenciamento desde a sua infância. Essa atitude de Madu era tudo o que ela precisava para ter certeza de que ela não era a única que sentia isso, já que ambas se aproximaram muito mais após esse trauma terrível sofrido por Esther, o que causou em Madu uma identificação por ela também ter sido abusada na infância pelo seu padrasto, logo depois do divórcio de sua mãe que, após descobrir o que o atual companheiro fazia com sua filha, o expulsou de casa sem escrúpulos e ainda foi obrigada a mudar de endereço, já que ele não aceitava o fim do relacionamento e continuou a ameaçá-las, até mesmo de morte, já que ambas eram mulheres que faziam com que ele “não conseguisse se conter e nem agir de forma civilizada”.

Após se lembrar de tudo isso, Esther decidiu que era a hora dela finalmente “se permitir” como sua amiga tanto falava. Ela contorna o seu braço ao redor do pescoço de Madu e finalmente solta o que estava há anos reprimido:

- Sempre senti algo por você, miga! Só não disse antes porque não sabia se você sentia o mesmo por mim! - Madu no exato momento em que Esther termina essa frase levanta o rosto em direção ao dela e diz:

- Então se permita comigo, Esther! - Sua voz baixa e embargada irrompe em um beijo longo e que chega a estalar no momento em que é interrompido por uma música que parecia descrever perfeitamente o que as duas compartilhavam. “I kissed a girl” da Katy Perry passou a ser a trilha sonora daquele momento.

- Vê só? - Madu levanta o indicador em direção à caixa de som - É a nossa música!

E todos aqueles jovens estavam começando a varar a noite e tentar aproveitá-la ao máximo, até que a campainha toca. Todos se entreolham com um semblante de estranhamento, afinal não estavam esperando por mais ninguém. Esther anda até a porta, a abre e se depara com Daniel. As maçãs de seu rosto enrubescem na mesma hora.

- Oi, Esther! Seus pais me ligaram e me pediram pra vir até aqui pra te fazer companhia! - Esther não consegue disfarçar a frustração que sente. Nina chega logo atrás dela, dá uma analisada em Daniel de cima a baixo e profere:

- Quem é você? Não vê que estamos em uma festa privada?

- Eu sou o namorado da Esther! Estou fazendo o que meus sogros me pediram pra fazer! - Ele diz aumentando um pouco o tom de voz. Nina faz uma expressão de estranhamento na mesma hora, que é compartilhado com todos, com exceção de Madu.

- O quê? Namorado? Como assim? Só se for de mentirinha… - Nina olha em direção à Madu - …ou vocês forem um trisal! - Ela dá um sorriso maldoso após essa fala. Na mesma hora, Madu se levanta com o semblante fechado e anda em direção à porta:

- Vai me dizer que você acredita nessa farsa? Você não passa de um puritano vendido! - Madu aponta o dedo em direção à Daniel.

- Como assim? Só vim aqui saber se meu amor está se comportando! A Dona Rute me pediu pra ficar de olho nela, porque ela estava se envolvendo com pecadores e imoralidade! - Madu se enfurece com essas palavras:

- Imoralidade é você fingir que a ama de verdade, só pra manter a aparência de “certinho”! Esse namoro de vocês não passa de uma mentira! - Daniel fica levemente irritado, mas não sabe como rebater.

- Assume logo que você só aceitou esse namoro pra tentar esquecer de alguém! - Daniel se vê sem argumentos. Afinal, tudo o que ela falava era a mais pura verdade. Ele não tem escolha a não ser assumir o seu verdadeiro amor:

- Você tem razão! Eu sou apaixonado por outra pessoa! - Daniel abaixa a cabeça em tom de vergonha - Só aceitei esse namoro com Esther porque meus pais não aceitariam meu relacionamento com essa pessoa.

- Mas é você que tem que decidir o seu caminho! Você tem que escolher, independente do que as outras pessoas achem! Senão, você vai atender as expectativas de todo mundo e nunca será feliz! - Aquelas palavras vieram como um raio pra cima de Daniel. Depois daquilo, ele pediu desculpas à Esther e a todos pela intromissão, saiu pela porta e seguiu seu caminho.

Todos se entreolharam surpresos com tudo aquilo e Nina deu um anúncio que fez com que todos voltassem à festa. Não demorou muito e o bolo chegou logo depois, Madu e Beatriz o carregaram e o colocaram sobre a mesa de centro. Todos cantaram os parabéns animadamente e quando Esther estava pronta para soprar as velas, Carlos a faz lembrar de um detalhe importante:

- Faz um pedido! - Esther fecha os olhos, mentaliza o desejo e logo depois sopra as velas. Todos batem palmas ao mesmo tempo em que gritam:

- Esther é tudo ou nada? TUDO! - O coro continua a entoar animadamente ao som de palmas.

Até que os dias se passaram e algumas coisas começaram a mudar. Algumas boas, outras ruins. O relacionamento dos pais de Esther continuou ruindo ao ponto de Pedro começar a consumir conteúdos pornográficos na internet até o dia em que foi flagrado por sua esposa que passou a tratá-lo com desdém, repugnância e exigiu que ele saísse de casa. E como consequência disso, veio o divórcio, obrigando Rute a mudar de igreja, já que sua reputação passou a ser a pior de todas e ela deixou de exercer os cargos de influência e precisou procurar onde congregar, mas nunca se sentia plenamente satisfeita em nenhuma que visitava. Ela se viu obrigada a adotar o hábito de congregar em sua casa, assistindo vídeos na internet de líderes e pastores que ela admirava. Esse ato ela passou a chamar de “Adoração no Lar”.

Pedro continuou com o seu vício, chegando ao ponto em que precisou procurar ajuda especializada em instituições religiosas para viciados por não conseguir parar de consumir sites com tal conteúdo. Para ele, a solução de todo e qualquer problema de ordem psicológica e/ou emocional estava na espiritualidade e na fé e profissionais especializados e terapeutas eram uma artimanha do inimigo para confundir ou enfraquecer os filhos do Altíssimo. No início, ele até conseguiu controlar o comportamento compulsivo, mas as recaídas se tornaram constantes e ainda deram margem para novos vícios. Pedro passou a consumir bebidas alcoólicas com frequência, como uma tentativa de aplacar a solidão que sentia rotineiramente e cotidianamente, após perder a sua esposa e filha. E seus dias eram uma luta diária em tentar superar a bebida e a pornografia.

Esther foi colocada no meio de uma grande disputa judicial, mas como já era maior de idade, decidiu que não queria ficar com sua mãe que adotou um comportamento recluso e de isolamento social desde o divórcio, alegando que assim não iria se contaminar com “as impurezas deste mundo perverso”. Então, não bastou outra alternativa para Esther a não ser morar temporariamente na casa de Dona Fátima e Madu. Ela finalmente iniciou sua tão sonhada faculdade de design, se formou e decidiu se mudar para um pequeno apartamento em que dividia o valor do aluguel com Madu, já que ambas moravam juntas.

Os dias para Esther nunca haviam sido tão promissores como aqueles que experimentava, ela estava, pela primeira vez, vivendo da forma como ela sempre quis, construindo seu caminho e tomando as suas próprias decisões como uma verdadeira adulta. Até que um dia ela recebe uma ligação no seu celular de uma pessoa familiar:

- Olá! Esther? Aqui é o Daniel! Lembra de mim? - Esther sente um leve incômodo percorrer seu corpo.

- Oi, Daniel! O que foi? - Ela tenta não esboçar o desconforto que sente na voz.

- Desculpe te incomodar neste momento, mas é que eu precisava falar isso: agradeça a sua amiga por mim, tá bom? Graças a ela, estou vivendo um sonho! - Ele olha para a frente e se depara com seu grande amor e sua namorada, Milena. Ambos estavam na praia naquele exato momento e Daniel estava contemplando cada momento e cada oportunidade com Milena.

- Puxa, que bom! Pode deixar que eu falo sim! - Esther fala em um tom animado.

- Preciso ir! Tenho que dar atenção à minha gata aqui! - E ele desliga o celular.

Daniel, contrariando todas as expectativas impostas, conseguiu viver tudo aquilo que mais desejava. Ele abandonou as atividades eclesiásticas, concluiu seus estudos e foi viver com Milena em um pequeno apartamento que conseguiu alugar graças a alguns trabalhos que fez com colegas de escola e faculdade. Ele passou no vestibular para o curso de engenharia mecânica e estava se sentindo super realizado, havia feito a escolha certa.

Os amigos de Esther continuaram a fazer parte da vida dela como sempre fizeram. Estavam presentes em tudo, nos momentos mais importantes da vida dela. Madu era aquela que a confortava nos momentos mais difíceis e era seu principal porto seguro. Lorenzo e Miranda iniciaram um relacionamento após aquela festa. Carlos continuou com sua amizade com Viviane e algo começou a crescer entre os dois, mas ainda não tinha nada oficializado. Nina e Beatriz até começaram a ter algo, mas tiveram que dar um tempo, por conta de algumas questões pessoais de Beatriz com relação à sua identidade. Nina já tinha total certeza que era lésbica desde o início, já que sempre sentiu atração por mulheres e isso já não era segredo para mais ninguém.

E essa é a história de Esther. Uma história que nos ensina a seguir o nosso próprio caminho ainda que este contrarie as inúmeras expectativas que os outros fazem sobre nós. A nossa felicidade só depende de nós e é incrível como a gente se força a acreditar que outra pessoa, as circunstâncias da vida, o poder que certas coisas têm sobre nós é que pautam a nossa percepção do que é ser feliz. Que esse conto te faça refletir sobre as prioridades e o valor que você tem dado a certas coisas na sua vida. Que você siga o SEU próprio caminho e faça as SUAS próprias escolhas.

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